Capítulo 10 Quando Fred pisou na sala do juiz Carlos de Alcântara, o cheiro forte de madeira envernizada fez seu estômago embrulhar. Ou talvez fosse apenas a lembrança das palavras de Romero Garcia ecoando em sua mente, uma merda qualquer sobre quanto ganhavam seus advogados e sobre esquemas corruptos de propina. Fred e Elis foram se juntar ao superintendente Maciel e ao promotor de justiça Roberto Oliveira, que estavam de pé do lado esquerdo da sala, enquanto do outro lado Romero fazia questão de sorrir para Fred. O empresário estava acompanhado de seu advogado, cujo terno, o detetive calculou, deveria custar cinco vezes o seu salário, isso sem contar a gravata, os sapatos e abotoaduras. Apenas depois que o juiz Carlos de Alcântara entrou na sala, e tomou seu assento, munido de ar senhorial, foi que todos se sentaram, exceto os detetives, para os quais faltavam cadeiras. O promotor Roberto tinha explicado seu plano de antemão aos policiais. Infe
Capítulo 1120 anos atrás -Vocês podem ter ganhado no futebol, mas agora vão tomar uma surra que jamais vão esquecer – disse o garoto do bairro vizinho. Atrás dele, mais cinco crianças. Todas vestidas com o uniforme do time, cobertos do barro que tinha se acumulado no campinho devido às chuvas constantes. -E então, Luís? Você é muito bom em falar merda dentro do campo, mas e agora que está com a patinha machucada e não pode correr? Vai fazer o quê? – perguntou o garoto que claramente liderava os demais. Ele era grande e forte, estava bem acima do peso e tinha uma expressão cruel. Luís seguia apoiado nos ombros de Caneta, sua perna estava latejando após uma pancada durante o jogo. Ele sussurrou para o amigo: -Vai embora, pode deixar esses idiotas comigo. Sou eu que eles querem. Caneta sorriu. -Você acha mesmo que eu vou te deixar aqui sozinho com esses imbecis? -Que foi que você disse aí, loirinho? – gr
Capítulo 12 Fred fechou a porta de sua sala, precisava de privacidade. Pegou o telefone e discou uma sequência da qual jamais se esqueceria. Quando ele e Sandra namoravam, a frequência com que se falavam por telefone era tão grande que os números da casa onde a esposa crescera tinham se enraizado profundamente em sua memória, para jamais desaparecerem. O entusiasmo dos dias de namoro era agora apenas uma lembrança vaga, de uma época em que fora verdadeiramente feliz. O que mais lhe despertava saudade daqueles tempos era a simplicidade das coisas. A paixão e o sexo, a conversa e os olhares. Tudo sempre direto e sem melindres, transparente. “A mulher que amarei para sempre”, mas o rapaz que dissera aquelas palavras tornara-se um homem calejado, e nem precisava formar-se detetive para juntar as pistas e descobrir que algumas verdades não são eternas, e que quaisquer certezas sobre o futuro poderiam facilmente escapar-lhe por entre os dedos, sopradas pelos ventos
Capítulo 13 Quando Elis entrou na sala de Fred, o sol ainda não tinha nascido. Com o pouco movimento da madrugada, a delegacia estava mergulhada em ares soturnos e em quietude plena. A interrupção abrupta da noite de sono estava estampada na face da moça em forma de olheiras arroxeadas e olhos apertados. -Eu trouxe o café que você pediu – anunciou ela. -E onde está? -Eu precisei beber para me manter acordada, já que você resolveu me tirar da cama às três da manhã – ela tentou sorrir, depois tirou a mão de trás das costas revelando o copo de plástico. -O mais forte que encontrou? – perguntou ele. -Como você pediu, Fred. Sobre o que você disse ao telefone – começou ela – faz sentido, mas... -Eu sei. É simples demais, mas não podemos ignorar. Veja bem: Fred virou a tela do notebook para a parceira exibindo uma lista com os principais nomes de romancistas brasileiros que escreviam literatura po
Capítulo 14 Enquanto Elis dirigia de volta para a delegacia, Fred seguia com o pensamento distante, o olhar mirando o horizonte, entrecortado por prédios, postes, fios, gente, vida e movimento, mas sem nada fitar, sem nada eleger como ponto de foco. -Um real por seu pensamento? Ele ficou em silêncio. -Então, um dólar por seu pensamento? Ele se manteve distante. -Estou quase me convencendo de que não sou boa o suficiente para você se abrir comigo. -Não é isso, é que são tantas coisas que não sei por onde começar. O carro parou em um sinal vermelho. Em meio às muitas pessoas que atravessavam a rua, Fred dirigiu seu olhar para a moça que auxiliava um deficiente visual na travessia. -Acho que posso começar por aquele desgraçado do Romero. Como eu gostaria de ter acertado um soco naqueles dentes perfeitos, arrancando pelo menos uns três. Elis se permitiu um sorriso.
