— Seus exames, mais uma vez, não deram nenhuma alteração — diz o médico na minha frente, folheando a prancheta com algumas folhas.
Num momento estava no jornal e depois, quando abro os olhos, me vejo em um quarto dez hospital parecido com o quarto que passei um ano.
— Mas ela desmaiou — Beth argumenta, aparentemente ainda assustada — Achei que estivesse até morta.
— O corpo dela ainda está se adaptando e dado aos últimos resultados dos exames, não há nada para se preocupar.
— Onde estava o Dr. Harris? — pergunto com a voz firme, atraindo o par de olhos. Eu precisava ver ele, estava crente que se lhe dissesse o que estava acontecendo ou tentasse, com certeza ele me ajudaria.
— Dr. Harris não está de plantão hoje — diz o médico de cabelos grisalhos, com um sorriso um pouco forçado — Mas eu estou e acredito que posso tirar todas suas dúvidas — Continuo sustentando o olhar dele, esperando que simplesmente me desse alta e fosse embora — E se não tiver, tudo bem também, o que importa é que o seu corpo está aceitando bem o transplante e que não tem motivo algum para continuar aqui no hospital — Dito isto, ele olha para Beth e sem dizer mais nada, sai do quarto.
Com um suspiro, Beth volta a atenção para mim, no exato momento que pego minha bolsa e tiro de lá o tablet que estava usando a poucos minutos atrás.
— O que está fazendo?
— Quero mostrar uma coisa — Abro o site que estava lendo, entregando o aparelho em seguida para ela — Lê.
— O que é isso? — questiona baixo, o cenho franzido, enquanto os olhos se moviam pelo aparelho.
— Uma matéria de um jornal que saiu meses atrás, uma mulher com cerca de trinta anos, que recebeu um coração de um homem de 18 anos, que morreu num acidente de moto e que alega que teve seus hábitos e o comportamento mudados após a cirurgia. Ela começou a ingerir álcool e a comer frango frito, algo que ela não fazia antes — Para mim aquela matéria era uma prova clara do que estava acontecendo comigo, conseguiu explicar boa parte pelo menos.
— Beca — diz Beth devagar — Não é algo comprovado cientificamente, pode ser um distúrbio mental ou qualquer outra coisa. Sendo jornalista, acreditei que se atentava aos fatos e principalmente em sua veracidade — Ela me devolve o tablet — Não pode saindo acreditando tudo que lê.
— E como você explica tudo que está acontecendo comigo então?
Ela dá de ombros.
— Não sou médica.
— Vai dizer que não está notando nada de diferente em mim?
— As pessoas mudam — Argumenta — Você passou um ano neste hospital. É normal que se sinta dessa forma.
— Eu não tenho mais identidade! — digo elevando a voz, conseguindo fazer com que se calasse por alguns segundos — Não sei mais quem eu sou — sussurro, esperando que dessa formam, entendesse de uma vez que algo estava acontecendo comigo e que não tinha nenhum controle sobre isso.
— Você precisa de um psicólogo — diz ela por fim e preciso me segurar para não gritar. As vezes o senso de julgamento de Beth me estressava, principalmente quando o óbvio estava bem diante dos olhos dela e preferia agir com a lógica e se basear em fatos. — Vai ficar tudo bem, Beca, você só precisa ir mais... devagar — diz com um leve sorriso no rosto, afagando meu ombro.
E por alguma razão naquele momento, não quis gritar tudo que estava acontecendo comigo, mesmo eu sentindo que precisava fazer isso. A impressão que eu tinha, que todos ao meu redor estavam começando a acreditar que o tempo que passei no hospital e o transplante, acabaram que me deixando louca. Claro que eu também pensaria isto se estivesse do outro lado, mas a verdade era mais bem profunda do que estavam achando ser uma maluquice da minha cabeça.
A volta para casa ocorreu no completo silêncio, apesar de Beth querer passar o restante do dia comigo em casa, não permitir, já que ela já feito muito por mim até aquele momento e não achava certo ela parar sua vida por causa de mim.
Sozinha no apartamento, no meu quarto, encarei as telas em branco e as tintas, ignorando aquela ansia de violar todo aquele branco, por alguma coisa, qualquer que fosse naquele espaço. Me sentia como um viciado, cujo corpo estava quase entrando em colapso em busca de drogas. De sentir as sensações que a substância causava.
