Prólogo
O inverno chegara marcando seu território com um vento gélido, que vagueava pela tarde sem sol assobiando uma canção melancólica pelas ruas vazias do bairro de classe alta.
A mulher, que mantinha a casa fechada para o frio, para os vizinhos enxeridos, fechada até para os amigos do filho menor, tinha cometido o erro de abrir suas portas justamente para aquela pessoa. Ingênua, bastou ouvir as palavras Orquestra Sinfônica e a menção à filha, que se apressou em convidar a visita para entrar. Não pediu qualquer identificação, apenas se preocupou em fazer chá quente e saboroso, com os biscoitos maravilhosos que fazia apenas em ocasiões especiais. A receita era um legado de família.
Acreditava que a oportunidade que a filha tanto esperava tinha finalmente batido à porta. Como fora tola. Quando voltou à sala foi surpreendida pelas costas, sentiu uma picada no pescoço e braços firmes a lhe segurar, enquanto a bandeja ia ao chão com grande estardalhaço, espalhando o líquido escuro no tapete branco e imaculado.
Agora, encontrava-se sentada no confortável sofá da sala, os braços caídos em inércia ao lado do corpo, as pernas paralisadas como todo o resto. A visita estava bem à sua frente, alegre, divertindo-se como criança com um brinquedo ganho.
Quando a agulha da primeira seringa penetrou fundo em sua pele, esbarrando no osso, ela quis gritar, mas os lábios não se moveram. A dor foi poderosa e uma lágrima solitária pontuou a verdade de sua agonia. Então vieram as segunda, terceira e quarta, a dor somando-se, sobrepondo-se excruciante, a mente implorando pelo alívio da inconsciência, enquanto o corpo apenas aceitava resignado, sem conseguir reagir.
Ela só queria entender, mas tudo acontecera rápido demais e, quando se dera conta, estava vivenciando na própria pele uma cena que ela mesma imaginara, que desenhara tantas vezes em sua mente, aperfeiçoando os detalhes e aparando as arestas, até que ficasse a ponto de poder se orgulhar, mas agora era vítima de sua própria criação.
Sentia as forças esmaecerem perante a dor e a perda de sangue. Urrava, enjaulada dentro de si mesma. Moveu os olhos para baixo com dificuldade, os globos beirando o extremo de seu campo de visão, até perceber o despontar de um número sem fim de seringas. Foi a última coisa que viu. Dois êmbolos lhe perfuraram os olhos indo de encontro ao cérebro, depois disso... o alívio da inexistência.
Capítulo 1
Se havia uma verdade indubitável que o detetive Frederico Borzagli admitia sobre si mesmo, era que estava cansado, terrivelmente fatigado. Do alto de seus quarenta e dois anos, olhar para trás e lembrar-se de toda a merda na qual seu trabalho o obrigava a chafurdar todos os dias era um estigma que levaria para sempre.
Por muitas vezes, Fred fora espectador no teatro da vida onde o ser humano era capaz de demonstrar o quão vil poderia ser, mas com o sequestro de seu filho, pôde ele flertar com a verdadeira dor. A crueldade dos homens, que até então apenas arranhava a superfície de sua psique, penetrou fundo em sua alma.
Era para ser apenas um dia inocente no parquinho perto de casa, como muitos outros antes daquele. Bastou um descuido da esposa, que conversava animada com as vizinhas, e ele foi privado da presença alegre em sua vida do garoto de três anos, a quem ele amava mais do que a si mesmo.
O pequeno Gabriel era o único raio de sol capaz de romper a escuridão do mundo em que Fred habitava. Deixar o trabalho e mergulhar na inocência do olhar e das palavras do filho era sua cura e sua terapia para manter a sanidade mediante as atrocidades que combatia em seu cotidiano.
Após o sequestro naquela amarga manhã de outono, nunca mais teve notícias do filho. Aquela fora a primeira peça do dominó a tombar, dando início ao efeito em cadeia que levaria sua vida para uma eterna corda bamba de emoções destrutivas e ilusões perdidas.
Do lado de fora do sedan da polícia, as luzes da noite passavam rápidas, distantes e indiferentes, como tudo mais em sua vida. Do banco ao lado, a detetive Elisabete Dias dividia sua atenção entre as ruas pouco movimentadas e a expressão de constante desalento do parceiro.
-O que você está olhando? – perguntou ele sem se virar.
-Não é nada.
-Com você nunca é nada, Elis.
