UM HOMEM DAS CAVERNAS

Ana

Faz quase duas horas que estou no hospital, sentada na recepção aguardando notícias do homem que me salvou.

Liguei para Lili assim que cheguei aqui, a pobrezinha estava desesperada atrás de notícias minha, afinal desapareci o dia todo. Conto a ela parte do que aconteceu e como boa amiga que é, sem pensar duas vezes disse que está a caminho. Não tenho muitos amigos, e Lili é mais que especial.

Os médicos me chamam para dar notícias do homem internado, estou angustiada por informações dele.

- Senhorita, Ana Meireles.

Me levanto para falar com o doutor.

- Sim, sou eu.

Ele analisa a prancheta em suas mãos e se vira para mim novamente.

- Bom, o homem que a polícia trouxe, não tem nome, nem endereço... Não conseguimos nenhum contato de familiar pra avisar sobre a briga. O quadro dele é estável. Fizemos um raio x, todos os exames necessários, ele teve muitas escoriações e... Uma entorse de tornozelo grave. Vai ficar em observação por vinte e quatro horas. Mas o que nos preocupa é sobre a alta dele. Ele não tem pra onde ir, me parece que mora na rua, e se não for tratado a torção, pode se tornar uma lesão crônica, que pode ter necessidade de cirurgia, e no caso mais grave ele não conseguirá voltar a andar normalmente. Resumindo, ele precisa de cuidados.

Vou assimilando cada palavras que o doutor diz, fico feliz que o homem esteja bem. Mas saber que ele precisa de cuidados me desestabiliza, afinal não o conheço. Mas por outro lado sinto que preciso fazer algo por ele, afinal salvou minha vida. Mas o que eu posso fazer?

O médico termina de me dar o diagnóstico e sai me deixando atordoada com essa responsabilidade.

Felizmente, Lili chega. Minha amiga me abraça sem dizer uma palavra, sinto o quanto ela estava preocupada. Ficamos assim por um bom tempo e logo começo a descarregar tudo o que me aconteceu... Falo sobre minha mãe e o fato de Zeca e ela estarem juntos novamente, minha amiga não sabe sobre o abuso de infância que sofri, nunca contei. Na verdade, somente minha terapeuta que sabe, sempre guardei esse segredo doloroso apenas pra mim. Conto para Lili sobre a ligação de Nicolas e a mentira idiota que inventei sobre o tal Mateo, ela ri horrores, mas fica brava por eu não ter falado poucas e boas pra ele. Depois dou com detalhes sobre o caso do tal assaltante na rua e como o homem morador de rua me salvou. Lili respira fundo e me dá toda força que eu preciso.

- Ah! Minha amiga, você passou por muita coisa hoje - fala apertando minhas mãos forte.

Repouso minha cabeça em seus ombros.

- Minha vida é uma droga - resmungo desanimada

- Ana, tudo isso vai passar, você vai ver!

Adoro quando ela é positiva assim. Mas infelizmente nem tudo é tão fácil.

- E agora o que vou fazer com ele? - digo apontando pro quarto que está com a porta fechada.

Ela se levanta muito curiosa e olha pelo vidro da porta. Ele está lá, deitado com seus olhos fechados, tem tanta barba e cabelo que fica difícil de saber como ele é. Mas tem algumas escoriações no rosto.

Uma enfermeira entra para trocar o soro, fico parada na porta observando tudo, bastante preocupada.

- Caramba! Ele se arriscou pra te salvar! - Lili resmunga.

Me levanto e fico ao seu lado analisando-o.

- Pois é. E ele está assim por minha causa. Como vou abandoná-lo?

Lili me olha como se eu fosse uma extraterrestre.

- Você não está pensando em...

- Levar ele pro meu apartamento?

Ela leva as duas mãos na boca assustada. E se aproxima de mim, na porta.

- Você tá louca? Nem o conhece.

Me afasto e sento no banco de espera novamente bufando. A enfermeira saí e deixa a porta entreaberta.

Volto minha atenção a minha amiga.

- Então me dê outra solução.

Minha amiga se senta ao meu lado.