Ainda queria entender o que estava acontecendo comigo, então me sentei diante da pequena mesa retangular em frente a janela e liguei meu notebook.
Diante da página de pesquisa, permaneci alguns segundos parada, observando a linha vertical piscar. Havia tantas perguntas sem respostas dentro de mim, que não sabia ao certo a qual dar atenção naquele momento.
Mas quando num estralo mental, meus dedos digitam: Coração tem memória?, sinto que havia escolhido a pergunta certa.
A matéria era de 2016 e mais uma vez se encaixava com o que estava vivendo.
“Doadores de órgãos pode estar fazendo mais do que salvar vidas. Eles podem estar dando uma “nova vida” para os receptores de transplante de órgãos. De acordo com as estatísticas de 2011 do Donate Life America houveram 8127 doadores falecidos e 6017 doadores de órgãos vivos nos Estados unidos, chegando a 28535 transplantes de órgãos em geral. Os órgãos mais comumente transplantados incluem a córnea, rim e coração – sendo o transplante de coração o com maior taxa de sobrevivência após 5 anos de transplante com 74,9%. O coração definitivamente armazena memórias através de codificações combinatórias por células nervosas, que permite o sistema sensorial reconhecer odores, de acordo com a teoria de memória celular.”
Apoio minha cabeça entre as duas mãos encarando a tela do notebook, convicta de que não estava ficando louca. Havia um estudo, uma pesquisa e pessoas faziam parte dessa pesquisa, não tinha como simplesmente agora ignorar os fatos. O que estava acontecendo comigo era real e já havia acontecido antes com outras pessoas.
Levantando, me afasto da escrivaninha, dando passos em círculos, tentando organizar todas aquelas informações mentalmente. Temendo esquecer, acabo optando pelo bloco de notas e assim, uma a uma, começo as escrever e grudar na parede seguindo uma linha de raciocínio que não sabia se ainda era confiável.
Tudo indicava que estes “eventos comportamentais” começaram após o transplante e dali em diante, já não foram as mesas pessoas, pois começaram a ter um pouco do antigo receptor.
Sem pensar duas vezes pego meu celular e com as mãos tremendo, aperto a discagem rápida, ligando para Beth. Dessa vez, não tinha como ela fugir dos fatos.
— Beth. Beth — digo assim que ela atende o celular, respirando pela boca, com meu coração acelerado em meu peito — Eu achei.
— Beca — diz ela surpresa, num tom baixo — O que...? O que está acontecendo?
— Fizeram uma pesquisa. Donate Life America. E tudo que está acontecendo comigo...
— Nós já falamos sobre isso, Rebeca. Já estou ficando assustada com este seu comportamento — diz ela séria, fazendo uma breve pausa — Eu acho melhor você procurar ajuda psicológica.
— Não preciso de ajuda psicológica — Rebato, não vendo argumentos suficientes para isso acontecer.
— Talvez isso vá além do que parece — Ela continua com a voz calma — Nós duas sabemos que o que o Tyler fez com você não é certo.
Inspiro profundamente, prendendo o ar.
— Você não tem culpa que ele se apaixonou por você — Eu não costumava pensar muito a respeito do que aconteceu, as vezes me pegava entendendo e justificando o fato dele ter me abandonado em um hospital. E chegava até entender. Meus dias estavam contados, eu iria morrer se não recebesse um coração a tempo e ele estava preso a uma pessoa com o pé praticamente na cova.
Elisabeth sempre foi uma mulher bonita, que conseguia a atenção de qualquer pessoa com facilidade e era quase de se esperar, que ele se sentisse atraído por ela, mesmo sem saber da opção sexual dela.
Eu queria sentir raiva dele, mas só conseguia sentir de mim mesma, por estar naquela situação, por não ser a mulher que ele precisava. Então quando ele deixou de ir ao hospital, não atender minhas ligações e muito menos responder minhas mensagens, Beth resolveu me contar o que havia acontecido e todo aquele tempo no hospital querendo um coração novo, simplesmente desejei que este dia não chegasse e que eu morresse.
— Ele foi um idiota, Beca — Ela continua — E não tem que se culpar por nada.
