DIA DIFÍCIL

Ana

Precisei de alguns minutos no café mix sentada e completamente desolada para me recompor. Aquele atendente, o mesmo que paquera minha amiga, está alí, gentil e simpático com todos os clientes, sempre sorridente e educado. Talvez Liliane esteja errada, nem todos os homens são iguais, apenas não tivemos a sorte de encontrar um que não seja canalha ou que nos use apenas com interesses pessoais ou sexuais.

Minha amiga me envia várias mensagens, ela está bastante preocupada, em uma delas, Liliane me avisa que o casal top não estava mais na redação. Então consigo retornar mais tranquila e me esforço para voltar ao trabalho.

O dia se arrasta, durante um intervalo, decido fazer algo que já deveria ter feito, crio uma conta no I*******m. A princípio é muito mais fácil do que imaginava, em instantes Liliane já está me mandando mensagem histérica quando descobre, e é a primeira a me seguir. A sigo de volta e logo o algoritmo me sugere várias contas que estão vinculadas a minha amiga e a primeira delas é… Laura. Sinto uma ansiedade absurda para ver o perfil dela. Como se estivesse cometendo algo indevido olho para os lados, ao perceber que não há perigo de ser pega, clico em cima da foto.

O perfil de Laura é tão falso quanto da maioria das pessoas que são obcecadas pela plataforma. É nítido que o foco é ganhar seguidores, a propósito ela tem mais de cinquenta mil, é do tipo que registra tudo que faz, inclusive tem um vídeo dela dormindo, quem em plena sã consciência pede para ser filmado dormindo e posta nas redes sociais?

Bufo, é por coisas tão fúteis como essa que não tenho paciência com redes sociais, cheio de pessoas vazias de conteúdo mas cheias de si mesmas. 

As fotos do pedido de casamento está bem ali, com vários likes. Nicolas de joelhos lhe entregando um anel caro. Passo rapidamente a foto. Logo abaixo tem várias fotos… deles juntinhos… como Liliane não viu isso? São várias fotos dos dois em jantares, barzinhos, encontros bem românticos, e todas elas em datas nas quais eles estavam tecnicamente rompidos.

Nicolas é mais canalha do que eu imaginava.

Fecho a tela rapidamente sentindo muita raiva, fica ainda mais nítido que ele me usou. Neste momento deve estar rindo do quanto idiota eu fui.

Saio do trabalho um pouco mais cedo que o normal. Tudo o que aconteceu ainda está atravessado em minha garganta. Durante o almoço Lili e eu conversamos e ela ficou chocada com as postagens de Laura que mostrei a ela, Lili disse que nunca perdeu tempo com o I*******m de Laura, sua antipatia pela blogueirinha era muito grande pra isso. Porém minha amiga chega à mesma conclusão que eu, os dois estavam juntos, porém Nicolas estava escondendo isso, por um único motivo, eu.

A propósito, o canalha me mandou mensagem, disse que precisava falar comigo. Então, desliguei meu celular. Afinal o que ele tem pra me dizer, "ah, obrigado por me proporcionar sexo sem graça, me garantir a promoção no trabalho e minha tese de mestrado."

Respiro rápido tentando conter as lágrimas, não quero chorar, não por ele, Nicolas não merece isso, entretanto sinto uma angústia esmagadora e por isso não contenho, entro em meu carro deixando as lágrimas descerem.

Dirigi por duas horas, inicialmente não sabia para onde ir, eu preciso ficar longe por algumas horas, temo que Nicolas me procure, não  quero falar com ele. 

Então sigo para o único lugar no qual não serei encontrada, e mesmo sabendo que é uma grande loucura, decido ir para minha cidade natal, para casa de minha mãe. Dona Márcia, não é a melhor pessoa pra me ajudar nesse momento, mas... não tenho mais ninguém, além do mais ela é minha mãe, e acredito que é isso que mães fazem, cuidam dos filhos.

São quase  cinco da tarde, vejo um carro velho e estranho estacionado no portão.

Dona Márcia vai ficar assustada ao me ver, não avisei que viria. Dou uma olhada no retrovisor e vejo minha imagem deplorável. Olhos inchados, rosto vermelho, perfeito para as críticas dela.

