O inverno dos escritores mortos (Detetive Borzagli vol 01)
O inverno dos escritores mortos (Detetive Borzagli vol 01)
Por: Miller Britto
Capítulo 01

Prólogo

           

            O inverno chegara marcando seu território com um vento gélido, que vagueava pela tarde sem sol assobiando uma canção melancólica pelas ruas vazias do bairro de classe alta.

            A mulher, que mantinha a casa fechada para o frio, para os vizinhos enxeridos, fechada até para os amigos do filho menor, tinha cometido o erro de abrir suas portas justamente para aquela pessoa. Ingênua, bastou ouvir as palavras Orquestra Sinfônica e a menção à filha, que se apressou em convidar a visita para entrar. Não pediu qualquer identificação, apenas se preocupou em fazer chá quente e saboroso, com os biscoitos maravilhosos que fazia apenas em ocasiões especiais. A receita era um legado de família.

            Acreditava que a oportunidade que a filha tanto esperava tinha finalmente batido à porta. Como fora tola. Quando voltou à sala foi surpreendida pelas costas, sentiu uma picada no pescoço e braços firmes a lhe segurar, enquanto a bandeja ia ao chão com grande estardalhaço, espalhando o líquido escuro no tapete branco e imaculado.

            Agora, encontrava-se sentada no confortável sofá da sala, os braços caídos em inércia ao lado do corpo, as pernas paralisadas como todo o resto. A visita estava bem à sua frente, alegre, divertindo-se como criança com um brinquedo ganho.

            Quando a agulha da primeira seringa penetrou fundo em sua pele, esbarrando no osso, ela quis gritar, mas os lábios não se moveram. A dor foi poderosa e uma lágrima solitária pontuou a verdade de sua agonia. Então vieram as segunda, terceira e quarta, a dor somando-se, sobrepondo-se excruciante, a mente implorando pelo alívio da inconsciência, enquanto o corpo apenas aceitava resignado, sem conseguir reagir.

            Ela só queria entender, mas tudo acontecera rápido demais e, quando se dera conta, estava vivenciando na própria pele uma cena que ela mesma imaginara, que desenhara tantas vezes em sua mente, aperfeiçoando os detalhes e aparando as arestas, até que ficasse a ponto de poder se orgulhar, mas agora era vítima de sua própria criação. 

Sentia as forças esmaecerem perante a dor e a perda de sangue. Urrava, enjaulada dentro de si mesma. Moveu os olhos para baixo com dificuldade, os globos beirando o extremo de seu campo de visão, até perceber o despontar de um número sem fim de seringas. Foi a última coisa que viu. Dois êmbolos lhe perfuraram os olhos indo de encontro ao cérebro, depois disso... o alívio da inexistência.

Capítulo 1

            Se havia uma verdade indubitável que o detetive Frederico Borzagli admitia sobre si mesmo, era que estava cansado, terrivelmente fatigado. Do alto de seus quarenta e dois anos, olhar para trás e lembrar-se de toda a merda na qual seu trabalho o obrigava a chafurdar todos os dias era um estigma que levaria para sempre.

            Por muitas vezes, Fred fora espectador no teatro da vida onde o ser humano era capaz de demonstrar o quão vil poderia ser, mas com o sequestro de seu filho, pôde ele flertar com a verdadeira dor. A crueldade dos homens, que até então apenas arranhava a superfície de sua psique, penetrou fundo em sua alma.

Era para ser apenas um dia inocente no parquinho perto de casa, como muitos outros antes daquele. Bastou um descuido da esposa, que conversava animada com as vizinhas, e ele foi privado da presença alegre em sua vida do garoto de três anos, a quem ele amava mais do que a si mesmo.

O pequeno Gabriel era o único raio de sol capaz de romper a escuridão do mundo em que Fred habitava. Deixar o trabalho e mergulhar na inocência do olhar e das palavras do filho era sua cura e sua terapia para manter a sanidade mediante as atrocidades que combatia em seu cotidiano.

Após o sequestro naquela amarga manhã de outono, nunca mais teve notícias do filho. Aquela fora a primeira peça do dominó a tombar, dando início ao efeito em cadeia que levaria sua vida para uma eterna corda bamba de emoções destrutivas e ilusões perdidas.

            Do lado de fora do sedan da polícia, as luzes da noite passavam rápidas, distantes e indiferentes, como tudo mais em sua vida. Do banco ao lado, a detetive Elisabete Dias dividia sua atenção entre as ruas pouco movimentadas e a expressão de constante desalento do parceiro.

            -O que você está olhando? – perguntou ele sem se virar.

            -Não é nada.

            -Com você nunca é nada, Elis.

            -Já ficou rabugento o suficiente para que eu não possa nem mais olhar para você?

            -Não sei, talvez sim.

