Capítulo 02

Capítulo 2

            Luís estava debruçado sobre o teclado de seu computador, ter tantos livros à sua volta não ajudava a fazer com que seu texto fluísse com mais facilidade.

            “... a corda foi puxada com força, erguendo do chão o homem que esperneava. O pescoço não se quebrou por um mero acaso, a vida lhe abandonava em golfadas de ar cada vez menores...”

            Depois de ler tantos romances policiais, ele estava convencido de que poderia criar algo que fosse aceitável pelo menos para dividir com os amigos, mas acreditava que ainda não tinha chegado a esse ponto, e seu hobby era mantido em segredo.

            Luís tomava conta da livraria dos pais, que, cansados da vida corrida e barulhenta na grande metrópole, voltaram para os dias tranquilos de cidade de interior, onde as preocupações eram menores e o estresse era apenas uma lembrança de tempos passados.

            Uma livraria de bairro não era exatamente o grande negócio do século XXI, então, a fim de manter viável a obra dos pais, Luís modernizou o lugar e o transformou em um cybercafé e agora havia até mesmo a necessidade de um funcionário, uma garota de dezesseis anos chamada Bianca, filha de um dos vizinhos, que trabalhava meio expediente e era muito atenciosa.

            -Luís – ele ouviu a garota gritar do piso de baixo – já estou indo.

            -Boa noite, Bianca.

            -Boa noite, chefe – respondeu a jovem. O sinete que ficava sobre a porta ressoou pontuando sua partida.

            Depois de desligar o pensamento da garota, que tinha como principal passatempo flertar descaradamente com ele, Luis voltou a encarar a tela do PC tentando espremer as últimas gotas de criatividade, mas acabou dando-se por vencido e desceu para arrumar as coisas para os convidados que não tardavam a chegar.

            Tratava-se de um grupo de amigos de longa data, que dividiram entre eles as brincadeiras da infância e as descobertas da adolescência, bem como o prazer pela literatura, que faziam questão de debater naqueles encontros sagrados das terças-feiras.

            A primeira pessoa a chegar foi Bárbara. Vestida com um elegante terninho preto, que lhe emprestava ares de executiva, Barbara encheu o lugar com sua presença marcante e seus traços altivos de uma beleza clássica. Ela chefiava o departamento pessoal de uma grande empresa de marketing.

            Luís distribuía copos sobre uma das mesas de canto quando a moça foi até ele com os cabelos negros e cacheados esvoaçando. O abraço foi longo e caloroso.

            -Tenho que aproveitar que você chegou primeiro e abraçá-la com gosto, antes que seu namorado chegue para colocar água no meu chopp.

            -Deixe de ser bobo. Por falar nisso, ele já me contou do tombo que você levou no futebol, eu ri tanto que cheguei a engasgar. Quase morri por sua causa.

            -Bem que eu precisava de uma mulher que estivesse disposta a morrer por mim – ele riu do próprio comentário – sente-se, você quer um chá?

            -O de sempre – respondeu ela colocando a bolsa no encosto da cadeira e indo passear pela livraria em busca de novidades – o que você tem para mim?

            -Chegou um romance novo da Sylvia Day, parece ser quente.

            -Você sabe que eu não gosto dessas pornografias emergentes.

            -Sim, claro – a voz de Luís era carregada de escárnio – você não leu Cinquenta Tons de Cinza e todas as suas continuações, também não leu Peça-me o Que Quiser e... vejam só, todas as suas continuações, ou O Amor Não Tem Leis e aquele outro que sempre esqueço o nome. Afinal, não fui eu quem vendeu todos eles para você, não é?

            -Meu Deus, eu preciso urgentemente de outra livraria, uma onde o livreiro não seja um juiz tão chato e rabugento.

            Naquele momento a porta se abriu e mais duas pessoas passaram por ela, uma ruiva de rosto redondo e corado, quase exótica com seus piercings e tatuagens, e um daqueles homens comumente encontrados nos comerciais de margarina, onde famílias brancas felizes ditavam os padrões aristocráticos tradicionais, o médico cirurgião Pedro e a enfermeira Fernanda, que trabalhavam no mesmo hospital.

            Pedro abraçou e beijou Bárbara, a namorada cujo romance já ultrapassava uma década, e Fernanda se lançou sobre Luís, que precisou equilibrar a xícara para não derrubar o chá.

            Os pares se alternaram e enquanto Bárbara e Fernanda trocavam elogios após um abraço apertado, Pedro já rememorava a queda do amigo no futebol, entre risos e anedotas.

            Eles se sentaram e começaram a conversar animadamente, em poucos minutos a porta foi aberta novamente, o sinete que adornava o batente soando mais uma vez.

            -Não precisam se levantar – disse o recém-chegado, um negro de feições alegres, que contornou a mesa cumprimentando um por um, apertos de mão para os homens, beijos para as mulheres.

            -Bernardo, antes de sentar, vire a placa – pediu Luís.

            O rapaz voltou até a porta, colocou o “FECHADO” voltado para a rua e juntou-se aos amigos.

            -E então, já começaram a discutir literatura ou ainda estão falando sobre suas vidinhas medíocres de branco?

               -Ainda estávamos falando de nossas vidinhas medíocres de gente branca – respondeu Bárbara, todos já acostumados com o jeito extrovertido de Bernardo – eu estava dizendo que precisei demitir duas pessoas hoje, um deles era um idiota preguiçoso, mas a moça, puxa, ela era uma boa pessoa e não era má funcionária.

