Capítulo 12 Fred fechou a porta de sua sala, precisava de privacidade. Pegou o telefone e discou uma sequência da qual jamais se esqueceria. Quando ele e Sandra namoravam, a frequência com que se falavam por telefone era tão grande que os números da casa onde a esposa crescera tinham se enraizado profundamente em sua memória, para jamais desaparecerem. O entusiasmo dos dias de namoro era agora apenas uma lembrança vaga, de uma época em que fora verdadeiramente feliz. O que mais lhe despertava saudade daqueles tempos era a simplicidade das coisas. A paixão e o sexo, a conversa e os olhares. Tudo sempre direto e sem melindres, transparente. “A mulher que amarei para sempre”, mas o rapaz que dissera aquelas palavras tornara-se um homem calejado, e nem precisava formar-se detetive para juntar as pistas e descobrir que algumas verdades não são eternas, e que quaisquer certezas sobre o futuro poderiam facilmente escapar-lhe por entre os dedos, sopradas pelos ventos
Prólogo O inverno chegara marcando seu território com um vento gélido, que vagueava pela tarde sem sol assobiando uma canção melancólica pelas ruas vazias do bairro de classe alta. A mulher, que mantinha a casa fechada para o frio, para os vizinhos enxeridos, fechada até para os amigos do filho menor, tinha cometido o erro de abrir suas portas justamente para aquela pessoa. Ingênua, bastou ouvir as palavras Orquestra Sinfônica e a menção à filha, que se apressou em convidar a visita para entrar. Não pediu qualquer identificação, apenas se preocupou em fazer chá quente e saboroso, com os biscoitos maravilhosos que fazia apenas em ocasiões especiais. A receita era um legado de família. Acreditava que a oportunidade que a filha tanto esperava tinha finalmente batido à porta. Como fora tola. Quando voltou à sala foi surpreendida pelas costas, sentiu uma picada no pescoço e braços firmes a lhe segurar, enquanto a bandeja ia ao chão com grande estardalhaç
Capítulo 2 Luís estava debruçado sobre o teclado de seu computador, ter tantos livros à sua volta não ajudava a fazer com que seu texto fluísse com mais facilidade. “... a corda foi puxada com força, erguendo do chão o homem que esperneava. O pescoço não se quebrou por um mero acaso, a vida lhe abandonava em golfadas de ar cada vez menores...” Depois de ler tantos romances policiais, ele estava convencido de que poderia criar algo que fosse aceitável pelo menos para dividir com os amigos, mas acreditava que ainda não tinha chegado a esse ponto, e seu hobby era mantido em segredo. Luís tomava conta da livraria dos pais, que, cansados da vida corrida e barulhenta na grande metrópole, voltaram para os dias tranquilos de cidade de interior, onde as preocupações eram menores e o estresse era apenas uma lembrança de tempos passados. Uma livraria de bairro não era exatamente o grande negócio do século XXI, então, a fim de manter viá
Capítulo 3 A casa limpa com esmero, a mesa posta com perfeição, a comida insuportavelmente deliciosa, temperada com o sabor amargo do silêncio, e, acima de tudo..., a cadeira vazia junto à mesa. Fred já não suportava aquele ritual. Desde o bater dos talheres na louça ao tique-taque alucinante do relógio de parede, que, no vão deixado pela ausência de palavras, soava quase ensurdecedor. Fred sentia-se sufocar. Sentia-se completamente inútil, incapaz de fazer Sandra feliz e incapaz de trazer o filho de volta. Perguntar à esposa sobre seu dia? Não, isso a faria se lembrar de que agora sua vida se resumia apenas a limpar a casa repetidamente, até que houvesse apenas poeira imaginária. Verificar religiosamente se os brinquedos do filho estavam todos enfileirados como ele gostava, esperando sua volta para levá-los para brincar no quintal e, por fim, a jornada rumo à cozinha, para preparar os pratos com sabor dos dias felizes que já