— Não estou.
Ela solta o ar dos pulmões.
— Hã. Tenho que desligar, está bem? Mais tarde nós...
— Certo — digo antes mesmo que termine, encerrando a ligação, encarando mais uma vez o notebook, ciente de que precisava pelo menos por para fora tudo que estava se intensificando dentro de mim.
Sentando novamente diante da escrivaninha, começo a digitar como tudo começou.
Inspiro profundamente o aroma do Cappuccino de Avelã, antes de o levar até os lábios e praticamente ir ao céu com o sabor. Nunca gostei de cappuccino, acreditava que só era mais um meio dos amantes de café, tomar mais café mas, desde que sai do hospital e vi a cafeteria que ficava na esquina, senti uma grande necessidade de ir até lá. E aqui estava eu, em um ambiente que cheirava apenas a café, com um pedaço generoso de bolo de limão, com meu notebook aberto, empolgada em escrever tudo que estava acontecendo no último mês. Volte e meia, alternava para a leitura da matéria sobre o experimento dos transplantados, enquanto dividia minha atenção com o relógio, já que faltava poucos minutos para o trabalho.“O fenômeno de memória celular, mesmo ainda não é considerado como 100% cientificamente validado, é apoiado por vários cientistas e médicos. Os comportamentos e emoções do doador adquiridas pelo receptor são devido a memórias combinatórias armazenadas nos
— Descobriu alguma coisa interessante? — Beth pergunta, se movimentando na cozinha estreita, preparando nosso jantar.— Bastante coisa, para ser mais exata. Minha pesquisa daquela noite, estava girando em torno de Brian Harris, o irmão gêmeo idêntico do Dr. Harris. Ambos nascidos com diferença de um minuto e alguns segundos, Brian sendo considerado pelos médicos o mais velho e até mesmo o bebê mais forte, enquanto o Dr. Harris, Jonah, precisou de cuidados após o nascimento. Havia uma verdadeira biografia sobre Brian Harris, incluindo fofocas nos tablóides em torno do casamento com a estilista Elena Mackenzie e sua morte. Apesar da vida do bilionário ser reservada e ele fazer de tudo para a manter dessa forma, sua esposa já não era assim, por causa do seu trabalho, vivia constantemente na mídia. O casal era como óleo e água.— Seus legumes a vapor — diz Beth, minutos mais tarde, colocando na minha frente um prato colorido com legumes e vegetais. Erg
— Poderia ser pior — diz Beth, naquela noite, após horas atrás eu ter sido praticamente expulsa da sede da empresa de Brian Harris. Acredito que meu otimismo não permitiu que eu enxergasse, que a situação era mais complicada do que eu pensava. Sim, realmente era, pois as chances de Brian Harris falar com uma jornalista, comigo nesse caso, era quase que nulas.— Vou pensar em alguma coisa — murmuro pensativa.— Ou pode dizer ao Frank mandar outra pessoa — Seria a opção mais viável naquele momento, entretanto, queria mostrar meu valor, que apesar de todo aquele tempo afastada, ainda conseguia fazer meu trabalho com excelência — Você não tem que ir — Ela faz questão de lembrar.— Mas eu quero ir — digo com a mudança rápida de humor, deixando o cômodo. Assim que entro no meu quarto, começo a me sentir inquieto, como se estivesse inutilizada e Beth tivesse razão, era uma grande responsabilidade para mim e é claro que Frank poderia até estar esperando que eu não cons
O dia definitivamente não havia começado muito bem para mim, além de estar vivenciando na pele sensações de outra pessoa, ainda tinha que lidar com a forte crise de ansiedade que aconteceu em seguida, me fazendo chegar atrasada no trabalho. E antes mesmo que pudesse me refugiar em minha mesa, Frank sentiu meu cheiro e com um gesto simples, mas claro, me chamou para sua sala.— Frank — digo ao entrar no recinto, permanecendo em pé, em frente as duas cadeiras de madeira vernizada.— O que pedi a você? — Ele pergunta sério, me fazendo lembrar de um dos professores que tinha na adolescência, no qual todos temiam por ser uma pessoa séria e autoritária.— Uma entrevista com Brian Harris — digo em tom baixo, temendo que a resposta não fosse aquela.— E por que trouxe um processo para o jornal?! — Ele eleva a voz abruptamente, batendo na mesa.— Um processo? — Repito, duvidando do que acabara de ouvir.— É. Um processo — diz sarcástico — Brian Harris decidiu nos processa
