Capítulo 3

—  Seus exames, mais uma vez, não deram nenhuma alteração —  diz o médico na minha frente, folheando a prancheta com algumas folhas.

        Num momento estava no jornal e depois, quando abro os olhos, me vejo em um quarto dez hospital parecido com o quarto que passei um ano.

—  Mas ela desmaiou —  Beth argumenta, aparentemente ainda assustada —  Achei que estivesse até morta.

—  O corpo dela ainda está se adaptando e dado aos últimos resultados dos exames, não há nada para se preocupar.

—  Onde estava o Dr. Harris? —  pergunto com a voz firme, atraindo o par de olhos. Eu precisava ver ele, estava crente que se lhe dissesse o que estava acontecendo ou tentasse, com certeza ele me ajudaria.

—  Dr. Harris não está de plantão hoje —  diz o médico de cabelos grisalhos, com um sorriso um pouco forçado —  Mas eu estou e acredito que posso tirar todas suas dúvidas —  Continuo sustentando o olhar dele, esperando que simplesmente me desse alta e fosse embora —  E se não tiver, tudo bem também, o que importa é que o seu corpo está aceitando bem o transplante e que não tem motivo algum para continuar aqui no hospital —  Dito isto, ele olha para Beth e sem dizer mais nada, sai do quarto.

        Com um suspiro, Beth volta a atenção para mim, no exato momento que pego minha bolsa e tiro de lá o tablet que estava usando a poucos minutos atrás.

—  O que está fazendo?

—  Quero mostrar uma coisa —  Abro o site que estava lendo, entregando o aparelho em seguida para ela —  Lê.

—  O que é isso? —  questiona baixo, o cenho franzido, enquanto os olhos se moviam pelo aparelho.

—  Uma matéria de um jornal que saiu meses atrás, uma mulher com cerca de trinta anos, que recebeu um coração de um homem de 18 anos, que morreu num acidente de moto e que alega que teve seus hábitos e o comportamento mudados após a cirurgia. Ela começou a ingerir álcool e a comer frango frito, algo que ela não fazia antes —  Para mim aquela matéria era uma prova clara do que estava acontecendo comigo, conseguiu explicar boa parte pelo menos.

—  Beca —  diz Beth devagar —  Não é algo comprovado cientificamente, pode ser um distúrbio mental ou qualquer outra coisa. Sendo jornalista, acreditei que se atentava aos fatos e principalmente em sua veracidade —  Ela me devolve o tablet —  Não pode saindo acreditando tudo que lê.

—  E como você explica tudo que está acontecendo comigo então?

      Ela dá de ombros.

—  Não sou médica.

—  Vai dizer que não está notando nada de diferente em mim?

—  As pessoas mudam —  Argumenta —  Você passou um ano neste hospital. É normal que se sinta dessa forma.

—  Eu não tenho mais identidade! —  digo elevando a voz, conseguindo fazer com que se calasse por alguns segundos —  Não sei mais quem eu sou —  sussurro, esperando que dessa formam, entendesse de uma vez que algo estava acontecendo comigo e que não tinha nenhum controle sobre isso.

—  Você precisa de um psicólogo —  diz ela por fim e preciso me segurar para não gritar. As vezes o senso de julgamento de Beth me estressava, principalmente quando o óbvio estava bem diante dos olhos dela e preferia agir com a lógica e se basear em fatos. —  Vai ficar tudo bem, Beca, você só precisa ir mais... devagar —  diz  com um leve sorriso no rosto, afagando meu ombro.

          E por alguma razão naquele momento, não quis gritar tudo que estava acontecendo comigo, mesmo eu sentindo que precisava fazer isso. A impressão que eu tinha, que todos ao meu redor estavam começando a acreditar que o tempo que passei no hospital e o transplante, acabaram que me deixando louca. Claro que eu também pensaria isto se estivesse do outro lado, mas a verdade era mais bem profunda do que estavam achando ser uma maluquice da minha cabeça.

        A volta para casa ocorreu no completo silêncio, apesar de Beth querer passar o restante do dia comigo em casa, não permitir, já que ela já feito muito por mim até aquele momento e não achava certo ela parar sua vida por causa de mim.

       Sozinha no apartamento, no meu quarto, encarei as telas em branco e as tintas, ignorando aquela ansia de violar todo aquele branco, por alguma coisa, qualquer que fosse naquele espaço. Me sentia como um viciado, cujo corpo estava quase entrando em colapso em busca de drogas. De sentir as sensações que a substância causava.

