Capítulo 5
A sala do detetive andava movimentada nos últimos dias. O superintendente Maciel, que tinha o delicado costume de esquecer-se da existência de Fred, tornou-se figurinha fácil entre aquelas paredes. Parece que o peso do caixão de uma pessoa famosa é maior do que de uma Jane Doe, como diziam nos seriados americanos que ele assistia com a esposa antes de a sala de casa se tornar pequena demais para os dois.
-As pessoas estão atrás de respostas, então trabalhe, Fred, e trabalhe rápido.
O detetive sabia que Maciel não falava da família da vítima, ou sequer de seus fãs, ele se preocupava apenas com a mídia e a exposição negativa de sua delegacia. Postergar o caso de um João Ninguém não-reclamado, arquivando o processo, era uma coisa, mas tratar alguém famoso da mesma forma era uma heresia, com direito a fogueira em praça pública e transmissão em HD pela Globo News.
O problema era que cada ponta solta havia sido explorada e a investigação seguia no zero. O instinto de Fred lhe guiou em direção à droga usada para paralisar a vítima. Pensava em alguém com acesso àquele tipo de medicamento, um profissional da saúde, mas chegou à mesma conclusão que Elisabete. Após meia hora navegando na internet, ele conseguiu encontrar cinco sites diferentes que poderiam fornecer o fármaco. Tinha certeza que, se continuasse procurando, encontraria muitos outros, e poderia até mesmo ganhar o frete grátis, ou um desconto de cinco por cento numa próxima compra, resumindo, uma grande perda de tempo. Qualquer um poderia colocar as mãos em tal medicamento.
Os vizinhos da vítima não tinham visto absolutamente nada. Ele não achou aquilo incomum, pois acreditava que, quanto mais dinheiro as pessoas têm, mais reclusas se tornam. A velha Clementina era a exceção, o que se explicava pelo fato de que sua família habitava aquele bairro desde muito antes dele se valorizar e se tornar um reduto tranquilo para a classe alta.
Quando a porta da sala de Fred foi aberta de forma abrupta, produzindo uma corrente de ar que levantou as pontas dos muitos papéis em sua mesa, ele levantou os olhos de seu PC para fitar um viúvo de feições endurecidas e olheiras profundas, souvenir adquirido nas noites em claro.
-Quero saber sobre as investigações! – esbravejou – Quero saber quem matou minha esposa!
“Você não é o único.”
-Acalme-se, senhor Brummer. Sente-se para que possamos conversar – pediu Fred ao homem de cabelos pretos e sobrancelhas grossas. Os olhos vermelhos e as roupas amarrotadas faziam parte do pacote de ser um homem recém-privado da presença da esposa.
-Não quero me sentar, quero saber por que você não está nas ruas procurando pelo homem que matou minha esposa?
-Nós estamos dirigindo todos os nossos recursos para este caso, o senhor tem minha palavra quanto a isso.
-Não preciso de sua palavra, detetive – apontou o dedo para Fred – eu preciso é ver o homem que matou minha mulher atrás das grades.
Fred se levantou da cadeira. Sabia o efeito que seus quase dois metros poderiam ter quando fizesse sombra no homem menor.
Ele deu a volta na mesa. As duas mãos na cintura. Respirou fundo, como quem carrega um grande pesar.
-Eu sequer posso começar a imaginar a dor que você e sua família estão sentindo neste momento, senhor Brummer, mas posso ter pelo menos um vislumbre. Há cerca de dois anos meu filho foi sequestrado. Há dois anos eu não sei o que é ouvir aquela voz doce me pedindo para lhe contar histórias antes de dormir, ou o som alegre de suas gargalhadas. Eu nem sequer sei se ele ainda está vivo em algum lugar. A única coisa que me faz seguir em frente, além da esperança de algum dia encontrá-lo, é seguir punindo os desgraçados que fazem coisas como essas, que tiram a vida de pessoas inocentes como sua esposa e que privam os lares das famílias de bem de seus entes queridos. Portanto, de um insone para outro, quero que saiba que farei tudo o que estiver ao meu alcance para pegar esse filho da puta. Você pode ter certeza disso.
Ronaldo Brummer avaliou profundamente a expressão de Fred. Em algum lugar entre a amargura e a dor, estampadas na face do detetive como um cartão de visitas, ele encontrou a si mesmo, e pela primeira vez nos últimos dias, foi capaz de chorar.
