Capítulo 4
20 anos atrás
O garoto subia a rua apressado. Aos dez anos de idade, nada era mais importante do que o futebol contra os garotos do bairro vizinho. A semana na escola tinha sido recheada de provocações e chacotas antecipadas. Perder o jogo estava fora de cogitação.
Ele chegou até a porta branca recém pintada. O cheiro de tinta fresca ainda latente. Estendeu a mão e tocou a campainha. Um dingue-dongue clássico ressoou dentro da casa. Ninguém atendeu. Tocou mais uma vez e esperou. O resultado foi o mesmo.
Onde estaria o amigo? Os garotos do bairro vizinho eram muito bons e sem o Caneta, o mais habilidoso do time, a possibilidade de derrota era grande. Será que aquele preguiçoso estava dormindo, como costumava fazer depois do almoço?
As janelas estavam abertas, então deveria haver alguém em casa. Ele pesou a mão na maçaneta e a porta se abriu, revelando uma sala bonita e aconchegante, cada parede forrada com estantes repletas de livros.
O garoto colocou a cabeça no vão da porta e chamou mais uma vez. O silêncio foi sua única resposta.
Ele já tinha estado naquela sala incontáveis vezes. Se, apenas daquela vez, entrasse sem ser convidado, tinha certeza de que seria perdoado, afinal era por uma causa muito importante.
Pisou no tapete onde os amigos costumavam se reunir para jogar banco imobiliário. Caminhou até a cozinha onde a mãe de Caneta os observava fazendo os deveres de casa. Enquanto cozinhava, dona Branca dava dicas sobre as tarefas mais difíceis.
A casa estava vazia, os pais do amigo ainda estavam no trabalho e isso indicava que Caneta só podia estar dormindo. A mochila jogada no corredor indicava que ele já tinha chegado da escola.
Restava-lhe punir o amigo pelo atraso. Estava decidido. Iria subir pé por pé e acordar Caneta com o maior susto de sua vida.
Quando pisou nos degraus da escada que levava ao segundo andar, o rangido das tábuas foi tão alto que o assustou. O imóvel era como toda boa casa antiga deveria ser. Quase uma entidade viva, cujas juntas idosas de madeiras comidas por cupins e tubulações velhas e mal encaixadas reclamavam com murmúrios constantes e rabugentos, clamando por uma reforma.
Já no piso de cima ele encontrou o corredor vazio, sabia que o quarto do amigo era o último cômodo do lado direito, depois da janela.
Prosseguiu silencioso, excitado com a possibilidade do trote, e, ao mesmo tempo, temeroso pela casa onde o silêncio gélido era soprado pelos cômodos vazios.
Prestes a estender sua mão para a porta entreaberta, ele sentiu algo tocar-lhe o ombro. O susto o deixou sem cor. O grito de terror ficou sufocado na garganta. Quase urinou nas calças. O alívio veio segundos depois, quando criou coragem para virar a cabeça e descobriu que o fantasma que lhe assediava era nada mais que a cortina, que, soprada pelo vento repentino, decidiu acariciar-lhe gentilmente o pescoço, fazendo-o rememorar os filmes de terror que assistia escondido na madrugada.
Decidiu que o melhor era acordar logo o amigo para poder voltar ao calor do dia. Longe de lugares onde sua imaginação infantil pudesse decidir lhe pregar mais alguma peça.
Quando finalmente abriu a porta do quarto, o verdadeiro horror atingiu-lhe em cheio, com uma cena que jamais seria apagada de sua mente.
***
Eram seis e quinze da manhã quando Luís estendeu a mão para o celular, calando o despertador que se manifestava na voz de Anthony Kiedis dos Chili Peppers. Pensou em voltar a dormir, mas, após cinco minutos, decidiu que não deixar-se-ia vencer pela preguiça.
Colocou-se de pé se espreguiçando e vestiu as roupas da academia. O frio da manhã de inverno exigiu que um moletom fosse jogado sobre os ombros.
Após uma passada pelo banheiro e um ataque bem-sucedido à geladeira, ele estava pronto para sair. Desceu as escadas e, ao passar pela livraria, devolveu para a cozinha uma xícara que tinha sido esquecida sobre uma das mesas, antes de finalmente sair para encarar o vento frio da manhã invernal.
A casa de Pedro ficava no caminho para a academia e era o ponto de encontro dos amigos.
Um grupo de adolescentes surgiu vindo em sua direção, descendo a rua de forma ruidosa, com conversas em voz alta e animada, sem se preocupar com as pessoas que ainda estavam dormindo a uma parede de distância. Sua funcionária de meio expediente estava entre eles, de mãos dadas com o namorado. Um garoto cuja barba ainda começava a crescer, na forma de pequenos fiapos quase invisíveis.