- Vamos esperar ele acordar e procurar a família dele. Simples assim. Você não sabe se ele é algum daqueles casos de pessoas que tem problemas com álcool ou drogas, ou se ele é um marginal qualquer. Você tem mil motivos pra não levar ele pra sua casa.

Sei que ela tem razão, já pensei nisso também.

- Eu sei, isso pode ser perigoso. Mas procurar a família dele também é uma opção - falo concordando.

- Então você vai pra casa, toma um banho e descansa. Aliás você está fedendo! - Ela ri e eu lhe dou um empurrão com os ombros. - Amanhã quando ele acordar conversamos com ele.

Fico tranquila em saber que não verei Nicolas, o médico me deu dois dias de afastamento, disse que eu preciso me recuperar emocionalmente do ataque, então não vou aparecer no trabalho amanhã.

Sigo o conselho de minha amiga e vou pra casa.

Tomo um bom banho e ainda passo um tempo me recordando do momento em que o misterioso homem me salvou daquele infeliz. Tive muita sorte, serei grata a ele por isso. Me alimento de um macarrão instantâneo, prático e rápido, nunca fui muito boa em cozinhar, talvez por isso me alimento tão mal. Estou bem cansada que quando noto desmaio na cama.

Acordo e vejo que são quase nove. Realmente dormi muito. Me arrumo rápido, visto um jeans um pouco largo e pego uma camisa de mangas compridas e um blazer, hoje é o primeiro dia do inverno, desde ontem já sentia o frio. Aqui costuma gear nessa época quando as temperaturas baixam muito. Prendo o cabelo em um coque frouxo, pego meu cachecol e saio para o hospital, passo em algum lugar pra tomar um bom café, outra coisa que não costumo fazer em casa.

Chego ao hospital e recebo uma mensagem de Lili.

"Amiga, não poderei encontrá-la, isso aqui tá uma loucura, na redação."

Agradeço ela pela mensagem e desligo o telefone.

Me apresento na recepção e vou direto ao quarto do homem, para resolver tudo de uma vez.

Vejo que ele está acordado, sentado, e tem uma expressão séria. Me aproximo e respiro por um momento criando coragem para encará-lo. Se instaura um clima muito estranho.

- Bom dia.

Ele me analisa dos pés à cabeça, e não me responde. Não faço ideia sobre o que se passa em sua mente. O homem permanece em silêncio por um momento, o que me deixa desconfortável, até que finalmente me responde quebrando o gelo entre nós.

- Bom dia - fala em tom baixo e seco.

É visível que ele me ignora, fico surpresa, afinal não se parece em nada com o homem gentil e corajoso que me ajudou na noite de ontem. Então disparo a falar, afinal tenho pressa em resolver tudo.

- Eu sou, Ana. A moça que você ajudou ontem. Quero muito te agradecer por tudo, sem você, aquele homem teria feito o pior. - A expressão dele permanece fria, ele é muito sério e me sinto constrangida, então continuo a falar: -, mas infelizmente você se feriu, e os médicos me disseram que vai precisar de cuidados. Me diz como encontro sua família e assim eles poderão lhe ajudar.

Acho que se eu estivesse conversando com uma pedra, teria mais êxito. Esse homem é estranho, parece mais o homem das cavernas e tenho dificuldades em saber se ele fala meu idioma, pois me olha como se não me compreendesse ou não se interessasse pelo que falo.

Levando em conta seu silêncio falo mais um pouco:

- Então... Você mora por aqui... ou é de fora? - ele ainda não me responde - Qual seu nome mesmo? - insisto, porém, ele continua sem abrir a boca.

Bufo, realmente não está sendo minha melhor semana.

Olho pro chão como se conseguisse enterrar meu rosto de vergonha por estar falando praticamente sozinha. Esse cara é muito mal educado.

Até que... surpreendentemente, ouço sua voz:

- Não precisa se preocupar comigo - ele fala em tom áspero.

Sua reação é tão arrogante que nem consigo responder.

Ele parece irritado e de repente tenta se levantar da cama sobre gemidos de dor. Fico perdida não sei o que fazer.