Desço e sigo em direção ao portão de grades, já bastante gasto pela ferrugem, ao abrir ouço aquele som irritante e familiar rangendo as dobradiças.Tudo continua da mesma forma, o jardim cheio de flores e vários pés de frutas pelo quintal, há muitas folhas secas pelo chão. Durante o trajeto fica impossível não me recordar de minha irmã, ela também se chamava Ana, Ana Louyse, nunca entendemos o péssimo gosto de dona Márcia para escolher nossos nomes, certamente por seu vício em ler livros de romance americanos. Louyse e eu éramos gêmeas idênticas, constantemente confundidas por todos. Sinto muito a falta dela, talvez por isso quase não venho aqui. Talvez por isso meu relacionamento com minha mãe que nunca foi dos melhores, ficou ainda pior, ela vê Louyse em mim e deve ser muito frustrante para ela.

Me recordo das vezes em que eu e minha irmã corríamos por esse quintal, subiamos nas árvores e colhiamos frutas, às vezes Beto, o filho da vizinha brincava com a gente, antes deles se mudarem. Beto foi meu primeiro namoradinho de infância. Sorrio ao me lembrar disso. Como todos, sempre nos confundia, e acabou beijando as duas, a mim e a Louyse, e mesmo quando revelamos a confusão, ficou nítido que ele adorou aquele joguinho. Noto que eu já tinha uma queda por canalhas desde pequena.

Respiro fundo tentando esquecer meu passado, inclusive, voltar aqui me trás a memorias de momentos dolorosos.

Bato na porta. Há uma demora para atender, até que a imagem da exuberante dona Márcia surge atrás da porta. Seus cabelos volumosos e cacheados negros estão presos por uma tiara vermelha, sua pele clara está coberta de maquiagem, ela nunca abre mão disso, usa uma calça legging justa preta e uma camisa T-shirt com estampa de onça na parte da frente.

— Ana Jully!?

Sua recepção nunca é das melhores, entretanto desta vez ela parece inquieta com minha presença.

— Oi, Mamãe.

Ela parece assustada, claro, não me esperava.

— Ana Jully, o que você está fazendo aqui?

Começo a achar minha mãe estranha, sempre a vejo de mau humor, apressada em desligar o telefone quando nos falamos, coisas desse tipo, mas neste momento, ela está... nervosa... como se temesse algo olhando de soslaio para trás as vezes.

Ela nem ao menos me convida para entrar, então decido poupà-la desta parte, vou entrando mesmo sem ser convidada, o nervosismo dela só aumenta.

Dou uma analisada de forma discreta e vejo na sala um colchão com dois travesseiros, duas taças de vinho no chão junto a uma garrafa vazia. Certamente a noite anterior foi bem divertida e nada solitária.

— Minha filha, eu não te esperava. Você não deveria estar no trabalho? — Ela respira fundo enquanto fecha a porta — Ana Jully não vai me dizer que foi despedida? — Começa com seu tom acusatório, agora sim é a Márcia de sempre.

Respondo:

— Não, mamãe, eu não fui demitida — bufo. — Só não estou muito bem hoje.

Ela me analisa da cabeça aos pés com cara de entojo.

— Na verdade, você nunca esteve! Olha essas roupas ridículas, nem parece que trabalha num jornal tão famoso.

Levando em consideração que todas as vezes que ela me vê, fala as mesmas coisas sobre minhas roupas, eu não me importo, a ignoro.

Ouço ela continuar:

— E olha esse cabelo, tá horrível. Sem falar nessas olheiras. Você estava chorando, Ana Jully?

Penso ir despejando tudo de uma vez, porém neste momento, ouço uma voz masculina que é capaz de me fazer estremecer até o último fio do meu cabelo, de pânico.

— Marcinha, não achei a chave philips...— Quando me vê, o maldito se cala no mesmo instante.

Todos no recinto ficamos paralisados por um instante.

Então  começo a entender o motivo de todo nervosismo de minha mãe. O maldito do seu ex marido está alí, com ela. Mesmo assim ela se recompõe e finge não se importar com a minha reação.

— Está na gaveta à direita.

O pior é que ele ainda tenta falar comigo.

— Oi, Jullynha.— nunca gostei do meu nome, mas quando sai da boca dele, sinto mais incômodo ainda.

Sou tomada por um enjoo, percebo que hoje não é um dos meus melhores dia. De todas as possibilidades que eu cogitasse, jamais imaginei vê-lo novamente, pois o canalha estava preso. Não por minha causa, apesar de ter sido meu desejo denunciá-lo pelo que me fez quando eu tinha apenas onze anos, mas infelizmente nunca tive coragem o suficiente para contar a minha mãe e nem a polícia.

