Estava sentada no que só poderia ser descrito como uma cadeira de tortura medieval — aquelas cadeiras rígidas de madeira que parecem feitas especialmente para esmagar a alma de quem ousa encostar. O preceptor falava, ou melhor, declamava, uma ladainha sobre balanços e lucros, com a empolgação de quem narra o crescimento de uma planta.
Eu tentava prestar atenção, juro. Mas, como sempre, minha mente vagava. O relógio dourado na parede, relíquia da escola, parecia mover seus ponteiros em câmera lenta, quase de propósito, como se conspirasse contra minha liberdade. Ao mesmo tempo, minha amiga Sophie, do lado de fora da janela, gesticulava freneticamente. Ela parecia uma mistura de pássaro desengonçado e bailarina em apuros, e eu me perguntava se aquilo era um sinal. Talvez o universo estivesse tentando me dizer algo. Finalmente, o relógio badalou. O som ecoou pelos corredores da escola como um hino à liberdade. Levantei-me tão rápido que derrubei minha pena (sim, ainda usamos penas aqui, porque a escola é ridiculamente tradicional) e metade dos meus papéis no chão. — Hanna! — Sophie apareceu no corredor como um furacão, tentando ajustar suas saias e ao mesmo tempo me chamar. A Lincoln Academy era um espetáculo à parte. Imagine uma mansão vitoriana, com janelas góticas que pareciam olhar dentro da sua alma, e um jardim tão florido que parecia ter saído de um quadro. Claro, todo esse esplendor vinha com o preço de corredores frios o suficiente para você precisar de um cobertor. Algumas salas ainda tinham candelabros, e os pisos de madeira rangiam como se estivessem reclamando de cada passo. Resumindo: era um lugar perfeito para aprender ou, no meu caso, perder totalmente a concentração. — Hanna! Espere! Não pode ir embora agora! — Sophie gritou, correndo atrás de mim. — Sophie, o que foi dessa vez? — perguntei, ajustando minha bolsa de livros enquanto respirava o ar fresco do jardim. — Um eclipse solar? O Lorde Fitzroy pediu sua mão em casamento? O salão de chá está servindo biscoitos de graça? — Não brinque, é sério! Ele está aqui! Parei no meio do caminho. — Ele quem? — perguntei, olhando para ela com uma sobrancelha arqueada. — Ele, Hanna! O Hyun Choi. Se o nome soou como trovões para Sophie, para mim soou mais como um vento ligeiro. Claro, eu já ouvira falar dele. O magnata jovem, brilhante e incrivelmente bonito da Choi’s Manufactures, a maior empresa têxtil da região. Ele estava na escola porque, como em todos os anos, vinha recrutar alunos para um estágio na empresa. O que ninguém mencionou é que ele era um pedaço de mau caminho. Mas antes que eu pudesse responder algo espirituoso, meu destino se manifestou. Tropecei. Não foi um tropeço qualquer, daqueles que você consegue disfarçar com elegância. Foi um tropeço cinematográfico. Meu pé encontrou o degrau errado da escada, e, em segundos, lá estava eu, rolando escada abaixo com a graça de um saco de batatas. O universo, sempre com seu senso de humor peculiar, decidiu que eu não cairia sozinha. Não, eu precisava levar alguém comigo. Quando finalmente parei, estava estatelada no chão, e, para meu horror, quase esmaguei um homem que subia as escadas. Um homem alto, com um casaco que parecia mais caro do que minha vida inteira. Levantei o olhar, ainda tonta, e o encontrei. Ele não era apenas bonito; era perfeito. Seus olhos escuros brilhavam como carvão em brasa, e seu rosto tinha aquela simetria irritante que só existe em pinturas. E então percebi que ele estava me encarando com uma mistura de irritação e confusão. — Perdão! Perdão! — gaguejei, tentando me recompor enquanto ainda estava semi-deitada no chão. Ele estendeu a mão para me ajudar a levantar, mas seu olhar parecia dizer: “Será que devo ajudar, ou deixo essa criatura aprender uma lição?” — Está bem? — ele perguntou, finalmente, com uma voz rouca que fez minha mente divagar por dois segundos sobre o alinhamento astral dele. (Provavelmente um Escorpião, pensei.) Segurei sua mão e me levantei, tentando recuperar minha dignidade. — Sempre estou bem! — declarei, com um sorriso que esperava parecer confiante, mas que provavelmente saiu mais como um “socorro”. Sophie, que assistia à cena de longe, correu até mim, os olhos arregalados como pires. — Hanna, ele é o Hyun Choi! — sussurrou, como se o próprio rei da Inglaterra estivesse diante de nós. Se minha mente já estava bagunçada antes, agora era um pandemônio completo. Hyun Choi. O homem que poderia decidir meu futuro em um piscar de olhos. O homem que eu acabara de quase matar