Quando avistou Luís, ela soltou a mão do rapaz e correu em sua direção.
-Chefe! Bom dia! – disse animada enquanto se jogava sobre ele em um abraço apertado que a fez tirar os pés do chão.
Luís sentiu os seios proeminentes espremidos junto ao seu peito. Como sempre ela o provocava.
“Preciso dar um basta nisso” – pensava ele enquanto, por cima do ombro da garota, via a expressão nada satisfeita de seu namorado.
Após alguns minutos de caminhada, estava de frente para a porta da casa de Pedro. A pintura branca descascada trazia muitas lembranças. Quando o amigo decidira sair de casa para morar sozinho, os pais resolveram que seriam eles a sair, comprando para si uma casa no litoral, onde desfrutariam da aposentadoria em grande estilo, deixando o imóvel da infância como um presente para o filho recém-formado em medicina.
Luís tocou a campainha. A porta foi aberta por Fernanda. Assim como ele, a moça não tinha confiado apenas nas roupas de malhar para afastar o frio e vestia um grosso moletom azul.
-Bom dia – disse ela.
-Bom dia, Nanda – um beijo no rosto selou o cumprimento.
Depois que Luís passou pela porta, ela vasculhou a rua em busca de Bernardo.
-Onde está aquele preguiçoso? – perguntou.
-Ele me ligou ontem, disse que tinha um cliente importante pela manhã e que não poderia vir.
-Que pena.
-E a Bárbara? – foi a vez de Luís questionar.
-O mesmo: trabalho chato e de última hora.
-E cadê o dono da casa?
-Está lá em cima. O idiota abriu a porta pra mim e foi tomar banho me deixando aqui sozinha. Mal sabe ele que sou cleptomaníaca – brincou a moça indo em direção a uma das muitas estantes de livros. Luís seguiu para as fotos na parede. Algumas das memórias eternizadas ali também pertenciam a ele.
-Bem que ando sentindo falta de algumas coisas lá em casa. Foi você quem surrupiou minha coleção de revistas Playboy?
-Bom, provavelmente sou mais macho do que você, o Pedro e o Bernardo juntos, mas não, imbecil. E vou dizer pela última vez. Eu não sou lésbica – frisou.
-Mas é claro que não, com certeza não. Ninguém tem dúvida alguma disso, por que teríamos? –zombou ele.
-Eu sabia que não devia ter falado nada. Olha, pela última vez, aquilo foi apenas um deslize, eu estava bêbada, a garota também. Éramos amigas, dividimos um táxi, ela me convidou para subir, enfim, foi apenas uma vez, agora dá pra parar de ficar me lembrando disso?
-Você e todas as suas últimas vezes...
Ele riu com prazer, enquanto ela deixou escapar um sorrisinho de quem se rende.
-Essa é uma de minhas preferidas.
Fernanda se aproximou do amigo para identificar qual moldura ele apontava. A foto retratava um grupo de crianças abraçadas. Usavam uniformes de futebol completamente cobertos de barro.
-Homens e seu futebol – menosprezou – como era mesmo o apelido do Pedro naquela época? Lápis?
De brincadeira, Luís empurrou a cabeça da amiga.
-Era Caneta, não Lápis.
-Homens idiotas, com seus apelidos ridículos, correndo atrás de uma bola estúpida. Isso é tudo o que essa foto representa. Esta sim é uma bonita imagem – apontou para um retrato onde o grupo estava todo reunido, ombro a ombro em frente à livraria de Luís. Aquele foi seu primeiro dia sozinho no comando do negócio dos pais.
O momento das recordações foi quebrado pelo chamado de Pedro.
-Nanda! Eu esqueci a toalha, pegue uma no meu quarto para mim! – O grito veio do andar de cima.
-Não vou correr o risco de ver o namorado da minha melhor amiga pelado, vou deixar essa para o Luís – gritou ela de volta, e sorriu para o rapaz – vá pegá-lo, tigrão!
Luís balançou a cabeça em desaprovação, mas subiu a escada sem reclamar. O rangido da madeira ainda estava ali, pronto a lhe saudar, pontuando seus passos. Velhos conhecidos.
Voltar para aquele corredor vazio do segundo andar, com a cortina esvoaçando mediante o vento forte e gelado, era um gatilho para que as lembranças daquele dia viessem à tona. Era simplesmente impossível não se lembrar.