Os policiais que tinham chegado à porta para verificar a origem dos gritos foram rechaçados por um gesto de Fred, que estendeu suas mãos para os ombros do viúvo desolado.
-Nós vamos pegar esse desgraçado – disse por entre os dentes.
***
A próxima pessoa a passar por aquela porta não o fez de forma menos intempestiva.
-Fred! – A presença da detetive Elis foi precedida por seus gritos, que ecoaram pelo corredor.
-Mas que merda, o que será dessa vez?
-Temos outra vítima – disse ela assim que passou pela porta.
-Outra... – ele teve dificuldades em compreender.
-Mais um escritor. Segundo informaram, é o mesmo padrão.
Até o momento os detetives encaravam o assassinato de Natália Brummer como um ato isolado, fruto, provavelmente, de um fã de mente doentia. Um segundo crime mudava tudo. Estariam diante de um serial?
Fred se levantou quase derrubando a cadeira. A velocidade com que se pôs de pé o fez ficar zonzo.
-Tudo bem com você? – perguntou-lhe a parceira, que o viu se apoiar na parede mais próxima.
-Tudo bem.
“Exceto pelo fato de que não só não encontramos esse desgraçado, como o deixamos matar de novo.”
-Qual o nome da vítima? – perguntou Fred quando já entravam no carro.
-Átila Fernandes.
Fred ficou remoendo aquele nome. Ele o conhecia, mas não conseguia associar o homem a sua obra.
-Acho que já li alguma coisa dele, mas não consigo me lembrar – pontuou enquanto Elis engatava a primeira e arrancava para fora do estacionamento da delegacia.
-Eu dei uma olhada no G****e, parece que ele publicou alguns livros em editoras pequenas, nada muito badalado, mas conseguiu alcançar um público maior quando o livro “Antes do meio-dia” foi aceito e publicado por uma editora de maior visibilidade.
-Sim, sim, claro. É um romance policial. Na história o assassino vai cortando partes da vítima, os policiais tinham até o meio-dia para encontrá-lo a tempo de a cabeça ainda estar no lugar.
-Uma segunda vítima muda tudo – disse Elis, os olhos pregados na pista. A troca constante de faixas e as ultrapassagens refletiam a ansiedade da policial.
-Sim.
O pensamento que cruzou a mente de Fred o deixou enojado de si mesmo.
“Uma nova vítima representa outra chance de encontrarmos pistas.”
Seria uma nova morte um mal necessário?
***
Era uma casa de classe média, encimada em um bairro de classe média, com todos aqueles abutres classe média sobrevoando as fitas amarelas, guiados pelo cheiro de sangue. E por falar em abutres, lá estavam as equipes de TV, como poderiam ter chegado tão rápido? O circo estava armado e faltavam os palhaços, mas Fred tinha certeza de que um nariz vermelho não seria o suficiente para agradar aquelas pessoas. Se ele tivesse que bancar o circense, que fosse o maligno Pennywise de It, A Coisa, assim poderia colocar todos aqueles desgraçados para correr, para que pudesse trabalhar em paz.
-Detetives, mais um escritor morto em menos de duas semanas. Estamos falando de um serial killer? Um matador de escritores? – gritou uma das repórteres que já se lançava em direção ao carro de Fred e Elis. Os holofotes dos operadores de luz cegavam os recém-chegados.
Os detetives ignoraram os repórteres e seguiram através do cerco.
-Policial – disse Elis com o distintivo em mãos para um dos homens que mantinha a multidão afastada – precisamos de um perímetro maior.
-Detetives! Detetives! – Os repórteres eram como mosquitos que eles não conseguiam afastar e seguiam zumbindo em seus ouvidos.
Fred sentiu-se feliz por entrar na casa e deixar aquele tumulto para trás, mas o cheiro que veio de encontro a eles logo o fez mudar de ideia. Ele foi acometido por uma nova vertigem. Apoiou-se na parede para se reequilibrar, sem permitir que Elis percebesse, tudo o que não precisava agora era de sua parceira lhe fazendo discursos inúteis sobre sua saúde.
O odor pungente ficava mais forte a cada passo. Na sala, dois policiais conversavam e faziam anotações.
-Detetives – disse um deles – o corpo está na cozinha.
Fred e Elis seguiram para lá. Passaram por um corredor que desembocava no cômodo frio de azulejos quadriculados em branco e preto.
A imagem grotesca os atingiu em cheio, assim como o forte odor que pairava no ar viciado de janelas fechadas. Os olhos ardiam e era preciso lutar bravamente para manter o almoço quieto dentro do estômago.