com minha habilidade única de ser um desastre ambulante. Ele, por sua vez, olhou para mim como quem avalia uma peça rara em um leilão. — Na próxima vez, senhorita, tente ser mais cuidadosa. E com isso, ele se virou e começou a subir as escadas. Mas, claro, não sem antes lançar um sorriso levemente sarcástico por cima do ombro. — Ah, e senhorita... cuidado para não fazer da escada sua residência permanente. Se o universo tivesse um rosto, eu o socaria naquele momento. — Sophie, você ouviu isso? Ele é insuportável! — exclamei, apertando os punhos. — Hanna, você acabou de arruinar sua única chance de entrar na Choi’s. — Arruinar? Ele que é um grosseirão! Sophie balançou a cabeça, claramente sem esperanças. — Hanna, você acredita em energia, certo? Então respire fundo e pense: O que o universo está tentando te ensinar? Respirei fundo. — Que eu preciso mostrar a ele quem eu realmente sou. Ele ainda vai me ver na Choi’s, Sophie. Vou provar que sou mais do que uma senhorita desastrada! Sophie soltou um suspiro exasperado. — Vamos começar com: não tropece mais.Capítulo 2 ✦✦✦ Depois da confusão na escola, Sophie e eu nos dirigimos para minha carruagem. Não era a mais moderna da época, mas servia bem para minhas necessidades. Meu pai a comprara de segunda mão, mas os estofados de veludo e o brasão discreto da nossa família na lateral ainda mantinham um ar de dignidade. — Finalmente, algo que não vai me decepcionar hoje, — murmurei, ajudando Sophie a subir. O cocheiro, um senhor idoso chamado Sr. Wicks, que trabalhava conosco há anos, ajeitou o chapéu e pegou as rédeas. — Para onde, senhoritas? — ele perguntou. — Para a confeitaria da Sra. Marley, por favor, — respondi, enquanto me acomodava no assento e fechava a porta da carruagem. A viagem começou tranquila, com o som das rodas nos paralelepípedos ecoando pelas ruas. Porém, a poucos quarteirões de distância, senti um solavanco estranho. — O que foi isso? — perguntei, inclinando-me para a janela. — Parece que uma das rodas não está em boa forma, senhorita, — disse o Sr. Wicks, para
— Ah, Hanna, pensando aqui , a sua amiga Ivy é uma criatura impossível! Ela sempre se interessa por todos os cavalheiros que cruzam o nosso caminho. Uma verdadeira víbora! — Sophie disse, com um tom de brincadeira, mas com um olhar preocupado.A verdade era que Ivy tinha um comportamento inusitado para a época. Conheci-a através do meu irmão, Ryan. Ela havia estado com ele, mas logo deixou-o de lado, envolvida com outros cavalheiros, sem se prender a ninguém.Quando Ivy se ofereceu para dividir a residência comigo, eu aceitei com certo receio, mas sabia que não teria outra escolha, pois a ajuda era necessária para lidar com as despesas. Viver em uma cidade pequena como Porto do Vale, onde nasci, não oferecia muitas oportunidades para uma moça como eu, que desejava se formar em uma disciplina prática, voltada para a administração de recursos, incluindo o estudo de economia doméstica e gestão de contas de família. A única instituição de ensino mais próxima era a Academia de Lincoln, ond
Ivy, como sempre, estava determinada a transformar a noite em um evento cheio de emoção e, como ela dizia com um sorriso travesso, "aventuras que desafiariam as convenções". Eu, por outro lado, só queria desfrutar de uma noite tranquila de chá e boas risadas, longe de complicações.Chegamos à sala de chá, um lugar frequentado por jovens damas e cavalheiros da cidade, onde conversas educadas e música de salão preenchiam o ambiente. As cadeiras estofadas e as porcelanas finas contrastavam com a agitação que eu sabia que Ivy carregava em seu coração.— Três xícaras de chá de jasmim, por favor. — Ivy pediu, dirigindo um sorriso encantador ao garçom, um jovem de aparência respeitável.— Meninas, lembrem-se, esta deve ser uma noite tranquila. Nada de aventuras hoje. — Sophie disse com um olhar sério, mas sempre gentil.— Oh, não se preocupe, Sophie. Estamos aqui para relaxar e desfrutar de um bom chá. — Respondi, tentando alinhar minha disposição com a dela.No entanto, Ivy parecia inquieta