Capítulo 15 -Olá, meu amor, como você está aproveitando a folga? – A voz de Bárbara soou do outro lado da linha. -Eu decidi me render ao frio. Peguei a coberta mais grossa, trouxe pra sala e selecionei alguns filmes antigos para ver. -Puxa! Como eu queria estar aí com você agora. E não no meio dessa bagunça toda que anda acontecendo aqui no escritório. -Dia difícil? -Como todos os outros. Isso que estou ouvindo é pipoca estourando no microondas? -Sim. -Como você é covarde. Aposto que aproximou o telefone do microondas só para me fazer inveja. Pedro riu quando seu estratagema foi descoberto. Ele pegou o aparelho, colocou no viva-voz e o deixou sobre a bancada da cozinha. Escolheu uma vasilha grande e virou a pipoca fumegante ali dentro. -Eu também queria que você estivesse aqui – disse, enquanto recuperava o telefone e seguia para a sala. O logo da New Line Cinema acabava de desa
Capítulo 16 -Você não foi pra casa, foi? – perguntou Elis assim que pisou na sala de Fred, nas primeiras horas da manhã. -Não. -Fred, você precisa descansar, – disse ela, trazendo o café da manhã para o parceiro - acredito que você também não comeu nada. -Não – lacônico novamente. -Eu trouxe café extra forte, sanduíches e uns donuts, você precisa de algum açúcar no sangue. -Donuts? Sério? Estamos em algum seriado americano? Porque se for, eu quero receber o mesmo cachê do Kiefer Sutherland – respondeu Fred, com um sorriso cansado. -Pelo menos me diga que conseguiu cochilar aí nessa cadeira. -Acho que sim, um pouco. -Alguma notícia do Rogério? -Ainda não – o detetive aprumou o corpo e estendeu a mão para a bebida fumegante. Em seguida se lançou sobre o sanduíche de pão francês. Alface e tomate dividiam espaço com o patê de presunto. -Isso está muito bom –
Capítulo 17 A planície pontuada por uma miríade de lápides, alinhadas com esmero, era banhada pelas luzes carmim do crepúsculo, que, filtradas pelas copas das árvores, desenhavam sombras tristes que se moviam conforme os rumos imprevisíveis do vento. Gotas morosas de chuva se precipitavam preguiçosamente das folhagens rumo ao chão, aumentando a sensação de melancolia naquela tarde fria, de corações gélidos.O cheiro de terra, grama molhada e dos crisântemos organizados em coroas contribuía para reafirmar a certeza de que uma vida tinha se extinguido. O choro constante e lamurioso de dona Rafaela e seu Eustáquio, pais de Bárbara, que seguiam perto do caixão, marcava os passos daqueles que acompanhavam o cortejo fúnebre até a vala sulcada na terra, que esperava para receber a jovem, enclausurada na caixa amadeirada, cheirando a verniz recém-pintado, que seria agora sua eterna morada. Amigos e parentes se misturavam, unidos por seus pesares e lamentos.