-Já ficou rabugento o suficiente para que eu não possa nem mais olhar para você?
-Não sei, talvez sim.
O espelho do lado do passageiro refletia as feições cansadas de Fred, bem como seus cabelos grisalhos, que tinham aumentado exponencialmente nos últimos dois anos, desde a perda do filho, assim como as rugas e marcas de expressão, como se estes fossem um reflexo honesto de como o detetive se sentia após o vazio que se instalara em sua vida.
-Como vai a Sandra? – perguntou Elis.
Ele demorou a responder, apenas para fazer-se soar nada convincente.
-Ela está bem.
-Fred, você precisa pensar em umas férias. Pegar sua esposa e sei lá... fazer um cruzeiro. Quem sabe aquele do Roberto Carlos?
-Roberto Carlos?Você quer me ver bem, ou morto de tédio?
-Você entendeu o que eu quis dizer. Acho que é hora de você dedicar um tempo a sua família. Você já perdeu demais meu amigo. Não se permita...
-Já chega – disse, elevando a voz para colocar um ponto final naquela conversa e abrindo as portas para o silêncio, companheiro que ele aprendera a valorizar.
O que Fred guardou para si foi que sua família estava acabada. Chegar em casa e ser recebido pela esposa era por demais doloroso. Ele não a culpava. O que aconteceu, aconteceu e ponto final, mas não conseguia deixar de pensar em como tudo teria sido diferente se eles tivessem ficado em casa naquele dia. Se Sandra tivesse convencido o garoto a se contentar com o quintal.
Fred sabia o quanto aquele pensamento era injusto, jamais culparia a esposa pela maldade que se arrastava pelo mundo, alimentando-se da inocência das pessoas de bem, além do mais, chegar em casa e encontrá-la sempre tão fragilizada era uma faca que cortava fundo em seu peito, e o fato de não conseguir forças para consolá-la e levá-la de volta para a luz era ainda pior. Sentia que um não tinha nada mais a oferecer ao outro, e somava-se a isso sua incapacidade de conseguir qualquer pista sobre o paradeiro do filho, se é que ele ainda estava vivo em algum lugar.
A incerteza era uma lâmina desgraçada, uma filha da puta que penetrava somente até certo ponto, uma linha crítica, permitindo que houvesse esperança na vida. Embalando noites insones e dias mais longos do que o normal, que encontravam fim prematuro apenas no fundo de copos e garrafas de um destilado qualquer.
Elizabete deixou que o silêncio se instalasse entre eles como um terceiro passageiro, e conduziu o sedan até o endereço que lhes esperava. Mais trabalho, e este, com certeza, do tipo indigesto.
Um cerco já tinha sido montado pela polícia. As fitas de isolamento distribuídas ao redor da casa. Se havia alguma vantagem em trabalhar em um condomínio fechado, ou em um bairro de ricos como aquele, era que não havia aglomerações de curiosos debruçados sobre as fitas amarelas, sedentos pela carnificina, como abutres sobre os restos de uma batalha medieval.
Os detetives foram recebidos pelo policial que chegara primeiro na cena do crime.
-O que temos aqui... – perguntou Elis, procurando o nome na farda – Bruno?
O rapaz, que não devia passar dos vinte e cinco, mesmo parecendo aturdido e assustadiço, não conseguiu disfarçar o olhar que relanceou para a detetive. Mesmo com os cabelos presos e o terno formal de cores mortas, Elis conservava sua beleza. Aos trinta e cinco anos era uma mulher atraente. Os olhos castanhos eram tão claros que pareciam verdes. A face de bochechas rosadas e lábios carnudos, somada às curvas generosas, eram um convite automático a atrair olhares por onde ela passava. Olhares que a irritavam, pois por trás deles ela imaginava haver o pensamento constante de que sua beleza era maior do que suas habilidades profissionais, e que talvez ela tivesse usado destes dotes para chegar aonde chegara.
Bruno permitiu a passagem dos detetives entre os carros de polícia e os guiou até a varanda da casa, uma bela construção de dois andares em tijolos à vista, com detalhes em madeira que garantiriam um ar acolhedor ao imóvel, não fosse pelo circo armado à sua volta: as luzes das sirenes e os policiais conversando em bandos.
-Eu sei que vocês já viram muita coisa estranha, mas isso aí... – o policial Bruno tinha dificuldade em orquestrar as palavras, claramente afetado.