-Luís! As toalhas ficam nas gavetas de baixo! – gritou Pedro do banheiro na porta à esquerda.
-Eu sei! – “...muito mais sobre esta casa do que gostaria de saber” – completou em pensamento.
Ele caminhou até o quarto. A cortina dançando ao seu lado. O vento gélido da manhã abraçando seu corpo. Quando estendeu a mão para a porta, de repente, tinha dez anos outra vez e o terror daquele dia agarrava-se a ele, forçando passagem pela alma da criança que ainda vivia em seu interior.
Ele hesitou. Que bobagem, era um adulto agora, mas a mão seguiu estática.
A voz renovada de Pedro o ajudou a sair do transe.
-Anda logo, Luís! Você sabe onde fica!
Ele abriu a porta, foi até o guarda-roupa e pegou a toalha. Pedro se tornara um homem organizado, seu quarto era limpo e cada coisa tinha seu lugar.
-Já vou! – respondeu, livrando-se completamente do passado.
Alguns minutos depois os três seguiam para a academia.
-Ainda não acredito que aqueles dois não vieram – disse Nanda, referindo-se a Bárbara e Bernardo.
-Quem perde são eles. É como dizem lá fora, “no pain, no gain.” – afirmou Pedro.
Capítulo 5 A sala do detetive andava movimentada nos últimos dias. O superintendente Maciel, que tinha o delicado costume de esquecer-se da existência de Fred, tornou-se figurinha fácil entre aquelas paredes. Parece que o peso do caixão de uma pessoa famosa é maior do que de uma Jane Doe, como diziam nos seriados americanos que ele assistia com a esposa antes de a sala de casa se tornar pequena demais para os dois. -As pessoas estão atrás de respostas, então trabalhe, Fred, e trabalhe rápido. O detetive sabia que Maciel não falava da família da vítima, ou sequer de seus fãs, ele se preocupava apenas com a mídia e a exposição negativa de sua delegacia. Postergar o caso de um João Ninguém não-reclamado, arquivando o processo, era uma coisa, mas tratar alguém famoso da mesma forma era uma heresia, com direito a fogueira em praça pública e transmissão em HD pela Globo News. O problema era que cada ponta solta havia sido explorada e a investi
Capítulo 6 20 anos atrás Luís e Bárbara caminhavam de mãos dadas pelo parque. Aos dez anos, a maioria dos meninos precisava antagonizar as garotas se não quisesse ser motivo de chacota entre os colegas, mas para Luís nada era mais importante do que a companhia de Bárbara. Antes mesmo de descobrir os significados de amor ou paixão, ele sabia que não haveria outra garota em sua vida que não fosse ela.A infância e suas verdades eternas, que duram por horas, dias, ou por toda uma vida. Algumas vezes por semana, depois da aula, os dois se sentavam sob a sombra de uma árvore no parque perto de casa. Faziam os deveres juntos enquanto falavam mal dos professores e de suas provas terrivelmente difíceis. Comentavam os filmes de terror que assistiam escondidos de madrugada e de como aquilo os assustava, mas, mesmo assim, não conseguiam deixar de vê-los. Embora à noite o parque tivesse sua cota de frequentadores suspeitos, durante o dia era um luga
Capítulo 7 Caminhar pelas ruas no frio matinal fazia bem a Fred. Ele odiava o calor e o fato de morar em país tropical. O sol recém-nascido, de raios tímidos, tinha dificuldade em expulsar a neblina que se debruçava sobre a cidade. O detetive não conseguia se lembrar de um inverno tão frio quanto aquele. O maldito aquecimento global vinha tirando dele um dos poucos prazeres que ainda lhe restavam. O Brasil parecia seguir, ano após ano, cabulando o inverno, até que a fria estação finalmente decidiu revidar, premiando as noites com temperaturas que não passavam dos dez graus e, nas manhãs, os ventos gélidos que sopravam pelas ruas pareciam claramente dizer: “não me desafie”. Elis seguia ao lado do detetive, não estavam dispostos a ficar sentados esperando que Rogério chegasse com seu teatro de envelopes pardos. O prédio do departamento forense era apenas a um quarteirão de distância, e eles decidiram caminhar. -Venha, vamos tomar um café p