O homem, ou o que restava dele, estava amarrado à cadeira. Sobre a mesa, dentro de panelas, havia orelhas, dedos, nariz, pênis, todas as extremidades possíveis foram cortadas e agrupadas de maneira organizada dentro dos vasilhames.
Elis levou a mão à boca, sacou um lenço e cobriu o nariz. Ela saiu rapidamente da cozinha, antes de misturar sua bile e suco digestivo ao sangue da vítima que lavara o chão transformando-o em uma bandeira rubro-negra. Fred queria fazer o mesmo, mas parou para ler os escritos na parede, a marca do assassino, o elo maior entre os crimes.
“Cortarei um pedaço a cada vinte minutos, mas como gostei de você, deixarei que escolha por onde devo começar. Orelha? Nariz? O fura-bolo ou o mata-piolho?”
“O assassino gargalhou enquanto o medo florescia em sua vítima, alimentando sua loucura.”
Capítulo 6 20 anos atrás Luís e Bárbara caminhavam de mãos dadas pelo parque. Aos dez anos, a maioria dos meninos precisava antagonizar as garotas se não quisesse ser motivo de chacota entre os colegas, mas para Luís nada era mais importante do que a companhia de Bárbara. Antes mesmo de descobrir os significados de amor ou paixão, ele sabia que não haveria outra garota em sua vida que não fosse ela.A infância e suas verdades eternas, que duram por horas, dias, ou por toda uma vida. Algumas vezes por semana, depois da aula, os dois se sentavam sob a sombra de uma árvore no parque perto de casa. Faziam os deveres juntos enquanto falavam mal dos professores e de suas provas terrivelmente difíceis. Comentavam os filmes de terror que assistiam escondidos de madrugada e de como aquilo os assustava, mas, mesmo assim, não conseguiam deixar de vê-los. Embora à noite o parque tivesse sua cota de frequentadores suspeitos, durante o dia era um luga
Capítulo 7 Caminhar pelas ruas no frio matinal fazia bem a Fred. Ele odiava o calor e o fato de morar em país tropical. O sol recém-nascido, de raios tímidos, tinha dificuldade em expulsar a neblina que se debruçava sobre a cidade. O detetive não conseguia se lembrar de um inverno tão frio quanto aquele. O maldito aquecimento global vinha tirando dele um dos poucos prazeres que ainda lhe restavam. O Brasil parecia seguir, ano após ano, cabulando o inverno, até que a fria estação finalmente decidiu revidar, premiando as noites com temperaturas que não passavam dos dez graus e, nas manhãs, os ventos gélidos que sopravam pelas ruas pareciam claramente dizer: “não me desafie”. Elis seguia ao lado do detetive, não estavam dispostos a ficar sentados esperando que Rogério chegasse com seu teatro de envelopes pardos. O prédio do departamento forense era apenas a um quarteirão de distância, e eles decidiram caminhar. -Venha, vamos tomar um café p
Capítulo 8 Quanta petulância e arrogância são necessárias para que eles possam escrever sobre algo que nunca experimentaram? Como podem descrever a dor, a verdadeira dor, sem nunca tê-la sentido? Não há palavras suficientes para traduzir as nuances sublimes de algumas sensações. O papel é frio, enquanto o corpo é quente, vivo e pulsante. Canetas ou teclados não podem substituir o peso gélido de um revólver, ou a beleza silenciosa e poética de uma lâmina. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Vocês precisam ser punidos. Caminho até a sala e cada passo me faz estremecer de prazer, porque sei que ela pode ouvir a madeira rangendo sob meus pés, ela escuta minha aproximação. Posso imaginar o suor escorrendo de seu rosto, em gotas, descendo até seus belos e arredondados seios. Isso me excita. Não tenho pressa. Quero que ela me veja trabalhar, quero que entenda por que vai morrer. Quero
Capítulo 9O hospital estava lotado de estudantes de medicina e, embora Pedro não gostasse de ficar bancando a babá, dessa vez relevou, afinal o grupo era formado em sua maioria por belas universitárias que se impressionavam facilmente, não apenas com suas habilidades e conhecimento, mas com seus belos olhos azuis.A noite não estava tão movimentada quanto de costume, e ele se permitiu alguns minutos de descanso após a cirurgia de hérnia bem-sucedida que tinha chefiado, diante dos olhares atentos dos estudantes. Um procedimento simples e rotineiro, o que não tinha impedido seu paciente de chorar, implorando para ser apagado rapidamente pela anestesia. Sentado no refeitório, afastado dos demais médicos e enfermeiras, Pedro tentava se concentrar na reportagem exibida no Jornal Nacional. “... já são três mortos ao longo de pouco mais de vinte dias – dizia o âncora de cabelos grisalhos – e a polícia segue sem apresentar suspeitos.” Sua parceira tomou a
