Vovô

Diego passou horas andando pela mansão, recordando em cada canto algo que o fazia sorrir ou entristecer. As conversas descontraídas, as brigas e birras com o irmão mais velho, Luiz, pareciam alojadas em seu quarto e no dele. As broncas carinhosas de sua mãe refletiam em cada objeto frágil, no corrimão de madeira e na janela com grades ao fim do corredor dos dormitórios. Sorriu ao tocar uma barra de ferro. Lembrando a época que não existia nada para impedir que pulasse por ela e quebrasse o braço na queda.

Em alguns momentos amargurou o que podia ter sido e não foi. Os planos de Luiz para o futuro da fábrica, levitando pelo escritório principal. Os seus planos recepcionando-o na porta de entrada...

Adiou ao máximo, mas no fim acabou parado em frente ao quarto de seu pai, sendo engolfado pelo fantasma de uma união que parecia indissolúvel. Sorrisos, lágrimas, carinhos e acusações, estavam trancados naquela quarto.

Mergulhado em lembranças, moveu a cabeça devagar em direção as escadas ao ouvir o som de passos apressados. Foi quando o viu. Um menino de cabelo curto e castanho-escuro que corria em sua direção. O garoto parou a poucos passos de distância, os olhos escuros e curiosos se detendo nele.

Por um segundo, até mais que isso, ficou estático, apenas encarando o menino. Ele era tão parecido consigo que podia se passar por seu filho.

Logo o motivo da semelhança apareceu atrás do menino. Ou nem tanto, visto que Penélope não era a mãe e sim a irmã. Não teve dúvida de que o garoto se tratava do meio-irmão deles.

O ódio se projetou em seu peito e, ignorando os Teixeira, bateu com força na porta do quarto de seu pai. Ao inferno que ele necessitava de descanso. Se dependesse dele, seu pai nunca teria descanso enquanto abrigasse a desgraça da família.

— O vovô não gosta que batam assim — o menino informou o encarando com censura, instruindo impertinente: — Tem que bater com firmeza uma vez, dizer quem é e o que deseja, e aguardar a permissão para entrar.

A arrogância do garoto não o surpreendeu tanto quanto o que dissera ao repreendê-lo.

— Vovô?

O menino assentiu aumentando sua confusão.

— Samuel... — Penélope agarrou a mão do garoto. — Deixe o senhor Roberto descansar um pouquinho mais. Venha comigo! — ela pediu aflita, puxando-o.

No entanto, Samuel não a acompanhou.

— O vovô gosta que eu fale sobre a aula e mostre meu caderno.

Diego quase sorriu ao ver a típica teimosia dos Freitas no pequeno. Penélope não o levaria a lugar algum contra a vontade. Mas a vontade sumiu ao lembrar que aquele menino acabou com o casamento de seus pais e causou a morte de seu irmão.

— Hoje não — Penélope insistiu, a voz aguda e alta por culpa do desespero. Necessitava levar Samuel para longe. Não queria ele perto de Diego.

Antes que pudessem carregar o irmão para longe, Roberto abriu a porta, o corpo debilitado apoiado em uma bengala.

— Que barulheira é essa?

Diego não se impressionou pelo olhar rápido que recebeu do pai, como se não tivessem passado os últimos oito anos sem se verem, falando ocasionalmente por telefone, e só sobre trabalho. Mas surpreendeu-se com o sorriso que ele abriu para Samuel. Nunca, nem mesmo em sua infância, vira o pai sorrir assim. Nem mesmo para Luiz, que tinha sido o filho preferido.

— Entrem!

— Senhor Roberto, acho melhor o Samuel tomar banho antes.

— Deixe de tolice! — cortou o homem em seu costumeiro tom bruto e feições severas. — Entrem!

Os três obedeceram. Samuel empolgado; Penélope trêmula; Diego irritado.

Roberto sentou na cama. Samuel sentou ao seu lado, retirando da mochila o caderno com o desenho de um carro vermelho na capa.

Penélope sentou em uma das cadeiras da mesa de café. Seu corpo ficou imediatamente tenso quando, ao invés de sentar na cadeira no outro extremo da mesa, Diego ficou em pé ao seu lado, uma mão segurando o encosto, a outra no bolso. Podia sentir o calor que emanava do corpo dele.

Respirou fundo. A menos que quisesse sentar na cama ou levantar para ocupar a outra cadeira - o que seria patético -, tinha que manter a tranquilidade e ignorar a presença dele até Roberto dispensa-los.

O observou pelo canto do olho. Ele não parecia se importar com a proximidade. Os olhos e ouvidos estavam atentos à conversa de Roberto com Samuel, e não parecia satisfeito com o que acontecia a sua frente.

Compreendia o que causava nos olhos escuros um brilho flamejante de raiva. Ao lado de Samuel, Roberto parecia outra pessoa. A sombra da doença desaparecia de suas feições, dando lugar a um homem que não ocultava seu amor e carinho pela criança.

Roberto era autoritário, mas com Samuel sua intransigência diminuía. Até era capaz de sorrir. Era assim desde o momento que Penélope provou que Samuel era um Freitas, que deixara Roberto pega-lo no colo.

Eram as demonstrações de afetos de Roberto para Samuel que diminuíram seu ressentimento. No entanto, duvidava que tivessem o mesmo efeito em Diego.

E não tinham. O queixo de Diego doía tamanha a força que exercia para manter os lábios cerrados. Apertava os punhos, as unhas afundando na maciez do estofado. A raiva o corroía ao evocar o preço que a família pagara para o pai ter aquele... Bastardo. Roberto abandonara seu moralismo por completo? Apagou da memória o amado filho Luiz? Esqueceu como Marcela, a esposa, quebrou devido à existência daquela criança?

Desviou o olhar, pousando-o nos fios marrons da cabeleira de Penélope. Sempre considerou cabelo longo atraente e, quando a conheceu, o dela era abaixo da cintura, agora estava na altura dos ombros. Na época a viu dançando, o cabelo balançando no ritmo dos quadris e não conseguiu mais tirar os olhos dela, nem a mente. De imediato a imaginou em sua cama, os longos fios espalhados pelo travesseiro, colados a face acalorada enquanto a possuía.

Incomodado, retirou a mão do encosto para cruzar os braços e deu um passo para o lado, afastando-se o máximo que podia sem demonstrar o quanto ela ainda o afetava.

A culpa era das lembranças de quando ela o ludibriava, se justificou. A desculpa reavivou a determinação em expulsar Penélope e o bastardo de sua casa. Não precisava de nenhum Teixeira ali, destruindo as recordações de sua família. Eles eram a escória, a sujeira que seu pai impôs aos familiares. Se pudesse os expulsaria naquele exato momento. Não demoraria muito a fazê-lo, supôs ao observar o estado decadente do pai.

Sua atenção recaiu sobre Samuel. Os olhos de mesma coloração se encontraram. Os frios de Diego colidindo com os curiosos do menino.

O garoto ergueu o corpo, aproximando-se de Roberto e cochichando algo que fez seu pai olhar em sua direção.

— Vocês não se apresentaram?

Diego conteve a vontade de gargalhar. Não tinha vontade de cumprimentar o motivo da queda de sua família. Não era necessário. Mas seu pai não compartilhar da mesma opinião, pois tomou à dianteira.

— Samuel, esse é o meu filho, Diego. — O garoto sorriu para Diego que não correspondeu. — Diego, esse é o irmão da Penélope, Samuel.

— Prazer em conhecê-lo, Diego!

O menino estendeu a mão. O sorriso morreu aos poucos diante da expressão fechada do Freitas e do vácuo para sua mão estendida.

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