Capítulo 8 Quanta petulância e arrogância são necessárias para que eles possam escrever sobre algo que nunca experimentaram? Como podem descrever a dor, a verdadeira dor, sem nunca tê-la sentido? Não há palavras suficientes para traduzir as nuances sublimes de algumas sensações. O papel é frio, enquanto o corpo é quente, vivo e pulsante. Canetas ou teclados não podem substituir o peso gélido de um revólver, ou a beleza silenciosa e poética de uma lâmina. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Caminho até a sala e cada passo me faz estremecer de prazer, porque sei que ela pode ouvir a madeira rangendo sob meus pés, ela escuta minha aproximação. Posso imaginar o suor escorrendo de seu rosto, em gotas, descendo até seus belos e arredondados seios. Isso me excita. Não tenho pressa. Quero que ela me veja trabalhar, quero que entenda por que vai morrer. Quero
Capítulo 9O hospital estava lotado de estudantes de medicina e, embora Pedro não gostasse de ficar bancando a babá, dessa vez relevou, afinal o grupo era formado em sua maioria por belas universitárias que se impressionavam facilmente, não apenas com suas habilidades e conhecimento, mas com seus belos olhos azuis.A noite não estava tão movimentada quanto de costume, e ele se permitiu alguns minutos de descanso após a cirurgia de hérnia bem-sucedida que tinha chefiado, diante dos olhares atentos dos estudantes. Um procedimento simples e rotineiro, o que não tinha impedido seu paciente de chorar, implorando para ser apagado rapidamente pela anestesia. Sentado no refeitório, afastado dos demais médicos e enfermeiras, Pedro tentava se concentrar na reportagem exibida no Jornal Nacional. “... já são três mortos ao longo de pouco mais de vinte dias – dizia o âncora de cabelos grisalhos – e a polícia segue sem apresentar suspeitos.” Sua parceira tomou a
Capítulo 10 Quando Fred pisou na sala do juiz Carlos de Alcântara, o cheiro forte de madeira envernizada fez seu estômago embrulhar. Ou talvez fosse apenas a lembrança das palavras de Romero Garcia ecoando em sua mente, uma merda qualquer sobre quanto ganhavam seus advogados e sobre esquemas corruptos de propina. Fred e Elis foram se juntar ao superintendente Maciel e ao promotor de justiça Roberto Oliveira, que estavam de pé do lado esquerdo da sala, enquanto do outro lado Romero fazia questão de sorrir para Fred. O empresário estava acompanhado de seu advogado, cujo terno, o detetive calculou, deveria custar cinco vezes o seu salário, isso sem contar a gravata, os sapatos e abotoaduras. Apenas depois que o juiz Carlos de Alcântara entrou na sala, e tomou seu assento, munido de ar senhorial, foi que todos se sentaram, exceto os detetives, para os quais faltavam cadeiras. O promotor Roberto tinha explicado seu plano de antemão aos policiais. Infe
Capítulo 1120 anos atrás -Vocês podem ter ganhado no futebol, mas agora vão tomar uma surra que jamais vão esquecer – disse o garoto do bairro vizinho. Atrás dele, mais cinco crianças. Todas vestidas com o uniforme do time, cobertos do barro que tinha se acumulado no campinho devido às chuvas constantes. -E então, Luís? Você é muito bom em falar merda dentro do campo, mas e agora que está com a patinha machucada e não pode correr? Vai fazer o quê? – perguntou o garoto que claramente liderava os demais. Ele era grande e forte, estava bem acima do peso e tinha uma expressão cruel. Luís seguia apoiado nos ombros de Caneta, sua perna estava latejando após uma pancada durante o jogo. Ele sussurrou para o amigo: -Vai embora, pode deixar esses idiotas comigo. Sou eu que eles querem. Caneta sorriu. -Você acha mesmo que eu vou te deixar aqui sozinho com esses imbecis? -Que foi que você disse aí, loirinho? – gr
Capítulo 12 Fred fechou a porta de sua sala, precisava de privacidade. Pegou o telefone e discou uma sequência da qual jamais se esqueceria. Quando ele e Sandra namoravam, a frequência com que se falavam por telefone era tão grande que os números da casa onde a esposa crescera tinham se enraizado profundamente em sua memória, para jamais desaparecerem. O entusiasmo dos dias de namoro era agora apenas uma lembrança vaga, de uma época em que fora verdadeiramente feliz. O que mais lhe despertava saudade daqueles tempos era a simplicidade das coisas. A paixão e o sexo, a conversa e os olhares. Tudo sempre direto e sem melindres, transparente. “A mulher que amarei para sempre”, mas o rapaz que dissera aquelas palavras tornara-se um homem calejado, e nem precisava formar-se detetive para juntar as pistas e descobrir que algumas verdades não são eternas, e que quaisquer certezas sobre o futuro poderiam facilmente escapar-lhe por entre os dedos, sopradas pelos ventos