Mais imagens dolorosas da minha infância invadem minha mente, as de uma criança completamente apavorada, escondida debaixo da cama. Volto ao presente e faço um enorme esforço para ficar firme. Não me dou o trabalho de responder ao cumprimento. Sou uma mistura de raiva e tensão. Dou um passo para trás como se fosse uma distância suficiente para me manter segura dele.

Ainda sentindo meu corpo tremer, engulo seco e falo diretamente para minha mãe:

— O que ele está fazendo aqui? — pergunto sem esconder minha indignação.

Semicerro os dentes e as lágrimas teimam em descer. Lágrimas de ódio por esse homem, lágrimas de mágoa por Nicolas. Há um turbilhão de emoção dentro de mim. O pior de tudo é que minha mãe parece não se importar. Como sempre.

— Ana, eu não te devo explicações, você não mora mais aqui.

Sua voz é tão fria quanto sempre foi.

— Você aceitou um cara que te bateu e que estava preso por estupro de uma de suas amigas? Ah, não me deve explicações ou não existem explicações?

O imbecil se manifesta e eu desejo mais do que tudo dar um soco na cara dele.

— Jullynha não foi assim...

Felizmente minha mãe o interrompe:

— Nos deixe a sós, Zeca.

Ela parece estar com tanta raiva quanto eu, porém nossa raiva é por motivos opostos.

— Somos apenas amigos. O Zeca está me ajudando com o aquecedor que estragou, o inverno começa hoje.

— Mãe, eu não sou idiota! Vocês estão juntos. Eu não entendo como você pode aceitar um cara que estava preso, ele estuprou sua amiga e mesmo assim vai fingir que nada aconteceu?

Ela tem a resposta na ponta da língua:

— Foi consensual, Ana. Você sabe o quanto a Mônica é assanhada. Eles beberam muito naquela noite e ela se insinuou para ele. Quando Zeca se arrependeu e disse que me contaria sobre eles, ela o ameaçou, por isso denunciou ele...

Não suporto ouvir suas explicações insanas.

— Chega! Mamãe! Essa história é nojenta, sabia? — argumento aos gritos. — E você ainda acredita nele. Então ele passou todo esse tempo preso injustamente?

Ela bufa impaciente.

— Não, Ana. Zeca tinha um mandado de prisão em aberto por causa de alguns problemas que ele teve com drogas, mas isso foi há anos atrás.

Respiro fundo e solto o ar devagar na tentativa de conseguir digerir tudo o que está acontecendo. Enxugo minhas lágrimas ao ver que minha mãe vai defender ele de todas as formas. É por esse motivo que nunca tive coragem de contar o que esse monstro fez comigo, acho que no fundo tenho medo que ela não acredite, e que faça como sempre faz, inventa desculpas para colocá-lo como inocente e as vítimas como culpadas.

Imediatamente me arrependo de ter vindo até aqui.

Minha mãe nota que não quero continuar com esse diálogo, e certamente está contente, por isso começa a fingir que se preocupa comigo.

— Por que você dirigiu duas horas para vir aqui, minha filha, o que está acontecendo com você?

Me viro em direção a porta em silêncio.

— Acho melhor voltar para a cidade.

Minha mãe me segue enquanto saio pra fora. Consigo ver Zeca perto da garagem.

— É algum problema amoroso, minha filha? — ela pergunta mesmo sem que eu olhe para trás.

Márcia parece revoltada com meu desprezo. E para não ficar por baixo dá o último grito como o golpe final.

— Eu só quero te ajudar, Jully, o que ele te fez? Afinal você sempre teve dedo podre para escolher homens.

Nesse momento eu paro, respiro fundo e lhe dou a última resposta.

— Pelo menos, temos algo em comum não é mesmo, mamãe? — rebato olhando para o embuste na garagem.

Os dois me encararam feito dois paspalhos, entro no meu carro e saio dali o mais rápido possível.

Continuo dirigindo de volta para casa aos prantos, choro sentindo as lágrimas queimarem meu rosto.

Estou completamente sem chão com tudo o que está acontecendo. Rever aquele homem me deixou ainda pior.