-Você foi o primeiro a chegar à cena do crime? Quem efetuou o chamado? – perguntou a detetive.
-Fui o primeiro a chegar, recebi a chamada pelo rádio. Quem encontrou o corpo foi a senhora que mora ao lado. Ela tinha feito um bolo confeitado e queria oferecer para as crianças da vizinha.
-A porta estava destrancada?
-Bom, a vizinha, a senhora... – ele revisou suas anotações – Clementina rodeou a casa e viu por uma fresta da cortina as xícaras caídas no chão da sala. Ela achou aquilo estranho, então voltou até sua casa e pegou a chave que tinha consigo, de quando tinha ficado por alguns dias tomando conta dos filhos do casal. Foi quando ela encontrou o corpo.
-Tudo bem, avise à senhora Clementina que iremos ligar amanhã e marcar um horário para tomarmos seu depoimento de maneira formal – disse Elisabete.
-Vocês precisarão de mim lá dentro? – perguntou o policial.
-Sim, você vem conosco – respondeu Elis.
-Por que não dá um descanso para o garoto? – contemporizou Fred, interferindo pela primeira vez.
Após revirar os olhos nas órbitas, a detetive concordou.
-Que seja.
-Obrigado – o rapaz estava verdadeiramente agradecido.
-O que foi aquilo? – perguntou Elis enquanto seguia para a porta.
-Você não percebeu o quanto ele estava abalado?
-Ele é da polícia, precisa se acostumar.
-Você consegue se acostumar? Já se tornou assim tão dura, Elis? – perguntou Fred segurando a parceira pelo braço.
-Vamos fazer nosso trabalho – ela afastou o assunto e libertou o braço da mão de Fred.
O interior da casa era luxuoso e aconchegante. As imagens imortalizadas nas fotos do corredor que os conduzia até a sala sugeriam que aquela era a morada de uma família feliz.
Fred viu algo familiar nas fotos, um rosto que ele conhecia, mas não conseguia dizer de onde.
O que os detetives encontraram na sala justificou imediatamente a expressão vitrificada do policial Bruno. O ar estava viciado, fazia algum tempo que as janelas não eram abertas. O cheiro da morte pairava ao redor, denso e azedo.
Em um dos sofás, já atraindo moscas, a vítima, uma mulher que aparentava pouco mais de trinta anos, estava sentada de frente para a TV, a cabeça tombada de lado, inerte. A boca entreaberta com o despontar de uma língua roxa. Espetadas em sua pele havia quase uma centena de grossas agulhas e seringas. O sangue derramado conspurcava a brancura do sofá e parecia deslocado em meio à sala onde quase todos os móveis eram alvos e imaculados. Um santuário violado.
Os detetives rodearam o cadáver. Nunca tinham visto nada igual, tampouco estavam ansiosos por adicionar aquela figurinha macabra ao álbum funesto que eram suas vidas naquele emprego, mas, como sempre, não costumavam ter opção.
Em meio a uma estranha sensação de déjà-vu, Fred traçou suas primeiras impressões. O desgraçado que fizera aquilo teve muito tempo para trabalhar. Ele com certeza sabia que a vítima estaria sozinha, o que resultava de uma vigília constante à casa ou talvez de uma proximidade com a família. O que incomodava Fred era o modo sórdido escolhido para perpetrar a morte. Todas aquelas seringas, a cabeça tombada com os dois êmbolos trespassando os olhos e indo penetrar fundo no crânio era assustador, e, mais uma vez, a sensação de que já tinha visto aquilo antes.
Quando conseguiu despregar os olhos do corpo, Fred se voltou para o ambiente ao redor e encontrou na parede as linhas de um texto escrito em vermelho.
-Veja isso – disse ele apontando o indicador.
-Que merda é essa? – Elis se aproximou das palavras que adornavam a parede.
O detetive tocou com a ponta do dedo a perna de uma letra “a”, grafada em letra de máquina.
-Acho que isso é sangue – concluiu sem ter certeza.
-Que tipo de psicopata faria uma coisa dessas?
Fred se pôs a ler em voz alta.
“Ele espetou as seringas uma a uma, de maneira calma e metódica. Imobilizada pela droga, a mulher só pôde chorar, seu corpo tendo espasmos, mas aceitando a ponta fria do metal agudo.”
-Meu Deus... – balbuciou o detetive. Seu déjà-vu subitamente explicado.
-O que foi? Está vendo algo que eu não estou?
