Capítulo 03

Capítulo 3

            A casa limpa com esmero, a mesa posta com perfeição, a comida insuportavelmente deliciosa, temperada com o sabor amargo do silêncio, e, acima de tudo..., a cadeira vazia junto à mesa.

            Fred já não suportava aquele ritual.

            Desde o bater dos talheres na louça ao tique-taque alucinante do relógio de parede, que, no vão deixado pela ausência de palavras, soava quase ensurdecedor. Fred sentia-se sufocar. Sentia-se completamente inútil, incapaz de fazer Sandra feliz e incapaz de trazer o filho de volta.

            Perguntar à esposa sobre seu dia?

            Não, isso a faria se lembrar de que agora sua vida se resumia apenas a limpar a casa repetidamente, até que houvesse apenas poeira imaginária. Verificar religiosamente se os brinquedos do filho estavam todos enfileirados como ele gostava, esperando sua volta para levá-los para brincar no quintal e, por fim, a jornada rumo à cozinha, para preparar os pratos com sabor dos dias felizes que já não lhes pertenciam.

            Ele sabia que uma espécie similar de receio mantinha Sandra distante e calada.

            Perguntar sobre o dia de alguém que tudo o que mais deseja é ser capaz de separar vida profissional e pessoal era um erro que ela aprendera a não cometer logo nos primeiros anos de casamento, quando o marido passava pela porta da frente transtornado, jogando-se em seus braços e implorando pelo conforto de um abraço silencioso, sem questionamentos. Minutos depois ele estava bem, renovado, e pronto para voltar a ser o homem apaixonado e apaixonante que a conquistara e a enredara em seu carinho, mas do qual sobrara apenas uma figura tristonha e assombrada, torturada pela ausência do pequeno Gabriel.

            -A comida está ótima – disse Fred, forçando-se a romper o silêncio.

            -Obrigada – a resposta monocórdia foi acompanhada de um sorriso tênue, de lábios marcados pela dor.

            -Sandra, eu estive pensando se... talvez... quando este caso em que estou trabalho estiver resolvido, se não seria bom eu separar alguns dias de folga para fazermos uma viagem, só nós dois...

            Assim que deixou escapar aquelas últimas palavras, ele soube que tinha cometido um erro. “Só nós dois, seu estúpido, claro que seríamos apenas nós dois. Nosso filho não está aqui. O Gabriel não está aqui.” Ele quis chorar, mas se conteve. A expressão de Sandra refletia a sua. A amargura represada por frágeis diques prestes a se romper.

            -Seria ótimo – ela quase não conseguiu pronunciar as palavras.

            À noite, deitados lado a lado, não importava o quanto Fred esticasse seu braço, parecia incapaz de alcançar a esposa, como se um enorme deserto os separasse. Ela sempre de costas, costume adquirido para esconder as lágrimas das noites em claro. Ele sempre a fitar a silhueta feminina na penumbra do quarto, lembrando-se de como o sexo era bom e de como se completavam com perfeição, mas agora, tudo aquilo não passava de lembranças, memórias de um passado cuja felicidade se desvanecia e embolorava lentamente para deitar-se no esquecimento.

***

            Fred estava distraído quando a detetive Elisabete entrou em sua sala, acompanhada pelo enviado da perícia.

            A bagunça do cômodo era notável, papéis espalhados sobre a mesa, uma lixeira cheia até entornar, gavetas entreabertas com formulários que pareciam querer se arriscar em uma fuga ousada. O lugar era um reflexo do que a vida do detetive se tornara.

            -Bom dia, Fred – saudou Rogério, homem baixo e gordo. O pescoço desaparecido em algum lugar entre o queixo e a gola da camisa. O cabelo penteado para o lado de forma a esconder os claros sinais da calvície.

            -Bom dia. Sentem-se. O que você tem para nós, Rogério? 

            Elis e o oficial da perícia tomaram seus lugares frente à mesa de Fred.

            -Pois bem, tomarei os métodos do Jack Estripador, seguirei por partes.

            -Meu Deus! Rogério, você não se cansa dessa piada horrível? – perguntou Elis.

            -Não – ele abriu um dos envelopes que carregava – A vítima, como vocês já sabem, é a famosa escritora Natália Brummer, a propósito, vocês já leram algum dos livros dela?

            -Vá direto ao ponto! – bradou Elis.

            -Pois bem, a casa está completamente limpa, não encontramos nenhuma digital que não pertencesse a membros da família ou à vizinha que encontrou o cadáver. Estamos falando de alguém meticuloso, que claramente sabia como proceder. Aqui estão as fotos.