            O espelho do lado do passageiro refletia as feições cansadas de Fred, bem como seus cabelos grisalhos, que tinham aumentado exponencialmente nos últimos dois anos, desde a perda do filho, assim como as rugas e marcas de expressão, como se estes fossem um reflexo honesto de como o detetive se sentia após o vazio que se instalara em sua vida.

            -Como vai a Sandra? – perguntou Elis.

            Ele demorou a responder, apenas para fazer-se soar nada convincente.

            -Ela está bem.

            -Fred, você precisa pensar em umas férias. Pegar sua esposa e sei lá... fazer um cruzeiro. Quem sabe aquele do Roberto Carlos?

            -Roberto Carlos?Você quer me ver bem, ou morto de tédio?

            -Você entendeu o que eu quis dizer. Acho que é hora de você dedicar um tempo a sua família. Você já perdeu demais meu amigo. Não se permita...

            -Já chega – disse, elevando a voz para colocar um ponto final naquela conversa e abrindo as portas para o silêncio, companheiro que ele aprendera a valorizar.

            O que Fred guardou para si foi que sua família estava acabada. Chegar em casa e ser recebido pela esposa era por demais doloroso. Ele não a culpava. O que aconteceu, aconteceu e ponto final, mas não conseguia deixar de pensar em como tudo teria sido diferente se eles tivessem ficado em casa naquele dia. Se Sandra tivesse convencido o garoto a se contentar com o quintal.

 Fred sabia o quanto aquele pensamento era injusto, jamais culparia a esposa pela maldade que se arrastava pelo mundo, alimentando-se da inocência das pessoas de bem, além do mais, chegar em casa e encontrá-la sempre tão fragilizada era uma faca que cortava fundo em seu peito, e o fato de não conseguir forças para consolá-la e levá-la de volta para a luz era ainda pior. Sentia que um não tinha nada mais a oferecer ao outro, e somava-se a isso sua incapacidade de conseguir qualquer pista sobre o paradeiro do filho, se é que ele ainda estava vivo em algum lugar.

            A incerteza era uma lâmina desgraçada, uma filha da puta que penetrava somente até certo ponto, uma linha crítica, permitindo que houvesse esperança na vida. Embalando noites insones e dias mais longos do que o normal, que encontravam fim prematuro apenas no fundo de copos e garrafas de um destilado qualquer.

            Elizabete deixou que o silêncio se instalasse entre eles como um terceiro passageiro, e conduziu o sedan até o endereço que lhes esperava. Mais trabalho, e este, com certeza, do tipo indigesto.

Um cerco já tinha sido montado pela polícia. As fitas de isolamento distribuídas ao redor da casa. Se havia alguma vantagem em trabalhar em um condomínio fechado, ou em um bairro de ricos como aquele, era que não havia aglomerações de curiosos debruçados sobre as fitas amarelas, sedentos pela carnificina, como abutres sobre os restos de uma batalha medieval.

            Os detetives foram recebidos pelo policial que chegara primeiro na cena do crime.

            -O que temos aqui... – perguntou Elis, procurando o nome na farda – Bruno?

            O rapaz, que não devia passar dos vinte e cinco, mesmo parecendo aturdido e assustadiço, não conseguiu disfarçar o olhar que relanceou para a detetive. Mesmo com os cabelos presos e o terno formal de cores mortas, Elis conservava sua beleza. Aos trinta e cinco anos era uma mulher atraente. Os olhos castanhos eram tão claros que pareciam verdes. A face de bochechas rosadas e lábios carnudos, somada às curvas generosas, eram um convite automático a atrair olhares por onde ela passava. Olhares que a irritavam, pois por trás deles ela imaginava haver o pensamento constante de que sua beleza era maior do que suas habilidades profissionais, e que talvez ela tivesse usado destes dotes para chegar aonde chegara.

Bruno permitiu a passagem dos detetives entre os carros de polícia e os guiou até a varanda da casa, uma bela construção de dois andares em tijolos à vista, com detalhes em madeira que garantiriam um ar acolhedor ao imóvel, não fosse pelo circo armado à sua volta: as luzes das sirenes e os policiais conversando em bandos.

            -Eu sei que vocês já viram muita coisa estranha, mas isso aí... – o policial Bruno tinha dificuldade em orquestrar as palavras, claramente afetado.

            -Você foi o primeiro a chegar à cena do crime? Quem efetuou o chamado? – perguntou a detetive.

            -Fui o primeiro a chegar, recebi a chamada pelo rádio. Quem encontrou o corpo foi a senhora que mora ao lado. Ela tinha feito um bolo confeitado e queria oferecer para as crianças da vizinha.

            -A porta estava destrancada?

            -Bom, a vizinha, a senhora... – ele revisou suas anotações – Clementina rodeou a casa e viu por uma fresta da cortina as xícaras caídas no chão da sala. Ela achou aquilo estranho, então voltou até sua casa e pegou a chave que tinha consigo, de quando tinha ficado por alguns dias tomando conta dos filhos do casal. Foi quando ela encontrou o corpo.

