Por essa Edvaldo não esperava. Samara estava sentada no chão do corredor, ao lado da porta, à sua espera. Quando a viu, ainda das escadas perdeu o equilíbrio como se os degraus houvessem caído sob seus pés; segurou-se nas paredes.
Ele que se acostumou a falar muito pouco com vizinhos observava o apartamento da vizinha que estava com a porta entreaberta.
— O que você tá fazendo aqui? Eu não disse que é perigoso… descer essa ladeira essa hora… subir também é perigoso – disse em tom baixo quando percebeu alguém passando por trás da porta.
Foi nesse momento que percebeu que ela trazia uma cabeça de frade na mão:
— Olha, Edvaldo, que trouxe! Sua vizinha disse que isso é bom pra expulsar olho grande da casa da gente.
Abriu a porta rápido e sem acender a lâmpada, colocou na estante, tateando um lugar para não cair o cacto. Disse baixo “vamos, vamos!” Ele de pé no primeiro degrau, descendo, disse em mais alto “vumbora” e fazia gestos vigorosos com u
Edvaldo tivera um sonho significativo, mas o qual não sabia o significado. Estava na biblioteca de Samara quando encontrara uma folha de papel muito envelhecida, ao olhar fixamente para ela havia percebido que fora transportado para uma duna diferente das de areias brancas do Abaeté. Sentia que havia andado por horas e, mesmo com o Sol queimando-lhe a parte descoberta do rosto, não estava exausto ou muito suado. Repentinamente uma enorme duna se ergueu a sua frente; ele subiu sem resistência. Quando chegou ao topo avistou algo que parecia um amontoado de enormes blocos de pedra. Curioso, decidiu seguir naquela direção. Ainda no caminho foi possível perceber que se tratava de uma construção, aproximou-se ainda mais. Bem mais próximo percebeu formas humanas; neste momento parou e escutou o vento cantando algo do fundo da garganta. Resolveu continuar. Muito mais perto, percebeu, como efeito do ângulo de aproximação, uma pedra enorme caída ao lado da ruína e duas construções que certame
No dia de visitas, Edvaldo esperou Carnaval Moreira na entrada do complexo, temendo que o guarda o conhecesse de suas andanças nas proximidades e não o deixasse entrar. Moreira era imprevisível e surpreendeu Edvaldo dizendo “caramba Baiaco, relógio suíço o seu”. “Foi buscar o Baiaco longe, hein?”. Realmente Moreira apitou jogos do Alto do Cean e a torcida conhecia Edvaldo por Baiaco; era o que gritavam. Entraram e, para surpresa dele, Marciano estava por lá. Estava certo de, a partir daquela última tarde, estar lá para visitar Queiroz e também o ex-padre, pois havia gostado de algo na conversa. Entendiam que, diferente da máxima que diz “religião não se discute”, poderiam aprender um com o outro por esse caminho. Queiroz se agradou quando viu Carnaval Moreira, mas sem muita conversa apertou-lhe a mão e foi pegar uma cadeira para ele. Como o padre não recebia visitas, Moreira entrou fingindo ser parente dele, pois havia um limite quanto ao número de pessoas. A recep
Edgar, poderia ter sido seu terceiro melhor amigo, mas era chefe. Chefe nunca é amigo de ninguém. Carnaval Moreira costumava dizer o que havia ouvido em outro boteco “chefe é amigo do dinheiro e escravo do seu trabalho”. Apesar dos pesares, Edgar era, para ele, o terceiro na lista, depois de Queiroz e Marciano, só não era mais pelo vínculo trabalhista. Preocupou-se, mas sabia que entenderia. Os outros eram apenas amigos de copo, pois “amigo era coisa de criança” como dizia Barbosa. Edgar já conhecia as pretensões de Edvaldo em “tentar uma melhor sorte em São Paulo”. Edvaldo pensava em tornar-se um metalúrgico. Entendia que “metalúrgico em São Paulo era respeitado”. No entanto, o mais próximo disso era a experiência com o desmonte de carcaças de caminhão. A outra experiência era apenas afetiva: passear na F-350 de Salustiano, ir à Arembepe e aos terreiros de Candomblé na Itinga e Beiru com o pai. Ele se sentiu como um cavalo velho carregando um fardo muito pesado e rodando e