            Ele colocou sobre a mesa as imagens que imortalizavam a psicopatia do assassino. A mesma cena retratada em todos os ângulos possíveis. Cada um mais grotesco que o outro. As dezenas de seringas transformando a vítima no arremedo macabro de um ouriço do mar.

            -O laudo, infelizmente, no que diz respeito a vestígios coletados, é completamente inconclusivo, não temos nada. – Continuou Rogério – vamos para as análises químicas – abriu um novo envelope.

            -Por favor, sabemos que você vai ler um bocado de termos técnicos que não fazemos ideia do que querem dizer, então seja claro, objetivo e resuma para nós – pediu Fred.

            -E quando foi que não fui claro?

            -Hum, que tal algo como... sempre – zombou Elis.

            -Tudo bem, tudo bem. Como vocês dois são mal-humorados. Vocês se merecem mesmo, formariam um casal perfeito.

            -Continue Rogério – pediu Fred, antes que algo em sua expressão delatasse que ele também já tinha pensado naquilo, muitas e muitas vezes, desde que seu casamento se transformara em uma casca vazia.

            -Pois bem, serei sucinto. Nada do que coletamos no corpo da vítima indica violência, não havia marcas que não fossem as das agulhas. As unhas estavam limpas e não foi encontrado um fio de cabelo sequer. A análise toxicológica do sangue já foi mais elucidativa. Encontramos grande quantidade de uma substância chamada brometo de pancurônio, estão familiarizados com esta droga?

            -Não – os detetives responderam juntos.

            -Colocando em termos leigos, posso dizer que o pancurônio é capaz de causar paralisia muscular. É geralmente utilizado em hospitais para imobilizar pacientes quando há necessidade de intubação. O detalhe é que a sensibilidade não é afetada. Ele não possui função analgésica.

            -Está dizendo que aquela mulher pode ter sentido a dor de cada uma daquelas agulhas? – Perguntou Fred.

            -Se ela não tiver desmaiado, ou morrido sufocada pelo efeito que o pancurônio pode causar nos pulmões, tendo em vista que as agulhas que perfuraram os olhos e chegaram até o cérebro foram as últimas a serem injetadas, sim. Ela estava viva, consciente e sentindo uma dor absurda durante todo o processo.

            -Meu Deus! – Exclamou o detetive. Elis estava igualmente abalada. - O que mais tem para nós? E quanto ao telefone, redes sociais, e-mails...

            -O marido da vítima nos forneceu acesso e encontramos emails de um fã bastante exaltado.

            Um novo envelope foi aberto. A transcrição das mensagens colocada sobre a mesa.

E-mail 01, enviado por baltazar-silva27@g***l.com – Olá, meu nome é Baltazar, sou um grande fã e estou lendo “O Enfermeiro”. Estou adorando o livro, parabéns. Um grande abraço.

            E-mail 02. Passei a semana inteira ansioso por uma resposta sua. Mal comi e trabalhei, abrindo minha caixa de e-mail de cinco em cinco minutos, mas tudo bem, pois creio que você seja uma pessoa muito ocupada. Sigo lendo. Um abraço de seu admirador.

            E-mail 03. Creio que você se acha boa demais para responder aos seus fãs. Você deve ser uma puta qualquer que dormiu com o editor para conseguir publicar esta porcaria.

            E-mail 04. Que merda de livro, você matou a personagem pela qual eu estava apaixonado. Como pôde? Sua vadia! Como pôde? Sua puta imunda.

            Os detetives correram os olhos pelos e-mails.

            -Este é o momento no qual você diz que já descobriu quem é esse cara – falou Fred.

            -Infelizmente não, pois na criação de um e-mail não é necessária a comprovação de dados, tampouco é necessário o cadastro de qualquer documento. Então, nós já verificamos o nome e o endereço fornecidos ao servidor e não temos nada. Tudo é falso, mas ainda assim consegui algo para vocês. Meu pessoal da informática, que é extremamente competente, diga-se de passagem, conseguiu o endereço de IP das máquinas usadas para o envio das mensagens e todas vieram de um único lugar, uma lanhouse no centro da cidade.

            -Se o lugar tiver câmeras, podemos cruzar os horários de envio dos e-mails e ter o caso resolvido ainda hoje – Elis não disfarçava a empolgação.

            -O que estamos esperando? – rebateu Fred.            

***

            O endereço ficava em uma rua movimentada, onde cafés e restaurantes disputavam a clientela. A grande maioria era de funcionários do bairro comercial, que cumpriam seus horários de almoço. Crachás balançando nos pescoços e o falatório cheio de termos empresariais eram o tom daquele mosaico humano de espécimes famintos.

            Os detetives entraram na lanhouse. Um local de tamanho discreto, com doze máquinas, naquele momento quase todas estavam ocupadas.

