Naquela manhã, o som insistente de batidas na porta me tirou dos devaneios enquanto terminava de prender o cabelo em um coque desajeitado. Ainda vestida com minha camisola de cetim, fui até a porta e a abri, encontrando um garoto de uns dez anos segurando um envelope.— Para a senhorita Hanna — disse ele, me entregando a carta com um sorriso curioso antes de sair correndo.Fiquei parada por um instante, sentindo meu coração acelerar. Fechei a porta e deslizei os dedos sobre o papel. A caligrafia elegante no envelope já denunciava o remetente."Senhorita Choi", dizia no topo da carta.*"Espero que minha ausência não esteja tornando sua rotina entediante. O escritório deve estar sem graça sem alguém para te provocar, e imagino que o Sr. Gustavo tenha ocupado meu lugar no seu refeitório favorito. Injusto.A semana será longa, mas quero que lembre de mim em cada pequeno detalhe do seu dia. Afinal, seria egoísmo da minha parte deixar você me esquecer, não acha?Cuide-se. Mas não muito. Eu
O expediente seguia normalmente, mas algo estava diferente. O Sr. Gustavo, sempre educado e profissional, parecia… estranho.Durante a manhã, peguei-me algumas vezes sendo observada por ele. Não de forma invasiva, mas com um olhar que se prolongava um pouco mais do que o habitual. Como se ele quisesse dizer algo, mas hesitasse.Enquanto organizava um relatório, ouvi sua voz interromper o silêncio:— Hanna…Levantei o olhar. Ele parecia nervoso.— Sim?Ele pigarreou e passou a mão pela nuca, como se estivesse reunindo coragem.— Você já almoçou?— Ainda não.— Quer almoçar comigo hoje?Fiquei surpresa com o convite. Sempre almoçávamos em grupo ou com Sophie, mas, naquele dia, ela estava atolada de trabalho e disse que ficaria no escritório.— Claro — respondi, sem pensar muito.Afinal, era só um almoço.O restaurante era discreto e elegante, com uma vista bonita da cidade. Sentamos em uma mesa perto da janela, e, enquanto eu analisava o cardápio, percebi que o Sr. Gustavo estava inquie
Acordei mais tarde que o normal e sentei-me na cama, ainda sonolenta, apesar de ter dormido muito bem. Sorri sem motivo aparente; sentia-me leve. Espreguicei-me e abri as cortinas do meu pequeno quarto. O sol já batia forte pela janela, iluminando o jardim verde, repleto de flores coloridas.Desci ainda vestindo minha camisola branca, com rendas detalhadas na gola, nos punhos e nos babados da barra. Com minhas pantufas quentinhas, fui descendo os degraus da escada quando ouvi um barulho atrás de mim: Ivy se espreguiçava ao sair do quarto.— Bom dia, donzela. — disse ela, já me provocando logo cedo.— Bom dia, Ivy. — Respondi, revirando os olhos.Como ela podia ser bonita até ao acordar? Seus cabelos longos e loiros estavam presos em uma trança elegante, e seus olhos verdes, cheios de mistério, reluziam mesmo sob a luz da manhã. Suas bochechas e lábios rosados davam a impressão de que estava sempre maquiada.Ivy desceu os últimos degraus com um sorriso preguiçoso e jogou-se no sofá da
A manhã avançava enquanto Ivy terminava os últimos retoques no penteado diante do espelho dourado de sua penteadeira. Seus cabelos loiros estavam presos em um penteado ousado para a época: um coque alto, adornado com pequenas pérolas entre os fios entrelaçados. Vestia um vestido azul-petróleo de tecido brilhante, com mangas bufantes e decote quadrado, exibindo mais pele do que era considerado apropriado para uma dama respeitável. O corpete justo realçava sua silhueta, e a saia volumosa arrastava-se levemente pelo chão.— Está olhando tanto porque acha que estou linda ou porque quer me dizer que pareço indecente? — Ivy perguntou, encarando Hanna pelo espelho com um sorriso travesso.Hanna, já vestida e pronta, cruzou os braços. Seu vestido era muito mais discreto: um elegante tom de vinho, com mangas longas e gola alta rendada, perfeitamente adequado para a ocasião. Seus cabelos castanhos estavam presos em um coque baixo, com algumas mechas soltas moldando seu rosto.— Acho que se eu d
