Capítulo 17 A planície pontuada por uma miríade de lápides, alinhadas com esmero, era banhada pelas luzes carmim do crepúsculo, que, filtradas pelas copas das árvores, desenhavam sombras tristes que se moviam conforme os rumos imprevisíveis do vento. Gotas morosas de chuva se precipitavam preguiçosamente das folhagens rumo ao chão, aumentando a sensação de melancolia naquela tarde fria, de corações gélidos.O cheiro de terra, grama molhada e dos crisântemos organizados em coroas contribuía para reafirmar a certeza de que uma vida tinha se extinguido. O choro constante e lamurioso de dona Rafaela e seu Eustáquio, pais de Bárbara, que seguiam perto do caixão, marcava os passos daqueles que acompanhavam o cortejo fúnebre até a vala sulcada na terra, que esperava para receber a jovem, enclausurada na caixa amadeirada, cheirando a verniz recém-pintado, que seria agora sua eterna morada. Amigos e parentes se misturavam, unidos por seus pesares e lamentos.
Capítulo 18 A delegacia estava movimentada. As pessoas passavam apressadas de um lado para o outro. Maciel tinha se trancado em sua sala e não recebia ninguém. Algumas pessoas comentavam que ele bateu a porta com força, assim que seu telefone tocou, e não mais a abriu. -Fred, por que você não vai pra casa e descansa? – sugeriu Elis. Faltavam poucas horas para amanhecer – Deixa o pessoal da perícia trabalhar. Acredito que dessa vez o desgraçado tenha deixado alguma coisa para trás. Nós devemos ter assustado ele. -Isso não aconteceu. -Como você pode saber? -Eu apenas sei – insistiu o detetive – acho que ele estava limpando a casa quando chegamos. O barulho que o seu Norberto ouviu deve ter sido de um aspirador de pó usado pra se livrar de fios de cabelo. Eu consigo imaginá-lo limpando cada superfície com a qual teve contato. O pessoal do Rogério não vai achar nada. -Deixe de ser pessimista, Fred. -Estou
Capítulo 19-Será que dá pra você parar de ficar andando de um lado para o outro, Fred? Já está me deixando nervosa – pediu Elis.Sentada de frente para o seu PC, com a cabeça apoiada nos dedos, a detetive observava as imagens trazidas pelo parceiro. Ao seu lado, Rogério e Flávio espichavam os pescoços a fim de também conseguirem enxergar a tela.-Em nenhum momento ele se aproxima dos computadores – observou Elis.-Ele pode ter acessado pelo celular, dá na mesma se ele estiver usando a rede wifi da lan house – explicou Flávio, especialista no assunto – pelo tempo em que ele ficou com o aparelho em mãos, é provável.-Muito bem, o que fazemos então? – perguntou Elis – Isso aqui não prova absolutamente nada. Ele vai alegar que frequenta o lugar e não podemos prendê-lo por isso.-Desgraçado, desgraçado – Fred seguia murmurando para si mesmo, enquanto continuava com sua caminhada enlouquecida pela sala de Elis, que era muito mais limpa e organizada que a sua.-Fred! Que porra! Dá pra você
Capítulo 20 Fred tentava ao máximo disfarçar sua irritação. Ele tomou um longo gole do “elixir secreto” que ficava no bolso interno de seu sobretudo antes de abrir a porta de sua sala para Luís, que o cumprimentou com uma expressão abatida. -Venha comigo, vamos conversar em um lugar mais reservado, aqui não teremos sossego – pediu o detetive, que saiu da sala depois de pegar uma das pastas no arquivo. Ele guiou o rapaz até a sala de interrogatórios, entrou e trancou a porta atrás de si. -Deve ser mesmo algo muito importante o que você tem pra me dizer – reagiu Luís ao ranger metálico da fechadura. -Tenha certeza de que é. O rapaz tomou a cadeira do outro lado da mesa. O detetive se manteve de pé, e, por algum tempo, apenas observou Luís. “Assassino, assassino!” -E então? – incentivou Luís, mas Fred seguiu apenas encarando o rapaz por mais alguns longos segundos. -Acho que você v