            Antes mesmo de se dirigirem ao rapaz que ficava no balcão, os detetives já procuravam por câmeras nos cantos do teto e das paredes.

            -Boa tarde, somos os detetives Frederico e Elisabete – anunciou o policial mostrando seu distintivo.

            -Boa tarde, meu nome é Ralf – respondeu o rapaz com cabelo estilo moicano e alargadores nas orelhas – em que posso ajudá-los, detetives?

            -Já ouviu falar de Natália Brummer?

            -A escritora? Sim, claro. Que coisa terrível houve com ela. Está em todos os jornais.

            -Ela recebeu vários e-mails de um fã exaltado. E sabemos que as máquinas utilizadas pertencem ao seu estabelecimento.

            O rapaz ergueu as sobrancelhas, parecia assustado.

            -Bom, eu nem sei o que dizer. São tantas as pessoas que usam essas máquinas que eu não poderia saber...

            -Você tem câmeras por aqui?- interferiu Elis indo direto ao assunto.

            -Não. Este é um bairro tranquilo. Nós nunca fomos assaltados, então nunca vimos necessidade de vigilância.

            -Entendo. Dê uma olhada nessas datas e horários, por favor – ela colocou uma folha sobre a mesa – são os registros dos e-mails que a vítima recebeu. Essa pessoa esteve aqui por quatro dias, não acredito que você não tenha reparado em um cliente tão frequente.

            -Escute – o rapaz ergueu as mãos espalmadas – olhe só para esse lugar, eu tenho doze baias, elas vivem ocupadas durante todo o dia, são muitas as pessoas que vêm passar seus horários de almoço aqui fazendo sabe-se lá o quê nesses computadores. À noite o movimento é quase o mesmo. Graças aos muitos bares e clubes noturnos, essa rua fica lotada.

            Os detetives bufaram insatisfeitos.

            -Me desculpe, eu queria muito ajudar, mas não há ninguém que eu possa apontar, eu realmente...

            -Olhe novamente para esses horários! – insistiu Elis.

            O rapaz passou novamente os olhos pelos números e datas. Forçou a mente o máximo que pôde, mas nenhum rosto ganhou forma.

            -Eu sinto muito.

***

            De volta ao carro, Elis bateu a porta com força.

            -Um maldito beco sem saída. Grande perda de tempo – desabafou ela.

            -Ainda temos coisas a investigar. Segundo o Rogério, brometo de pancurônio não é o tipo de droga que se consiga em qualquer farmácia.

            -Você sabe tão bem quanto eu como é fácil para qualquer um comprar qualquer coisa na internet – rebateu Elis.

            -É, mas ainda assim existe a questão do conhecimento específico.

-Que pode ser obtido com o novo deus deste mundo, o onisciente e onipresente, G****e.

            Fred decidiu que era melhor se calar mantendo suas conjecturas para si, a parceira não lidava bem com derrotas e precisaria de um tempo para digerir aquela.

            Ela deu a partida e guiou o carro pelas ruas sufocantes do centro. Rodaram em silêncio por alguns quarteirões até que Fred pediu que Elis estacionasse.

            Sem dizer palavra alguma ele desceu do carro e atravessou a avenida movimentada.

            -Fred, aonde você vai?

            O detetive caminhou até o parquinho que havia ali. O ruído vivaz das crianças que brincavam correndo de um lado para o outro, exalando felicidade, o havia atraído como um poderoso ímã.

            Sentou-se num banco de madeira e deixou o corpo descansar. A mão encontrou o cantil de metal no bolso interior do terno amarrotado. O longo gole de uísque desceu queimando.

            Ele observava as mães conversando despreocupadas, entrementes calculava os riscos que elas estavam correndo ao tirar os olhos dos filhos por um segundo que fosse.

            Uma bola jogada na rua em meio ao fluxo constante de carros. Um tombo do brinquedo de escalar. A presença de um degenerado, espreitando, aguardando pela oportunidade de agarrar uma daquelas pobres e inocentes almas para jogá-las na escuridão da porta de trás de uma vã, para serem vendidas a casais estrangeiros, ou pior, terem seus órgãos negociados no mercado negro.

            Fred sabia que se fosse começar com o jogo do “ruim ou pior” ficaria perdido para sempre na vastidão de males que seu trabalho lhe apresentara durante os quase vinte anos de serviço. Decidiu poupar-se.

            Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque quente da mão feminina. Os dedos de Elis entrelaçando-se aos seus. Ele nem sequer percebera quando ela tomou o lugar ao seu lado.

            -Acho que vou aceitar um gole – disse ela.

            Elis sabia exatamente do que o parceiro precisava, e depois de um gole ruidoso, ofertou de bom grado sua companhia silenciosa.

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