*

Sai da casa da minha ninha mãe completamente desolada, é  muito ruim se sentir sozinha, há um vazio doloroso dentro do meu peito, retornar aquela casa só em trás lembranças dolorosas, mas rever Zeca talvez tenha sido a pior de todas. Chorei por horas, até me reestabelecer. 

Ainda estou dirigindo quando meu telefone toca. Olho para a tela e vejo que se trata dele, Nicolas, o canalha. Como ele ousa?

Decido não atender, mas o telefone continua a tocar. Então uma ideia vem à minha mente, talvez eu ainda consiga recuperar o pouco de dignidade que me resta. Não vou permitir que Nicolas pense que sou um boba apaixonada que está arrasada por ter sido enganada.

Coloco os fones e atendo.

Ligação on

— Ana! — ele fala meu nome bastante aflito. No primeiro instante não consigo dizer uma só palavra. Ouço ele insistir: — Ana, me responde por favor!

Respiro fundo e de repente me travo, não será tão fácil quanto parecia.

— Oi... Nicolas — é tudo que consigo dizer.

— Ana, Céus, estou tentando falar com você faz tempo. Onde você está? Te procurei na redação, fui na sua casa...

De repente sinto a coragem me invadir e lhe interrompo:

— O que você quer? — pergunto secamente.

— Precisamos conversar, tenho que te explicar as coisas.

— Não. Você não tem que me explicar nada, Nicolas. Não tínhamos nada oficial. A propósito, eu também tinha uma pessoa.

Percebo ele engasgar do outro lado.

— Como assim, você tinha alguém. Quem?

Parece insano, mas sinto um pouco de ciúmes em sua voz, Nicolas me deixa confusa. Mas decido não me enganar novamente e continuo com meu plano.

— Nos conhecemos no Tinder… E depois que você viajou as coisas ficaram mais sérias entre a gente. Há uma química incrível entre nós.

Ele não responde no mesmo instante. Apenas fala meu nome.

— Ana…

— Tudo bem, Nicolas, a gente nunca levou a sério o que rolava entre nós. Mas agora acabou! Afinal você vai se casar, não é?

Me esforço para continuar minha interpretação, mas na verdade estou destruída por dentro, contenho um soluço.

— Não, Ana, não é verdade. Isso é mentira. Você só quer se vingar.

Tenho vontade de gritar alguns insultos. Ele é mais babaca do que eu esperava.

— Não preciso mentir pra você. Agora ao contrário de mim...

Ele me interrompe, e é nítido que está testando minha mentira.

— E como ele se chama?

Fico muda, o desespero é tão grande que todos os nomes masculinos desaparecem da minha mente. Procuro ao redor por algum nome que esteja escrito em qualquer lugar, então vejo um enorme outdoor com a propaganda de uma marca de roupas de banho, o homem na foto se trata de Mateo Duran, um famoso ator da televisão.

— Mateo! Ele se chama Mateo.

Ouço em sua voz uma mistura de riso e raiva. Ele bufa.

— Isso só pode ser brincadeira. Olha, Ana, ainda não acredito em você. Quero te ver pra gente conversar.

Grito imediatamente:

— Não! Não posso, pois, vou me encontrar com Mateo, hoje e amanhã também.

Eu não quero ver Nicolas, me recuso acreditar em qualquer palavra que saia de sua boca. Meu maior medo é de que ele consiga me enganar novamente.

Escuto sua risadinha sarcástica do outro lado. Acho que ele realmente não acredita em minha história.

— Daqui a pouco vou passar na sua casa. Desculpe por você ter descoberto tudo daquela forma.

E queria que eu descobrisse como? Pelas redes sociais? Ah, não, ele sabe que não tinha, ainda.

Penso.

— Claro que fiquei surpresa, mas está tudo bem. Estava precisando te contar sobre Mateo, então estamos quites.

Acho que no fundo deixei ele na dúvida sobre a existência do tal Mateo.

— Você insiste nesse cara! — Sua voz saiu num tom rude.

— Olha, Nicolas, preciso ir. Depois nos falamos na redação.

— Ana...

Desligo bruscamente em sua cara.

Ligação off

Fico por um bom tempo olhando para o nada sentindo o imenso vazio aumentar a cada instante dentro de mim. Pensei que toda minha mentira me fizesse sentir melhor ou menos idiota. Mas eu me enganei, a dor continua aqui, e as lágrimas também, por isso não às seguro.

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