Capítulo 21 Bernardo dirigia de forma automática. As luzes da cidade adormecida passavam por ele em alta velocidade, deixando rastros cintilantes na escuridão da noite. Com apenas uma das mãos no volante, desenhando vez ou outra um arriscado ziguezague na pista, Bernardo discava incessantemente para o telefone de Luís, mas o resultado era sempre o mesmo, o aparelho chamava até cair e a moça da operadora de telefonia lhe saudava com a habitual e irritante felicidade na voz, convidando-o a deixar um recado. Quando freou e estacionou na rua da livraria, ficou surpreso ao encontrar luzes acesas àquela hora da madrugada. Já estava se preparando para arrancar Luís da cama, mas o amigo parecia estar acordado. “Será que estou imaginando coisas? Será que estou errado? Não, não pode existir no mundo tamanha coincidência.”Bernardo tentou enxergar o interior da livraria através do painel de vidros, colocando-se entre os cartazes de promoção que anu
Capítulo 22 Bernardo olhava desconsertado para aquela cena hedionda. Luís estava de pé sobre um banco de plástico, apoiava-se na ponta dos dedos. A corda enlaçada em seu pescoço precisava de apenas alguns poucos centímetros para roubar-lhe o ar. Ao lado dele estava Fernanda, com uma arma apontada para o recém-chegado. A moça sorriu com entusiasmo. -Bernardo! Que bom que você veio. Eu estava triste e decepcionada por ter que terminar tudo sem ter ninguém para assistir ao gran finale. -Fernanda, o que você está fazendo? – ele deu um passo em direção à moça, que apontou a arma para o seu peito. -Estou concluindo minha obra de arte. Já vejo a Rede Globo preparando um roteiro cinematográfico sobre a minha vida. Pensando bem, por que não Hollywood? Warner ou Paramount? -Fernanda, pare com essa loucura. Abaixe a arma. -Na verdade, a Fernanda não está aqui agora – ela coçou a cabeça com o cano da a
EpílogoAlguns dias depois O sol brilhava com intensidade sobre as alamedas que constituíam o cemitério. Luís seguia oferecendo ajuda ao amigo, que manquitolava com o apoio das muletas. -Eu preciso fazer isso, cara. Preciso me virar sozinho – insistia Bernardo. -Tudo bem. Não está mais aqui quem falou. -E se me chamar de saci de novo... -Não fui eu quem disse isso, foi você mesmo – defendeu-se Luís. Quando se aproximaram do túmulo de Bárbara, a alegria de ambos cessou, pontuada pela dor ainda latente de sua enorme perda.Havia mais alguém por ali, de costas para eles. Luís reconheceu a silhueta alta e esguia de Pedro. -Então era isso. Aposto que você armou esse encontro – disse Luís. -Vocês precisam conversar – Bernardo falou alto o suficiente para chamar a atenção do cirurgião, que desviou o olhar da lápide de Bárbara e se voltou para os dois. Sua expressão era de pura tri
Prólogo O inverno chegara marcando seu território com um vento gélido, que vagueava pela tarde sem sol assobiando uma canção melancólica pelas ruas vazias do bairro de classe alta. A mulher, que mantinha a casa fechada para o frio, para os vizinhos enxeridos, fechada até para os amigos do filho menor, tinha cometido o erro de abrir suas portas justamente para aquela pessoa. Ingênua, bastou ouvir as palavras Orquestra Sinfônica e a menção à filha, que se apressou em convidar a visita para entrar. Não pediu qualquer identificação, apenas se preocupou em fazer chá quente e saboroso, com os biscoitos maravilhosos que fazia apenas em ocasiões especiais. A receita era um legado de família. Acreditava que a oportunidade que a filha tanto esperava tinha finalmente batido à porta. Como fora tola. Quando voltou à sala foi surpreendida pelas costas, sentiu uma picada no pescoço e braços firmes a lhe segurar, enquanto a bandeja ia ao chão com grande estardalhaç