O parque estava em seu auge. O burburinho das conversas, o som das crianças brincando e o cheiro doce de açúcar caramelizado tornavam o ambiente ainda mais animado. Ivy, como sempre, se destacava entre as três, tanto pela forma desinibida como andava quanto pelo vestido chamativo — de um tom azul vibrante, com detalhes em renda creme e um decote um pouco mais ousado do que o esperado para damas respeitáveis.Hanna e Sophie já estavam acostumadas com os olhares que Ivy atraía, mas ainda assim, não deixavam de se impressionar quando dois cavalheiros distintos acenaram para ela de longe.— Ah, mas vejam só quem está aqui... — Ivy sorriu, jogando os cachos dourados para trás.— Você os conhece? — Hanna perguntou, desconfiada.— Digamos que já compartilhamos algumas conversas divertidas em um baile ou dois — Ivy respondeu, já caminhando em direção a eles.— Claro que sim — Sophie murmurou, cruzando os braços.Hanna suspirou.— Não quero ficar aqui assistindo isso. Vamos até a sorveteira?S
Assim que Ivy nos encontrou, ela apareceu radiante, de braços dados com um cavalheiro alto e muito bem-apessoado, enquanto outro, um pouco mais baixo, caminhava logo atrás, claramente encantado com sua companhia.— Ah, aqui estão vocês! — disse, sorrindo. — Espero que tenham aproveitado sem mim, mas duvido que tenham se divertido tanto quanto eu!Troquei um olhar com Sophie.— Tenho certeza de que a senhorita encontrou formas bem interessantes de se entreter — respondi, arqueando uma sobrancelha.— Oh, Hanna, não seja tão séria! — Ivy revirou os olhos, soltando-se dos cavalheiros com um sorriso. — Mas agora, podemos ir? Estou exausta de tanto ser cortejada.— Exausta, é? — Sophie riu. — Que sofrimento o seu.Ivy piscou para nós, divertida, antes de se despedir de seus admiradores com uma leve inclinação de cabeça. Logo depois, voltamos para a carruagem, onde o cocheiro nos aguardava pacientemente.O caminho de volta foi tranquilo, mas Sophie, como sempre, não perdeu a oportunidade de
Estava sentada no que só poderia ser descrito como uma cadeira de tortura medieval — aquelas cadeiras rígidas de madeira que parecem feitas especialmente para esmagar a alma de quem ousa encostar. O preceptor falava, ou melhor, declamava, uma ladainha sobre balanços e lucros, com a empolgação de quem narra o crescimento de uma planta.Eu tentava prestar atenção, juro. Mas, como sempre, minha mente vagava. O relógio dourado na parede, relíquia da escola, parecia mover seus ponteiros em câmera lenta, quase de propósito, como se conspirasse contra minha liberdade. Ao mesmo tempo, minha amiga Sophie, do lado de fora da janela, gesticulava freneticamente. Ela parecia uma mistura de pássaro desengonçado e bailarina em apuros, e eu me perguntava se aquilo era um sinal. Talvez o universo estivesse tentando me dizer algo.Finalmente, o relógio badalou. O som ecoou pelos corredores da escola como um hino à liberdade. Levantei-me tão rápido que derrubei minha pena (sim, ainda usamos penas aqui,
Capítulo 2 ✦✦✦ Depois da confusão na escola, Sophie e eu nos dirigimos para minha carruagem. Não era a mais moderna da época, mas servia bem para minhas necessidades. Meu pai a comprara de segunda mão, mas os estofados de veludo e o brasão discreto da nossa família na lateral ainda mantinham um ar de dignidade. — Finalmente, algo que não vai me decepcionar hoje, — murmurei, ajudando Sophie a subir. O cocheiro, um senhor idoso chamado Sr. Wicks, que trabalhava conosco há anos, ajeitou o chapéu e pegou as rédeas. — Para onde, senhoritas? — ele perguntou. — Para a confeitaria da Sra. Marley, por favor, — respondi, enquanto me acomodava no assento e fechava a porta da carruagem. A viagem começou tranquila, com o som das rodas nos paralelepípedos ecoando pelas ruas. Porém, a poucos quarteirões de distância, senti um solavanco estranho. — O que foi isso? — perguntei, inclinando-me para a janela. — Parece que uma das rodas não está em boa forma, senhorita, — disse o Sr. Wicks, para