            -Então por que a demitiu?

            -Cortes de funcionários, decisões que vêm de cima.

            -Claro, sempre existe alguém acima. Acredito que nossa amiga, a crise econômica, teve alguma coisa a ver com isso.

            -E o que acontece hoje no Brasil que não se justifique com essa maldita crise? – desabafou Bárbara.

            -Deve ter sido muito difícil – falou Fernanda, envolvendo a mão da amiga nas suas – nós sabemos o quanto você odeia essa parte do trabalho.

            -Que bom que tenho vocês para não precisar reprimir essa coisa.

            -Bárbara, você trouxe o notebook para eu consertar? – perguntou Bernardo.

            -Sim, eu trouxe. Espero que seja rápido e grátis.

            -Não sei qual palavra é mais abusiva, rápido ou grátis. Além do mais, você já deve ter ouvido a respeito de uma mulher chamada Isabel, princesa Isabel – respondeu ele.

            -De que adianta ter um amigo mestre na informática se ele vai me cobrar por sua ajuda?

            -Seu namorado médico pode até não cobrar as consultas, mas seu amigo livreiro ali – apontou para Luís – cobra por todos os livros que você tira dessa livraria decadente, então não me venha pedir serviços na faixa.

            -Quem disse que eu não cobro as consultas? – interferiu Pedro – Sou apenas criativo o suficiente para pedir o pagamento em outro tipo de moeda – ele sorriu maliciosamente, mas só até receber um soco no ombro com a mão pesada da namorada.

            -E quem disse que minha livraria é decadente? – Foi a vez de Luís protestar.

            -Cara, mais da metade de sua renda vem de nós quatro. Acho que isso diz tudo.

            Todos riram muito, até ficarem com lágrimas nos olhos.

            -E então? Todos terminaram o livro? – perguntou Luís.

            -Lu, é claro que não, nós temos vidas corridas, não ficamos o dia inteiro à toa em uma livraria decadente com as pernas pro ar – falou Fernanda abusando da piada ainda viva.

            -Ra, ra, ra. Muito engraçadinha, dona Nanda – rebateu Luís.

            -Na verdade, eu terminei – falou Pedro.

            -Eu também – afirmaram todos os outros.

            -Ah, pessoal, qual é? – Nanda abriu os braços – Fui a única que não terminou? Isso quer dizer que vou ser chicoteada por spoilers de todos os lados, que merda.

            -E este dono de livraria decadente vai ter muito prazer em ser seu carrasco – afirmou Luís, vingativo.

            O livro da semana era “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess, sugerido por Pedro, que era o dono da vez no rodízio das escolhas que sempre garantiam uma grande variedade de temas. Antes dele, Luís tinha sugerido o romance histórico “Os Pilares da Terra”, de Ken Follett, e Bárbara, a obra autobiográfica intitulada “Livre”, de Cheryl Strayed.

            -Em primeiro lugar, preciso dizer que aquele dialeto maldito das gangues é um saco – falou Fernanda.

            -Eu concordo plenamente – afirmou Bárbara – terminei o livro sem conseguir me acostumar.

            -Aquilo são marcas da genialidade do autor – defendeu Pedro, que fora quem sugeriu o livro.

            -Acho que a grande questão na obra é a lavagem cerebral a qual nosso querido Alex é submetido – foi Luís quem levantou a questão, que era por certo o cerne do livro.

            -O cara era um maníaco desgraçado, aquilo foi pouco – disse Bernardo – talvez seja uma solução para os nossos políticos. Seria bom vê-los vomitando sangue todas as vezes em que pensassem em desviar dinheiro público.

            -Concordo que os psicopatas do nosso tempo são tratados bem demais pelo sistema – afirmou Fernanda.

            -Vocês estão de brincadeira, não é? – disse Bárbara – O personagem foi submetido a uma terrível violência, nada justificaria o uso de uma prática tão abominável.

            -Por falar em violência, vocês souberam o que houve com a escritora do livro “O Enfermeiro”? – perguntou Bernardo.

            -Natália Brummer – completou Luís – eu soube que ela foi assassinada.

            -Isso, mas embora os detalhes ainda não tenham vindo a público, os comentários que eu vi em um fórum na internet dizem que ela foi assassinada exatamente da mesma forma que um dos personagens de seu livro.

            -Que coisa terrível! Eu já li “O Enfermeiro”, é um romance policial pesado, narrado em detalhes assustadores – afirmou Bárbara.

            -Alguém mais já leu “O Enfermeiro”? – perguntou Bernardo, mas nenhum dos amigos se pronunciou – pois bem, há uma cena em que o assassino espeta a vítima com uma centena de seringas.

            -Você não está dizendo que... – Bárbara ficou sem palavras, o ambiente alegre e descontraído da mesa de amigos transformou-se rapidamente em uma atmosfera fria e sombria.

            -Estou. É exatamente o que você está pensando. Dizem que ela morreu espetada por quase cem agulhas, tal qual seu personagem. E a coisa não para por aí, uma parte do texto do livro foi escrita na parede com o sangue da autora.

            -Meu Deus – exclamou Fernanda – isso deve mesmo ser o fim do mundo.

            -Não posso acreditar – disse Bárbara, chocada.

            Os rapazes também se entreolhavam, cada um medindo em sua própria escala quão terrível seria a mente do psicopata capaz de tal ato.

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