Talvez devesse deixar ele, afinal não me recebeu com muita simpatia. Porém quando ele pisa no chão se desequilibra e cai, automaticamente tento ajudar, mas ele é muito pesado. E não fica nada satisfeito com meu toque.

Felizmente logo um enfermeiro surge e nos ajuda.

- Senhor, você precisa ficar de repouso, não conseguirá pisar por uns três dias, teve uma lesão grave.

Ele resmunga algo, parece bravo:

- O que eu preciso mesmo, é ir embora daqui!

O enfermeiro retira o acesso ignorando o mau humor do homem das cavernas. Fico pensando sobre o quanto estou ferrada. E quando noto já abri minha boca:

- Ótimo! E você vai embora pra onde, tem casa?- falo com um pouco de ironia na voz, não poupo, afinal ele foi rude comigo também.

Ele não hesita em me responder grosseiramente:

- Não importa pra onde vou!

Respiro fundo com sua ignorância. E de repente toda minha paciência se vai, trato ele como se fosse uma criança de sete anos fazendo pirraça.

- Olha, estou me esforçando pra te ajudar, pois na noite de ontem você me salvou, estou grata por isso. Sinto que estou em divida contigo. Mas parece que você não sabe ser nem um pouco gentil.

Vejo ele bufar.

O homem abaixa a cabeça e meneando.

- Não! Você não quer me ajudar por gratidão. Moça você só quer se livrar de um problema e tem medo de ficar com um peso em sua consciência se não fizer nada, conheço pessoas como você.

Suas palavras me pegam de cheio. Poxa, como ele é sincero.

- Não é ... Bem assim - resmungo mesmo sabendo que ele tem toda razão.

O homem me interrompe com arrogância:

- Sim, eu sei que é assim. Sabe que eu não tenho pra onde ir, e teme que eu seja algum drogado ou maníaco qualquer. Mas quer dar uma de boa moça procurando minha família, assim passa esse problema pra frente e poderá deitar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente.

Na verdade eu preferia quando ele estava calado.

Mas ele continua e exaltado:

- Vou facilitar as coisas pra você, só preciso de umas muletas para andar, o resto eu me viro na rua.

Apesar de toda arrogância, sinto uma ponta de... Pena... Isso. Sei que não é um bom sentimento, mas esse homem ao que tudo indica, ele não tem família e nem pra onde ir e eu fui egoísta pensando apenas em me livrar dele.

Resolvo baixar a guarda.

Respiro fundo e falo em tom amigável:

- Me desculpe. Eu realmente desejo lhe ajudar.

Antes que ele me responda de forma bem cretina, felizmente o médico entra nos interrompendo.

De alguma forma me sinto aliviada.

- Bom dia - O doutor nos cumprimenta. -, senhor sem nome - ele brinca, pois, na verdade não sabemos a identidade dele.-, levando em consideração que você está acordado e bem, desde ontem, já pode ter alta.

Nesse momento começo a entender tudo. Se ele esava acordado ontem, certamente ouviu minha conversa com Lili, por isso todo esse mau humor.

Ele resmunga:

- Ótimo! Só preciso de muletas.

O médico lhe reprime:

- Calminha aí. Vai devagar, não poderá pisar com esse pé durantes no mínimo três dias. Vai ter que tomar alguns remédios também.

O doutor se vira pra mim e me entrega a receita. O homem fica nitidamente furioso por isso.

- Eu posso responder por mim.

Pego os papéis e coloco em minha bolsa com a intenção de provocar ele. Me sinto vitoriosa ao ver como ele reage.

O médico continua:

- E tenho uma excelente notícia pra vocês dois. O assaltante de ontem foi preso, já tinha um mandato de prisão em aberto.

Sinto um alívio me invadir. Finalmente uma boa notícia.

Pela primeira vez vejo o homem das cavernas sorrir. E por incrível que pareça seus dentes são limpos e perfeitos. O que indica que ele não usa drogas e nem é um alcoólatra.

- Ótima notícia, doutor - ele fala.

- Que bom - respondo sorrindo.

Neste momento nosso olhos se encontram e não sei por qual motivo, talvez seja pela alegria mútua com o fato de que houve justiça, o agressor não ficará impune.

