De saco cheio

Do outro lado da cidade, Hugo e Clara estavam discutindo sobre a campanha que Clara estrelaria. O sonho dela de se tornar uma influencer famosa parecia finalmente estar dando os frutos desejados.

— Não podemos colocar cerveja numa campanha de carros, Clara!. O cliente já especificou o que gostaria que tivesse no comercial. — Hugo estava exausto nesse momento. Estava há horas tentando convencer a esposa a fazer exatamente o que o cliente queria, e não havia nenhum sinal de que ela tivesse entendido o que precisava.

— Uma campanha com amigas se divertindo vai parecer muito mais legal. E vai atrair os jovens. As amigas, com roupas bem sensuais, bebendo muito... — Ela divagava, como se não estivesse falando nenhum absurdo. O problema é que o principal posicionamento das redes dela era a família. Mudar assim não fazia sentido para ninguém.

— Clara, é um carro para família! Não tem nada de sensual nessa campanha! Você pelo menos leu o briefing? — Hugo parecia um pouco exasperado. Clara tem uma tendência a ser irritante quando quer. Ela não se preocupa em entender as coisas e sai fazendo como bem entende, sem se importar com o que é realmente importante.

— Que droga! Você sempre descarta as minhas ideias! — Ela b**e o pé com força, cansada de Hugo tentar fazê-la parecer burra o tempo todo. Ele não se sentia satisfeito enquanto não a deixava para baixo.

— Deve ser, porque suas ideias não combinam com o que foi pedido, né? Não dá rpa você ter noção uma única vez. 

Maria entrou na cozinha procurando algo para comer. Ela era a filha mais velha do casal, tinha cinco anos e muita responsabilidade. Clara semi-cerrou os olhos e cruzou os braços assim que ela entrou na cozinha. Não gostava que a menina atrapalhasse quando estava "trabalhando" e já tinha deixado isso bem claro para ela.

— Meu amor, vocês estão com fome? — Hugo, como um pai carinhoso, correu para atender a filha rapidamente. Ele parou de dar atenção a Clara assim que Maria entrou na cozinha e se tornou todo carinhoso. Não havia nada que Hugo amasse mais do que os filhos.

— Sim, papai. O Caio tá chorando. Acho que ele precisa trocar. — Ela falou com receio, de cabeça baixa, evitando olhar para a mãe. Vestida com pijamas pequenos e meio surrados, com os cabelos mal amarrados e muito embaraçados, a criança tinha um aspecto um pouco faminto e estava cheirando a xixi.

Hugo a pegou e notou como a filha parecia desarrumada. Sentiu o cheiro e resolveu cuidar dos filhos para não continuar discutindo com Clara, pois sabia que nada de bom sairia da cabeça da esposa.

— Vamos lá, tomar um banho e depois tomar o café. O que acha? — Ele pegou a filha no colo e foi para o quarto. Clara ficou na cozinha com cara amarrada e atitude vingativa. Não queria ser interrompida na discussão. Pelo menos uma vez queria fazer seu próprio desejo e não apenas o que Hugo mandava. Estava cansada de ser sempre submissa às vontades dele.

— Mais tarde, coloco essa menina no lugar dela. Precisa aprender que deve comer na hora que eu der a comida e pronto. — Com a vingança preparada, ela pegou a garrafa de água e foi para a academia, sem se preocupar em deixar o café da manhã pronto.

— Já que Hugo não quer babá, ele que se vire para cuidar desses pirralhos. Eu vou cuidar de mim! — Ela checou sua imagem no espelho da sala de jantar. Gastou muito dinheiro para gostar do que via. Saiu sem olhar para trás. 

No banheiro, Hugo colocou os dois filhos no banho e os lavou com delicadeza. Jogou os brinquedos favoritos deles na água e fez várias brincadeiras enquanto ensaboava um e ficava de olho no outro.

Caio era o que mais se divertia com isso, adorava a banheira. Tinha três anos e ainda demandava muitos cuidados. Maria estava mais crescida e fazia várias coisas da casa e do cuidado com o irmão sozinha. Tinha medo do que poderia acontecer se não fizesse. 

Hugo achava bonitinho ela querer ajudar nas tarefas, mas sempre garantia que ela fosse criança quando tinha a oportunidade. Com as crianças limpas e bem arrumadas, chegou na cozinha contando que Clara tivesse preparado o café da manhã e que passariam um momento em família para prolongar a diversão da banheira.

Ficou desapontado quando constatou que ela foi treinar e nem se preocupou em deixar algo pronto para eles. A convivência com ela estava ficando mais difícil. Era frustrante ela não se interessar pelos filhos e querer contratar pessoas para fazer tudo, quando a rotina deles era o que mais engajava na rede social dela. As brigas sobre isso eram constantes, e Hugo estava cansado de sempre ter que lembrá-la disso.

Continuou o lúdico e fez o café em pouco tempo. Comeram como pai e filhos felizes, embora o clima entre eles fosse sempre positivo. Sentia, no entanto, que faltava algo. Esperava que o tempo tornasse Clara uma boa mãe e esposa, mas essa época nunca chegava.

Queria uma família como a sua, como quando seus pais estavam vivos. Tudo parecia mais alegre. Sua mãe era sempre tão carinhosa. Lágrimas surgiam sempre que ele lembrava dos pais; ainda não tinha superado a morte deles.

Clara apareceu após duas horas, suada e pronta para continuar a discussão sobre a campanha. Hugo imaginou que o treino a tivesse acalmado, mas, pelo jeito, estava mais decidida do que nunca.

— Bom, voltando ao roteiro da marca... — Ela falou como se não tivessem acabado de começar a conversa.

— Não vai dar nem bom dia aos seus filhos? — Ele perguntou, largando o pano com que limpava a mesa onde as crianças haviam feito desenhos. As crianças evitaram olhar para Clara e ficaram tensas assim que ela entrou. A irritação de Hugo o impediu de perceber esse movimento delas.

— Bom dia, meus amores. — Ela deu falsos carinhos e um sorriso um tanto sinistro para eles. Maria, desconfiada, deu um jeito de ir correndo para o quarto e levou o irmão com ela.

Clara sorriu ao ver a saída de Maria. Era exatamente o tipo de atitude que ela esperava de uma criança bem educada: que ficasse calada e desaparecesse de vista.

— Clara, estávamos nos divertindo aqui. Íamos brincar de bolhas de sabão agora. Por que você estraga as nossas brincadeiras? — Ele questionou a fútil esposa.

— Eu tenho culpa deles quererem ir brincar no quarto? Você me ouviu mandá-los sair daqui? Pare de desviar do assunto, Hugo. Vamos fazer essa campanha do meu jeito, dessa vez.

— Clara, essa discussão acabou. O cliente decidiu mandar um diretor para fazer a campanha. Ele deve estar chegando daqui a pouco com a própria equipe. Você só precisa decorar o roteiro. — Ele falou, deixando a mulher sozinha e na cozinha vazia. Tinha limpado todo vestígio da vida que acontecera ali a poucos minutos. O ambiente limpo e em silêncio deixou Clara à vontade para mostrar a sua verdadeira face. Pegou o telefone e mandou uma mensagem marcando um encontro com seu verdadeiro amor.

“Te encontro às 14:00. Estou com saudades.”

Apagou a mensagem e sorriu, pensando que teria sua vingança por não ter tido o desejo atendido na sua primeira campanha.

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