       Ainda queria entender o que estava acontecendo comigo, então me sentei diante da pequena mesa retangular em frente a janela e liguei meu notebook.

       Diante da página de pesquisa, permaneci alguns segundos parada, observando a linha vertical piscar. Havia tantas perguntas sem respostas dentro de mim, que não sabia ao certo a qual dar atenção naquele momento.

        Mas quando  num estralo mental, meus dedos digitam: Coração tem memória?, sinto que havia escolhido a pergunta certa.

        A matéria era de 2016 e mais uma vez se encaixava com o que estava vivendo.

“Doadores de órgãos pode estar fazendo mais do que salvar vidas. Eles podem estar dando uma “nova vida” para os receptores de transplante de órgãos. De acordo com as estatísticas de 2011 do Donate Life America houveram 8127 doadores falecidos e 6017 doadores de órgãos vivos nos Estados unidos, chegando a 28535 transplantes de órgãos em geral. Os órgãos mais comumente transplantados incluem a córnea, rim e coração – sendo o transplante de coração o com maior taxa de sobrevivência após 5 anos de transplante com 74,9%. O coração definitivamente armazena memórias através de codificações combinatórias por células nervosas, que permite o sistema sensorial reconhecer odores, de acordo com a teoria de memória celular.”

           Apoio minha cabeça entre as duas mãos encarando a tela do notebook, convicta de que não estava ficando louca. Havia um estudo,  uma pesquisa e pessoas faziam parte dessa pesquisa, não tinha como simplesmente agora ignorar os fatos. O que estava acontecendo comigo era real e já havia acontecido antes com outras pessoas.

       Levantando, me afasto da escrivaninha, dando passos em círculos, tentando organizar todas aquelas informações mentalmente. Temendo esquecer, acabo optando pelo bloco de notas e assim, uma a uma, começo as escrever e grudar na parede seguindo uma linha de raciocínio que não sabia se ainda era confiável.

        Tudo indicava que estes “eventos comportamentais” começaram  após o transplante e dali em diante, já não foram as mesas pessoas, pois começaram a ter um pouco do antigo receptor.

          Sem pensar duas vezes pego meu celular e com as mãos tremendo, aperto a discagem rápida, ligando para Beth. Dessa vez, não tinha como ela fugir dos fatos.

—  Beth. Beth —  digo assim que ela atende o celular, respirando pela boca, com meu coração acelerado em meu peito —  Eu achei.

—  Beca —  diz ela surpresa, num tom baixo —  O que...? O que está acontecendo?

—  Fizeram uma pesquisa. Donate Life America. E tudo que está acontecendo comigo...

—  Nós já falamos sobre isso, Rebeca. Já estou ficando assustada com este seu comportamento —  diz ela séria, fazendo uma breve pausa —  Eu acho melhor você procurar ajuda psicológica.

—  Não preciso de ajuda psicológica —  Rebato, não vendo argumentos suficientes para isso acontecer.

—  Talvez isso vá além do que parece —  Ela continua com a voz calma —  Nós duas sabemos que o que o Tyler fez com você não é certo.

      Inspiro profundamente, prendendo o ar.

—  Você não tem culpa que ele se apaixonou por você —  Eu não costumava pensar muito a respeito do que aconteceu, as vezes me pegava entendendo e justificando o fato dele ter me abandonado em um hospital. E chegava até entender. Meus dias estavam contados, eu iria morrer se não recebesse um coração a tempo e ele estava preso a uma pessoa com o pé praticamente na cova.

        Elisabeth sempre foi uma mulher bonita, que conseguia a atenção de qualquer pessoa com facilidade e era quase de se esperar, que ele se sentisse atraído por ela, mesmo sem saber da opção sexual dela.

         Eu queria sentir raiva dele, mas só conseguia sentir de mim mesma, por estar naquela situação, por não ser a mulher que ele precisava. Então quando ele deixou de ir ao hospital, não atender minhas ligações e muito menos responder minhas mensagens, Beth resolveu me contar o que havia acontecido e todo aquele tempo no hospital querendo um coração novo, simplesmente desejei que este dia não chegasse e que eu morresse.

—  Ele foi um idiota, Beca —  Ela continua —  E não tem que se culpar por nada.

—  Não estou.

        Ela solta o ar dos pulmões.

—  Hã. Tenho que desligar, está bem? Mais tarde nós...

—  Certo —  digo antes mesmo que termine, encerrando a ligação, encarando mais uma vez o notebook, ciente de que precisava pelo menos  por para fora tudo que estava se intensificando dentro de mim.

       Sentando novamente diante da escrivaninha, começo a digitar como tudo começou.

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