— With all my favorite colors, yes, sir. All my favorite colors, right on. My sisters and my brothers. See ‘em like no other. All my favorite colors — Cantava a plenos pulmões, parecendo de alguma forma, colocar aquela canção de um jeito ou de outro para fora de mim. Sentia que depois de tudo que aconteceu no dia anterior, estava energizada, mesmo acreditando que aquele não seria o normal de qualquer outro ser humano.Mas só bastou abrir os olhos naquela manhã, tomar um banho que...bum! Uma música surgiu sorrateiramente em minha mente e quando me dei conta, estava cantarolando uma música desconhecida e após uma rápida pesquisa, descobri o nome da banda e o nome da música. Na cozinha, me movia de um lado para o outro, quase que no ritmo da música, com a sensação de que já havia vivido aquele dia, aquele momento. Meu corpo desacelera em questão de segundos e meus olhos se fixam no vazio. Quase que automáticamente, um cheiro contraditório ao que estava na c
Dr. Harris me olha aparentemente confuso, parecendo estar processando o que havia acabado de dizer.— O que foi que disse? — Ele pergunta finalmente, num tom baixo hesitante. Engulo em seco, notando que o silêncio havia predominado naquele ambiente, não dava nem para escutar as respirações que haviam ali.— Eu. Estou. Com. O. Coração. De... — digo pausadamente, levando — Elena Mackenzie. Os olhos dele se tornam vidrados, enquanto os fixa no vazio, processando as minhas palavras. Por um momento, ele empalidece e até temo que estivesse sentindo alguma coisa.— Senta aí! — diz o segurança, me empurrando para a cadeira.— Tira a mão de mim! — digo elevando a voz, olhando dentro dos olhos dele que, no mesmo instante, tenta me fazer sentar novamente.— Ei. Calma — diz Dr. Harris, se colocando entre nós, fazendo com que o segurança se afastasse de mim — Ela ainda está se recuperando de uma cirurgia e é paciente deste hospital, então se não for medico, por gentileza, tire
— Você não pode estar falando estar falando sério — diz Beth, enquanto preencho a mala sobre a cama com roupas. Havia dado uma rápida olhada no clima no interior Minnessota e não havia muita diferença com o clima de Rochester, só estava dois graus abaixo — Ir atrás dos pais de Elena Mackenzie! Não poderia negar que aquela decisão havia sido tomada de última hora ou melhor, após o breve café com Jonah. Por alguma razão, ele havia despertado ainda mais a minha curiosidade, precisava saber mais sobre Elena e mesmo que eu já tivesse explicado para Beth, que a minha doadora era a esposa falecida de Brian Harris, ela ainda continuava a achar que era uma péssima ideia. Continuo arrumando minha mala, sem saber se estava colocando roupa demais ou roupa de menos, nunca fui muito boa em fazer malas e sempre esquecia do essencial e isto me fazia odiar viagens. A única coisa que sabia e que estava levando naquela mala, era a minha vontade crescente de decifrar a vida d
Me sentia paralisada diante da senhora, seus olhos distantes, entretanto, penetrantes, pareciam ler a minha alma, meus pensamentos... Ela não esboçou qualquer reação enquanto me olhava, seus lábios finos, mantinham uma linha reta séria. Seus rosto redondo, tinha algumas marcas da idade, o que não era muito relevante, até mesmo o seu cabelo grisalho, solto, não era apenas o que me chamava atenção; Mas sim o modo que estava em minha frente, como uma assombração.— Oi — digo baixo, esperando que assim quebrássemos o gelo que estava ali, na verdade, um iceberg — Meu chamo Rebeca e... — Me detenho quando uma mulher surge da parte de trás da casa, aparentemente mais nova que eu, uma trança lateral enfeitava seu cabelo, as roupas que vestia era composta por uma jardineira e camiseta branca.— Mãe!— diz com um breve sorriso no rosto, subindo os degraus rapidamente, secando o suor do rosto com uma flanela ao se aproximar. Ela afaga os ombros da mãe, para em seguida me