Capítulo 10 Quando Fred pisou na sala do juiz Carlos de Alcântara, o cheiro forte de madeira envernizada fez seu estômago embrulhar. Ou talvez fosse apenas a lembrança das palavras de Romero Garcia ecoando em sua mente, uma merda qualquer sobre quanto ganhavam seus advogados e sobre esquemas corruptos de propina. Fred e Elis foram se juntar ao superintendente Maciel e ao promotor de justiça Roberto Oliveira, que estavam de pé do lado esquerdo da sala, enquanto do outro lado Romero fazia questão de sorrir para Fred. O empresário estava acompanhado de seu advogado, cujo terno, o detetive calculou, deveria custar cinco vezes o seu salário, isso sem contar a gravata, os sapatos e abotoaduras. Apenas depois que o juiz Carlos de Alcântara entrou na sala, e tomou seu assento, munido de ar senhorial, foi que todos se sentaram, exceto os detetives, para os quais faltavam cadeiras. O promotor Roberto tinha explicado seu plano de antemão aos policiais. Infe
Capítulo 1120 anos atrás -Vocês podem ter ganhado no futebol, mas agora vão tomar uma surra que jamais vão esquecer – disse o garoto do bairro vizinho. Atrás dele, mais cinco crianças. Todas vestidas com o uniforme do time, cobertos do barro que tinha se acumulado no campinho devido às chuvas constantes. -E então, Luís? Você é muito bom em falar merda dentro do campo, mas e agora que está com a patinha machucada e não pode correr? Vai fazer o quê? – perguntou o garoto que claramente liderava os demais. Ele era grande e forte, estava bem acima do peso e tinha uma expressão cruel. Luís seguia apoiado nos ombros de Caneta, sua perna estava latejando após uma pancada durante o jogo. Ele sussurrou para o amigo: -Vai embora, pode deixar esses idiotas comigo. Sou eu que eles querem. Caneta sorriu. -Você acha mesmo que eu vou te deixar aqui sozinho com esses imbecis? -Que foi que você disse aí, loirinho? – gr
Capítulo 12 Fred fechou a porta de sua sala, precisava de privacidade. Pegou o telefone e discou uma sequência da qual jamais se esqueceria. Quando ele e Sandra namoravam, a frequência com que se falavam por telefone era tão grande que os números da casa onde a esposa crescera tinham se enraizado profundamente em sua memória, para jamais desaparecerem. O entusiasmo dos dias de namoro era agora apenas uma lembrança vaga, de uma época em que fora verdadeiramente feliz. O que mais lhe despertava saudade daqueles tempos era a simplicidade das coisas. A paixão e o sexo, a conversa e os olhares. Tudo sempre direto e sem melindres, transparente. “A mulher que amarei para sempre”, mas o rapaz que dissera aquelas palavras tornara-se um homem calejado, e nem precisava formar-se detetive para juntar as pistas e descobrir que algumas verdades não são eternas, e que quaisquer certezas sobre o futuro poderiam facilmente escapar-lhe por entre os dedos, sopradas pelos ventos
Prólogo O inverno chegara marcando seu território com um vento gélido, que vagueava pela tarde sem sol assobiando uma canção melancólica pelas ruas vazias do bairro de classe alta. A mulher, que mantinha a casa fechada para o frio, para os vizinhos enxeridos, fechada até para os amigos do filho menor, tinha cometido o erro de abrir suas portas justamente para aquela pessoa. Ingênua, bastou ouvir as palavras Orquestra Sinfônica e a menção à filha, que se apressou em convidar a visita para entrar. Não pediu qualquer identificação, apenas se preocupou em fazer chá quente e saboroso, com os biscoitos maravilhosos que fazia apenas em ocasiões especiais. A receita era um legado de família. Acreditava que a oportunidade que a filha tanto esperava tinha finalmente batido à porta. Como fora tola. Quando voltou à sala foi surpreendida pelas costas, sentiu uma picada no pescoço e braços firmes a lhe segurar, enquanto a bandeja ia ao chão com grande estardalhaç