Aquela voz grave e profunda me fez estremecer da cabeça aos pés. Olhei lentamente para o audaz cavalheiro à minha frente, que parecia estar convencido demais, acusando-me de estar procurando por ele? Ora, na verdade, estava, mas ele não deveria ter a audácia de perceber isso.Quando meus olhos se encontraram com os dele, quase duvidei de meus próprios sentidos.— Senhor Hyun Choi?— Olá outra vez, senhorita desastrada.Que impertinente! Ele estava a me seguir? Seria o destino que o colocava em meu caminho? Não sabia, mas uma vontade repentina de me levantar e fugir dele tomou conta de mim. Contudo, a quantidade de licor em meu sistema só me fez soltar uma gargalhada diante do "Oláoutra vez , senhorita desastrada". Dei-lhe um leve empurrão no ombro e, pela primeira vez, vi seu sorriso completo, tão encantador, tão perfeito... Ah, licor.Ele ficou ali, observando-me com um olhar travesso, mordendo o lábio. De repente, tive a irresistível vontade de morder aquele lábio. Será que o licor
— Ora, Ivy, o que está a fazer? — disse eu, encarando-a enquanto ela sorria com aquele ar travesso.— Sua atrevida, já está na hora de regressarmos a casa!Ela tomou minha mão e começou a puxar-me sem cerimônia. Olhei para trás e vi o senhor Hyun permanecendo imóvel, fitando-me com uma expressão impossível de decifrar.Quem Ivy pensa que é para interromper um momento tão mágico, tão intenso, tão maravilhoso? Agora, sinto um aperto no peito, quase como se fosse chorar. Céus, não devo estar em meu juízo perfeito!— Amiga, diga-me que estou a delirar! Você beijou o senhor Hyun! — exclamou Sophie, visivelmente escandalizada com a cena que acabara de presenciar.Eu apenas esbocei um sorriso débil, ainda sentindo os efeitos do vinho que havíamos tomado. Contudo, no fundo, eu queria chorar. Fiz um pequeno bico, olhando para elas com ar de desalento.— Perdoe-me, minha querida. — disse Sophie, ajeitando a luva de renda como quem tenta disfarçar a situação. — Desejava que nos divertíssemos mai
Salão de Reuniões do Lorde HarringtonEntramos eu e Sophie, claramente ansiosa, retorcendo o lenço entre os dedos, acompanhadas de outros três jovens de distintas salas , exceto o Gregory que já estava lá. O ambiente era austero, decorado com cortinas de veludo verde e um imponente relógio de pêndulo que marcava cada segundo de nossa expectativa.— Senhores, por favor, tomem seus lugares. — anunciou o mordomo com voz firme e postura impecável, indicando as cadeiras dispostas ao redor da longa mesa de mogno.Ele abriu um pergaminho e começou a leitura dos nomes:— Heitor Lee.— Sophie Will.— Claire Leblanc.— Gregory Rodrigues.— Hanna Young.Meu coração acelerou quando ouvi meu nome, e Sophie apertou minha mão por baixo da mesa.O Lorde Harrington, um homem de meia-idade com cabelos grisalhos perfeitamente alinhados, se levantou com uma postura imponente. Sua voz ecoou pelo salão:— Meus parabéns aos presentes. Vocês foram cuidadosamente selecionados pelo prestigiado senhor Hyun Cho
A Sophie veio me buscar e, nossa, como ela estava linda.— Você veio para causar uma boa impressão, não é? — comentei, analisando-a da cabeça aos pés.— Nem me fale. E você? Está deslumbrante como sempre.Sorri, olhando rapidamente para mim mesma. Eu usava um vestido preto de corte simples, mas elegante, com detalhes em renda que valorizavam a cintura. Havia combinado com um sapato de salto baixo, pois sabia que o dia seria longo. Hoje começaríamos uma nova etapa, e cada um de nós seria alocado em uma área específica dentro da Companhia Choi.O caminho até lá foi repleto de conversas animadas com Sophie. Mas, à medida que nos aproximávamos, meu coração começou a disparar — não apenas pela importância do momento, mas pela expectativa de reencontrar o senhor Hyun.Chegamos à entrada principal, e a grandiosidade da Companhia Choi já era evidente. As paredes de pedra cinza estavam impecáveis, e os vitrais coloridos davam ao edifício um ar majestoso. Uma senhora de postura impecável, vesti
Ele me apresentou formalmente aos meus colegas de trabalho, incluindo meu líder direto, o jovem e cortês senhor Gustavo. Com seu tom impecavelmente profissional, o senhor Hyun descreveu as responsabilidades que eu teria como estagiária e detalhou os processos com uma clareza que demonstrava domínio absoluto de tudo o que ocorria ali. Enquanto caminhávamos pela imponente sala de marketing, os sons de canetas rabiscando e folhas sendo folheadas ecoavam suavemente, complementando a atmosfera dinâmica do ambiente onde eu começaria a trabalhar.Quando concluímos o tour, ele pegou delicadamente minha mão enluvada, seus dedos exercendo uma pressão sutil, mas firme. Seu olhar, intenso e profundo, encontrou o meu, fazendo meu coração disparar com um misto de nervosismo e curiosidade. Era como se, naquele momento, apenas nós dois estivéssemos ali.— Agora é com você, Gustavo.A voz dele soou autoritária e precisa, como se não houvesse espaço para réplica. Sem sequer olhar para o senhor Gustavo,