Fred estava aturdido demais para dar ouvidos à parceira. Ele sabia quem era a vítima. Olhou ao redor e viu uma estante de livros, caminhou até ela e passou o indicador avidamente pelas lombadas, até parar em um volume específico chamado “O Enfermeiro”, que ele abriu na última página e mostrou para Elis.
Ela se aproximou fitando a foto da autora do livro. Não havia dúvidas, mesmo com todas as seringas espetadas no rosto, aquela mulher sem vida no sofá era Natália Brummer.
Fred passou novamente as páginas, folheando-as com tanta força que amassou a maioria delas.
-Está aqui, bem aqui – bateu a palma da mão no livro aberto e o entregou à Elis, que leu em voz alta.
“Ele espetou as seringas uma a uma de maneira calma e metódica. Imobilizada...”
-Mas que merda – exclamou a detetive – esse desgraçado reproduziu a cena tal qual está escrita no livro e a vítima é a própria autora?
-Parece que sim – confirmou Fred com uma expressão sombria.
Capítulo 2 Luís estava debruçado sobre o teclado de seu computador, ter tantos livros à sua volta não ajudava a fazer com que seu texto fluísse com mais facilidade. “... a corda foi puxada com força, erguendo do chão o homem que esperneava. O pescoço não se quebrou por um mero acaso, a vida lhe abandonava em golfadas de ar cada vez menores...” Depois de ler tantos romances policiais, ele estava convencido de que poderia criar algo que fosse aceitável pelo menos para dividir com os amigos, mas acreditava que ainda não tinha chegado a esse ponto, e seu hobby era mantido em segredo. Luís tomava conta da livraria dos pais, que, cansados da vida corrida e barulhenta na grande metrópole, voltaram para os dias tranquilos de cidade de interior, onde as preocupações eram menores e o estresse era apenas uma lembrança de tempos passados. Uma livraria de bairro não era exatamente o grande negócio do século XXI, então, a fim de manter viá
Capítulo 3 A casa limpa com esmero, a mesa posta com perfeição, a comida insuportavelmente deliciosa, temperada com o sabor amargo do silêncio, e, acima de tudo..., a cadeira vazia junto à mesa. Fred já não suportava aquele ritual. Desde o bater dos talheres na louça ao tique-taque alucinante do relógio de parede, que, no vão deixado pela ausência de palavras, soava quase ensurdecedor. Fred sentia-se sufocar. Sentia-se completamente inútil, incapaz de fazer Sandra feliz e incapaz de trazer o filho de volta. Perguntar à esposa sobre seu dia? Não, isso a faria se lembrar de que agora sua vida se resumia apenas a limpar a casa repetidamente, até que houvesse apenas poeira imaginária. Verificar religiosamente se os brinquedos do filho estavam todos enfileirados como ele gostava, esperando sua volta para levá-los para brincar no quintal e, por fim, a jornada rumo à cozinha, para preparar os pratos com sabor dos dias felizes que já
Capítulo 420 anos atrásO garoto subia a rua apressado. Aos dez anos de idade, nada era mais importante do que o futebol contra os garotos do bairro vizinho. A semana na escola tinha sido recheada de provocações e chacotas antecipadas. Perder o jogo estava fora de cogitação.Ele chegou até a porta branca recém pintada. O cheiro de tinta fresca ainda latente. Estendeu a mão e tocou a campainha. Um dingue-dongue clássico ressoou dentro da casa. Ninguém atendeu. Tocou mais uma vez e esperou. O resultado foi o mesmo.Onde estaria o amigo? Os garotos do bairro vizinho eram muito bons e sem o Caneta, o mais habilidoso do time, a possibilidade de derrota era grande. Será que aquele preguiçoso estava dormindo, como costumava fazer depois do almoço?As janelas estavam abertas, então deveria haver alguém em casa. Ele pesou a mão na maçaneta e a porta se abriu, revelando uma sala bonita e aconchegante, cada parede forrada com estantes repletas de livros.O garoto colocou a cabeça no vão da port