Como ele previu, todos estavam lá. Além dos dois internados, Queiroz e o ex-padre, estavam Marciano e Carnaval Moreira. Para este último, a internação do Cearense foi como “sopa no mel”, pois tinha a receptividade que não tinha no bar do Oliveira, podia ficar sentado ao lado deles, sem nenhuma preocupação por duas horas. Queiroz em outro canto estava recebendo visitas indesejáveis como efeito ou fenômeno das substâncias que se propunham afastar as horas alucinadas, aproximava todo um zoológico dos seres mais inimagináveis. — Chegou em boa hora, acabaram de levar os meus bichinhos. Edvaldo não entendeu e não se preocupou em entender, caminhou com o amigo até o grupo. Queiroz mudou totalmente o assunto, mas nem Edvaldo nem ninguém poderia duvidar ou se incomodar com as tiradas do amigo: — Você sabia que o banheiro é o melhor lugar de uma casa? As pessoas não dão menor valor. Acham que é na sala a realização da casa, porque tem sofá, tem a televisão. Ou
Samara chegou e a conversa mudou. Marciano conseguiu chamar o padre para outra, de sua preferência.Edvaldo e Samara não transpareciam nada e Queiroz o denunciou: “tá sabendo da história de Edvaldo? Diz que viaja por esses dias a São Paulo. Óia só, como se fosse alí em Alagoinhas. Algo de voltar em dois dias, ou um pouco mais.” Ela nem mudou sua expressão e Edvaldo sentiu alívio.A conversa entre Marciano e o ex-padre continuava fora do alcance dos outros.Edvaldo procurou o médico naquela tarde, para saber qual seria a previsão de alta, sentia que ele estava bem, como de costume. Mas o médico disse “sem previsão”. Edvaldo saiu sem chamar a atenção de todos, evitou mais uma vez Samara. Iria ao Engenho Velho falar com os pais. Samara pareceu uma outra pessoa ali sentada com o pai. Estavam travando uma conversa de modo que Edvaldo pode escapar por fora do ângulo de visão de Queiroz e de um giro de cabeça de Samara. Quando ele saiu, ela parecia estar de
Chegou no Engenho Velho, era noite escura. Parou na entrada do bairro e tomou duas cervejas, sentiu que não estava pronto para encarar o pai novamente, com as duas, tomou mais duas. E mais duas e, por fim, mais uma. Com as sete cervejas filtrando seus ânimos continuou. Para ele, quanto mais tarde melhor seria para não ver alguém conhecido. Seus amigos de infância alcançaram, no máximo, sua adolescência, as chances de vê-los era mínima. Ele guardava esse temor de ver Neto, um dos provocadores da Polícia do Exército, que havia se engajado no próprio Exército brasileiro e era oficial. Certamente “nem lembrava de Brotas, quanto mais Engenho Velho”, pensava. Mas o medo era o combustível de Edvaldo, seu ego, sua armadura furada por onde escoava a bebida. Também não desejava ver Salustiano e quando chegou em casa, sabia que apenas Jerusa estava acordada. Quando entrou, evitou beijá-la ou abraçá-la, mas, mesmo com certa distância, sentiu seu hálito alcoolizado. Ele perguntou
Nessa noite não demorou dormir, mas havia se arrependido de não ter tomado algum remédio para prevenir ressaca. Pela manhã, quando acordou, parecia ter dormido por dois minutos, sem lembrar de nenhum sonho ou como adormeceu. Estava disposto e decidido a viajar, logo que recebesse a indenização. Iria à Baixa de Quintas e ligaria do escritório para a empresa em São Paulo. Desceu os nove andares do prédio que morava, se sentindo leve e livre. Uma sensação de imensidão, de controle e de capacidade. A entrevista de emprego; a recuperação, no seu entendimento, de Queiroz; o reaparecimento de Marciano e Samara… Samara estava no último lance de escada esperando por ele. Quando, ao dobrar o último corredor, junto com o facho de luz do sol refletido, veio a imagem dela olhando aflita. Ele pensou estar bem, mas ao vê-la alí a sua espera, sentiu o prédio caindo nas suas cabeças. Depois de uma pausa, se aproximou, pegou um dos seus braços e a conduziu. Atravessaram a rua
Chovia fino, uma chuva ardida e pegajosa, daquelas que cada pingo tinha um pouco de poluição. Chuva suja, grudava em tudo. Só não era pior que o frio, que penetrava tudo por causa da chuva. A poluição que entupia os brônquios forçava entrada pelos poros e o frio ia penetrando com a chuva que o diluia; parece que penetrava nos lugares mais fundos. Um frio que pesava, abatia os ânimos. Esses elementos convivendo naquela madrugada paulistana. Era possível desconfiar dos termômetros ou era a familiaridade com o calor. A opinião de Edvaldo era que eles deveriam ter desistido e mandando a baronesa trocar os canos de esgoto de sua mansão. Mas Juraci era daqueles que não se dispõe alternativas. Comiam uma bengala de pão francês assada na chama de uma das bocas do fogão, era o que faltava para irem atender a missão na Zona Sul da cidade. Seu Teófilo, o dono da empresa de bombeiros hidráulicos em que trabalhava Juraci, havia ligado e solicitado seus serviços. A empreitada deveria aco