Ambos ficamos um pouco tímidos com nosso contato visual, e imediatamente quebramos.

- Então, aqui está sua alta - o médico fala entregando ao homem os papéis da alta.

Ele parece aliviado, apesar de tudo.

Vejo lhe entregarem suas roupas, percebo como estão maltrapilhos além de uma mochila um pouco velha também que deve conter suas coisas. Ele saí com ajuda do enfermeiro para se vestir, aproveito para conseguir algumas muletas para ele e uma cadeira de rodas para sairmos dali. Quando retorna a cadeira já está pronta para ajudar a chegar até a saída.

Somos conduzidos pra fora e durante todo o trajeto não trocamos nenhuma palavra.

O enfermeiro entrega as muletas que consegui e ele fica contente, pelo menos terá algum apoio. Devolvemos a cadeira e logo estamos a sós.

Um silêncio constrangedor se instaura entre nós, afinal o que acontece agora?

Ele fala primeiro:

- Obrigado, mas agora posso seguir sozinho - fala ajeitando as muletas com dificuldade.

O frio é intenso e vejo que ele não está vestido apropriado. Fico pensando no que será dele morando na rua, sem tomar os remédios e sem repouso.

Não consigo pensar direito, e mesmo achando uma ideia louca, sei que não posso deixar ele nesta situação.

- Olha, vem comigo. Pode ficar no meu apartamento, pelo menos nesses três dias em que não poderá pisar no chão.

Ele fica paralisado, certamente não esperava por esse convite. Na verdade nem eu. Lili vai me matar quando souber que fiz esta proposta.

Mesmo assim insisto:

- Moro aqui perto, lá se recuperará logo.

Ele parece confuso, como se não soubesse o que dizer. Mesmo assim fala cheio de ironias, acho que é uma forma de defesa.

- Mas você nem me conhece. E se eu for um bandido ou um drogado?

Lhe interrompo antes que ele comece com aquele discurso dramático:

- Olha eu sei que ouviu minha conversa com minha amiga. - falo abrindo meu coração com toda minha sinceridade. - Mas, eu realmente desejo ajudar você como gratidão por ter se arriscado, afinal se está assim, neste estado é por minha causa.

Ele ainda reluta:

- Não é por sua causa. Eu teria feito por qualquer um. E me machucar, foi uma fatalidade.

- Fatalidade? Você poderia ter morrido sabia? - digo emocionada ao me lembrar daquele maníaco espancando ele. Pensei que o havia matado.

De alguma forma ele se comove, acho que nota minha sinceridade.

Ele olha para o chão pensativo. Uma brisa fria nos invade e ele estremece por causa de sua pouca roupa enquanto me aconchego em meu cachecol.

- Vamos para o meu apartamento, você toma um banho, come algo, aliás deve estar faminto. Compramos seus remédios no caminho e consigo roupas limpas e quentes, até alguns cobertores, está muito frio pra você andar por aí assim.

Ele fica em silêncio novamente, mas desta vez é diferente, parece ter baixado a guarda.

- Realmente tá frio pra caramba - ele fala e surpreendentemente sorri.

E novamente noto como seus dentes são perfeitos, fico imaginando como ele realmente é sem essa cabeleira toda.

Aproveito que ele está cedendo, e o pressiono:

- Vamos congelar aqui - falo abraçando meu próprio corpo.

Ele ergue uma sobrancelha e sorri novamente.

- Tudo bem, preciso mesmo de um bom banho.

Sorrimos juntos.

Ele me espera enquanto pego meu carro no estacionamento. No caminho passamos na farmácia e compro além dos remédios vários produtos de higiene masculina, sou bem exagerada, pego giletes, creme de barbear, shampoo, cremes, entre outros. Ao voltar para o carro e lhe entrego as sacolas. Timidamente ele segura e noto discretamente que ele abre e começa a mexer o conteúdo. Após um tempo, ele segura uma embalagem contendo alguns giletes e franze as sobrancelhas.

- Você por acaso está querendo me passar algum recado?- diz com tom brincalhão.

Enquanto dirijo reflito sobre esse lado bem humorado dele. Até que esse homem não é tão carrasco assim quanto parece.

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