Capítulo 5 A sala do detetive andava movimentada nos últimos dias. O superintendente Maciel, que tinha o delicado costume de esquecer-se da existência de Fred, tornou-se figurinha fácil entre aquelas paredes. Parece que o peso do caixão de uma pessoa famosa é maior do que de uma Jane Doe, como diziam nos seriados americanos que ele assistia com a esposa antes de a sala de casa se tornar pequena demais para os dois. -As pessoas estão atrás de respostas, então trabalhe, Fred, e trabalhe rápido. O detetive sabia que Maciel não falava da família da vítima, ou sequer de seus fãs, ele se preocupava apenas com a mídia e a exposição negativa de sua delegacia. Postergar o caso de um João Ninguém não-reclamado, arquivando o processo, era uma coisa, mas tratar alguém famoso da mesma forma era uma heresia, com direito a fogueira em praça pública e transmissão em HD pela Globo News. O problema era que cada ponta solta havia sido explorada e a investi
Capítulo 6 20 anos atrás Luís e Bárbara caminhavam de mãos dadas pelo parque. Aos dez anos, a maioria dos meninos precisava antagonizar as garotas se não quisesse ser motivo de chacota entre os colegas, mas para Luís nada era mais importante do que a companhia de Bárbara. Antes mesmo de descobrir os significados de amor ou paixão, ele sabia que não haveria outra garota em sua vida que não fosse ela.A infância e suas verdades eternas, que duram por horas, dias, ou por toda uma vida. Algumas vezes por semana, depois da aula, os dois se sentavam sob a sombra de uma árvore no parque perto de casa. Faziam os deveres juntos enquanto falavam mal dos professores e de suas provas terrivelmente difíceis. Comentavam os filmes de terror que assistiam escondidos de madrugada e de como aquilo os assustava, mas, mesmo assim, não conseguiam deixar de vê-los. Embora à noite o parque tivesse sua cota de frequentadores suspeitos, durante o dia era um luga
Capítulo 7 Caminhar pelas ruas no frio matinal fazia bem a Fred. Ele odiava o calor e o fato de morar em país tropical. O sol recém-nascido, de raios tímidos, tinha dificuldade em expulsar a neblina que se debruçava sobre a cidade. O detetive não conseguia se lembrar de um inverno tão frio quanto aquele. O maldito aquecimento global vinha tirando dele um dos poucos prazeres que ainda lhe restavam. O Brasil parecia seguir, ano após ano, cabulando o inverno, até que a fria estação finalmente decidiu revidar, premiando as noites com temperaturas que não passavam dos dez graus e, nas manhãs, os ventos gélidos que sopravam pelas ruas pareciam claramente dizer: “não me desafie”. Elis seguia ao lado do detetive, não estavam dispostos a ficar sentados esperando que Rogério chegasse com seu teatro de envelopes pardos. O prédio do departamento forense era apenas a um quarteirão de distância, e eles decidiram caminhar. -Venha, vamos tomar um café p
Capítulo 8 Quanta petulância e arrogância são necessárias para que eles possam escrever sobre algo que nunca experimentaram? Como podem descrever a dor, a verdadeira dor, sem nunca tê-la sentido? Não há palavras suficientes para traduzir as nuances sublimes de algumas sensações. O papel é frio, enquanto o corpo é quente, vivo e pulsante. Canetas ou teclados não podem substituir o peso gélido de um revólver, ou a beleza silenciosa e poética de uma lâmina. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Caminho até a sala e cada passo me faz estremecer de prazer, porque sei que ela pode ouvir a madeira rangendo sob meus pés, ela escuta minha aproximação. Posso imaginar o suor escorrendo de seu rosto, em gotas, descendo até seus belos e arredondados seios. Isso me excita. Não tenho pressa. Quero que ela me veja trabalhar, quero que entenda por que vai morrer. Quero
Capítulo 9O hospital estava lotado de estudantes de medicina e, embora Pedro não gostasse de ficar bancando a babá, dessa vez relevou, afinal o grupo era formado em sua maioria por belas universitárias que se impressionavam facilmente, não apenas com suas habilidades e conhecimento, mas com seus belos olhos azuis.A noite não estava tão movimentada quanto de costume, e ele se permitiu alguns minutos de descanso após a cirurgia de hérnia bem-sucedida que tinha chefiado, diante dos olhares atentos dos estudantes. Um procedimento simples e rotineiro, o que não tinha impedido seu paciente de chorar, implorando para ser apagado rapidamente pela anestesia. Sentado no refeitório, afastado dos demais médicos e enfermeiras, Pedro tentava se concentrar na reportagem exibida no Jornal Nacional. “... já são três mortos ao longo de pouco mais de vinte dias – dizia o âncora de cabelos grisalhos – e a polícia segue sem apresentar suspeitos.” Sua parceira tomou a