Capítulo 420 anos atrásO garoto subia a rua apressado. Aos dez anos de idade, nada era mais importante do que o futebol contra os garotos do bairro vizinho. A semana na escola tinha sido recheada de provocações e chacotas antecipadas. Perder o jogo estava fora de cogitação.Ele chegou até a porta branca recém pintada. O cheiro de tinta fresca ainda latente. Estendeu a mão e tocou a campainha. Um dingue-dongue clássico ressoou dentro da casa. Ninguém atendeu. Tocou mais uma vez e esperou. O resultado foi o mesmo.Onde estaria o amigo? Os garotos do bairro vizinho eram muito bons e sem o Caneta, o mais habilidoso do time, a possibilidade de derrota era grande. Será que aquele preguiçoso estava dormindo, como costumava fazer depois do almoço?As janelas estavam abertas, então deveria haver alguém em casa. Ele pesou a mão na maçaneta e a porta se abriu, revelando uma sala bonita e aconchegante, cada parede forrada com estantes repletas de livros.O garoto colocou a cabeça no vão da port
Capítulo 5 A sala do detetive andava movimentada nos últimos dias. O superintendente Maciel, que tinha o delicado costume de esquecer-se da existência de Fred, tornou-se figurinha fácil entre aquelas paredes. Parece que o peso do caixão de uma pessoa famosa é maior do que de uma Jane Doe, como diziam nos seriados americanos que ele assistia com a esposa antes de a sala de casa se tornar pequena demais para os dois. -As pessoas estão atrás de respostas, então trabalhe, Fred, e trabalhe rápido. O detetive sabia que Maciel não falava da família da vítima, ou sequer de seus fãs, ele se preocupava apenas com a mídia e a exposição negativa de sua delegacia. Postergar o caso de um João Ninguém não-reclamado, arquivando o processo, era uma coisa, mas tratar alguém famoso da mesma forma era uma heresia, com direito a fogueira em praça pública e transmissão em HD pela Globo News. O problema era que cada ponta solta havia sido explorada e a investi
Capítulo 6 20 anos atrás Luís e Bárbara caminhavam de mãos dadas pelo parque. Aos dez anos, a maioria dos meninos precisava antagonizar as garotas se não quisesse ser motivo de chacota entre os colegas, mas para Luís nada era mais importante do que a companhia de Bárbara. Antes mesmo de descobrir os significados de amor ou paixão, ele sabia que não haveria outra garota em sua vida que não fosse ela.A infância e suas verdades eternas, que duram por horas, dias, ou por toda uma vida. Algumas vezes por semana, depois da aula, os dois se sentavam sob a sombra de uma árvore no parque perto de casa. Faziam os deveres juntos enquanto falavam mal dos professores e de suas provas terrivelmente difíceis. Comentavam os filmes de terror que assistiam escondidos de madrugada e de como aquilo os assustava, mas, mesmo assim, não conseguiam deixar de vê-los. Embora à noite o parque tivesse sua cota de frequentadores suspeitos, durante o dia era um luga
Capítulo 7 Caminhar pelas ruas no frio matinal fazia bem a Fred. Ele odiava o calor e o fato de morar em país tropical. O sol recém-nascido, de raios tímidos, tinha dificuldade em expulsar a neblina que se debruçava sobre a cidade. O detetive não conseguia se lembrar de um inverno tão frio quanto aquele. O maldito aquecimento global vinha tirando dele um dos poucos prazeres que ainda lhe restavam. O Brasil parecia seguir, ano após ano, cabulando o inverno, até que a fria estação finalmente decidiu revidar, premiando as noites com temperaturas que não passavam dos dez graus e, nas manhãs, os ventos gélidos que sopravam pelas ruas pareciam claramente dizer: “não me desafie”. Elis seguia ao lado do detetive, não estavam dispostos a ficar sentados esperando que Rogério chegasse com seu teatro de envelopes pardos. O prédio do departamento forense era apenas a um quarteirão de distância, e eles decidiram caminhar. -Venha, vamos tomar um café p