            -Tudo bem, avise à senhora Clementina que iremos ligar amanhã e marcar um horário para tomarmos seu depoimento de maneira formal – disse Elisabete.

            -Vocês precisarão de mim lá dentro? – perguntou o policial.

            -Sim, você vem conosco – respondeu Elis.

            -Por que não dá um descanso para o garoto? – contemporizou Fred, interferindo pela primeira vez.

            Após revirar os olhos nas órbitas, a detetive concordou.

            -Que seja.

            -Obrigado – o rapaz estava verdadeiramente agradecido.

            -O que foi aquilo? – perguntou Elis enquanto seguia para a porta.

            -Você não percebeu o quanto ele estava abalado?

            -Ele é da polícia, precisa se acostumar.

            -Você consegue se acostumar? Já se tornou assim tão dura, Elis? – perguntou Fred segurando a parceira pelo braço.

            -Vamos fazer nosso trabalho – ela afastou o assunto e libertou o braço da mão de Fred.

            O interior da casa era luxuoso e aconchegante. As imagens imortalizadas nas fotos do corredor que os conduzia até a sala sugeriam que aquela era a morada de uma família feliz.

            Fred viu algo familiar nas fotos, um rosto que ele conhecia, mas não conseguia dizer de onde.

            O que os detetives encontraram na sala justificou imediatamente a expressão vitrificada do policial Bruno. O ar estava viciado, fazia algum tempo que as janelas não eram abertas. O cheiro da morte pairava ao redor, denso e azedo.

            Em um dos sofás, já atraindo moscas, a vítima, uma mulher que aparentava pouco mais de trinta anos, estava sentada de frente para a TV, a cabeça tombada de lado, inerte. A boca entreaberta com o despontar de uma língua roxa. Espetadas em sua pele havia quase uma centena de grossas agulhas e seringas. O sangue derramado conspurcava a brancura do sofá e parecia deslocado em meio à sala onde quase todos os móveis eram alvos e imaculados. Um santuário violado.

            Os detetives rodearam o cadáver. Nunca tinham visto nada igual, tampouco estavam ansiosos por adicionar aquela figurinha macabra ao álbum funesto que eram suas vidas naquele emprego, mas, como sempre, não costumavam ter opção.

            Em meio a uma estranha sensação de déjà-vu, Fred traçou suas primeiras impressões. O desgraçado que fizera aquilo teve muito tempo para trabalhar. Ele com certeza sabia que a vítima estaria sozinha, o que resultava de uma vigília constante à casa ou talvez de uma proximidade com a família. O que incomodava Fred era o modo sórdido escolhido para perpetrar a morte. Todas aquelas seringas, a cabeça tombada com os dois êmbolos trespassando os olhos e indo penetrar fundo no crânio era assustador, e, mais uma vez, a sensação de que já tinha visto aquilo antes.

            Quando conseguiu despregar os olhos do corpo, Fred se voltou para o ambiente ao redor e encontrou na parede as linhas de um texto escrito em vermelho.

            -Veja isso – disse ele apontando o indicador.

            -Que merda é essa? – Elis se aproximou das palavras que adornavam a parede.

            O detetive tocou com a ponta do dedo a perna de uma letra “a”, grafada em letra de máquina.

            -Acho que isso é sangue – concluiu sem ter certeza.

            -Que tipo de psicopata faria uma coisa dessas?

            Fred se pôs a ler em voz alta.

            “Ele espetou as seringas uma a uma, de maneira calma e metódica. Imobilizada pela droga, a mulher só pôde chorar, seu corpo tendo espasmos, mas aceitando a ponta fria do metal agudo.”

            -Meu Deus... – balbuciou o detetive. Seu déjà-vu subitamente explicado.

            -O que foi? Está vendo algo que eu não estou?

            Fred estava aturdido demais para dar ouvidos à parceira. Ele sabia quem era a vítima. Olhou ao redor e viu uma estante de livros, caminhou até ela e passou o indicador avidamente pelas lombadas, até parar em um volume específico chamado “O Enfermeiro”, que ele abriu na última página e mostrou para Elis.

            Ela se aproximou fitando a foto da autora do livro. Não havia dúvidas, mesmo com todas as seringas espetadas no rosto, aquela mulher sem vida no sofá era Natália Brummer.

            Fred passou novamente as páginas, folheando-as com tanta força que amassou a maioria delas.

            -Está aqui, bem aqui – bateu a palma da mão no livro aberto e o entregou à Elis, que leu em voz alta.

            “Ele espetou as seringas uma a uma de maneira calma e metódica. Imobilizada...”

            -Mas que merda – exclamou a detetive – esse desgraçado reproduziu a cena tal qual está escrita no livro e a vítima é a própria autora?

            -Parece que sim – confirmou Fred com uma expressão sombria.

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