Gale Wintamer certamente não tinha como plano ideal uma batalha catastrófica após o café da manhã.
Era o dia de sua graduação como Protetor no Santuário da Luz, tudo o que precisava fazer era derrotar seu oponente, Geralt, na Arena das Estrelas. O lugar era um grande estádio dentro do Santuário em forma da Lua crescente e com um núcleo feito para, magicamente, alterar o espaço ao redor durante os combates e treinar os aprendizes em ambientes hostis.
O jovem, de dezessete anos, esperava por aquela oportunidade desde que chegara ao Santuário antes dos dez. Para ele, esse era um momento grandioso. Finalmente estava pronto para cumprir seu destino de se tornar um Protetor da Criação.
O Santuário da Luz era uma cidade inteira protegida pelas brumas de Niwloedd, região mais afastada ao sul de Cylch. A névoa, fruto de uma poderosa magia, ocultavam o Santuário dos olhos de qualquer criatura que não fosse um filho da Luz. Ao atravessá-las e visualizar as muralhas do lugar, a impressão que se tem é que a construção teria o tamanho de um grande castelo, porém, ao ultrapassar os grandes portões descobria-se que, na verdade, tratava-se de uma cidade inteira. No centro dela, havia uma grande e majestosa estátua de Luxord e seus quatro filhos, seres místicos, lutando.
O monumento representava a história do fim da guerra contra os Senhores das Trevas e os hud, as criaturas nascidas da magia e dos tipos mais variados em tamanho e forma vindas do outro mundo, e a Ascensão do Senhor da Luz.
A imagem no centro da cidade possuía pelo menos cinco metros de altura e ficava em cima de um altar. Era construída com a mais brilhante rocha anciã que puderam encontrar e cuidadosamente esculpida até os mínimos detalhes, o que tornava as figuras praticamente reais.
O Santuário era a fortaleza dos sentinelas, os portadores dos Filhos de Luxord: Espadas criadas a partir da alma dos filhos de um dos Três Tremores. Os quatro sentinelas tinham como objetivo manter o equilíbrio de Cylch com a ajuda das espadas mágicas e dos chamados protetores: Seguidores do Arauto da Liberdade que não possuem a benção de uma Estação, mas que compõem o seu exército pela terra de Cylch. Dentro do lugar os céus sempre estavam claros e limpos, exceto nos arredores da Arena, e a água era obtida a partir de nuvens mágicas que ficavam em cima de grandes poços espalhados pela grande cidade murada, chovendo até a borda, onde não derramam uma única gota para o lado de fora.
Mas, se somente os filhos da Luz podem encontrar a entrada, como chegaram aqui?
Foi o que pensou o jovem quando pôde respirar.
Após o café da manhã, tinha se dirigido à Arena das Estrelas para se acalmar e preparar para o confronto com Geralt, o melhor amigo. Fez seu rito pessoal, vestiu a armadura leve e deitou os joelhos no chão onde em poucos minutos os olhares de metade da população do Santuário estariam direcionados e rezou para que a Luz de Luxord brilhasse mais forte sobre ele naquele dia.
Não foi, contudo, o que aconteceu.
Aos poucos, rostos conhecidos iam chegando e se acomodando nas primeiras fileiras da grande construção. Os aprendizes, empolgados para assistir a batalha, discutiam tentando prever qual forma a Arena mágica tomaria naquele dia. Um deserto de gelo, penhasco, vulcão, uma simples planície alta, ou talvez todas essas possibilidades juntas e infinitas mais, o que a criatividade daqueles garotos pudesse elaborar.
— Ei, Gale! Animado para sua graduação? — disse Lenora, uma aprendiz do Santuário, quatro anos mais nova que o garoto ajoelhado. Ele abriu os olhos levemente assustado com a voz que lhe tirou do transe meditativo em que estava e virou-se para a garota de cabelos escuros, que formavam uma grande trança que lhe caía pelo ombro.
— Não percebi que estava se concentrando, é impossível ver seu rosto com esses cabelos na frente! — disse a menina, que torceu o nariz fino tentando se justificar.
— O que tem de errado com o meu cabelo? — questionou Gale enquanto enrolava os dedos no cabelo castanho que lhe descia até um pouco acima dos ombros.
— Não tenho nada contra o seu cabelo, idiota. Mas não dá pra ver o seu rosto com ele todo na sua cara, nem sei como você luta tão bem com essa coisa mal cuidada tampando sua vista — respondeu Lenora com um suposto tom de inveja enquanto dizia as últimas palavras.
O jovem deu uma breve risada, tentando disfarçar seu nervosismo. Era a sua última provação. Estava tremendo e com a barriga se contorcendo dentro dele mesmo fazendo questão de comer o mínimo possível de manhã. O Sol já começava a se fazer mais presente no céu, o garoto avaliou que deveriam ser por volta de oito horas.
Todos já deveriam estar aqui. Geralt deveria estar aqui.
— O que foi? Está com uma cara idiota — disse a garota à sua frente apoiada na mureta da Arena. Ela o encarava tentando decifrar seus pensamentos mais profundos, um costume que Gale já conhecia muito bem, mas nunca se rendeu aos olhos castanhos e intimidadores. O cabelo sobre a face o ajudava.
— Eu só estava pensando que… — Não terminou o que ia dizer.
Um estrondo, semelhante a uma forte explosão, ecoou por toda a Arena.
Instantaneamente todos os seus sentidos ficaram em alerta.
No portão leste da Arena das Estrelas, um tumulto começou com a invasão de soldados vestidos em mantos totalmente negros como as sombras de uma caverna na escuridão. Os homens usavam máscaras estranhas que cobriam totalmente a face apoiadas pelo capuz das capas que escondiam espadas e machados agora empunhados, prontos para uma carnificina. Gale viu as arquibancadas serem tomadas por aqueles desconhecidos e os protetores desarmados caindo um a um. Alguns conseguiam roubar armas dos invasores e lutar pouco, ou pelo menos tentar. Eram muitos deles.
Lenora ficou imóvel vendo os protetores sendo derrotados tão facilmente. Um ataque surpresa. Não era permitido a protetores e aprendizes portar armas no interior da Arena, pois, quando o núcleo de magia fosse ativado, todos aqueles que estivessem armados sentiriam o efeito da mudança de terreno, o que era reservado somente para quem iria lutar naquele dia, Gale e Geralt. Alguns aprendizes pularam a mureta que dividia a arena de luta da arquibancada, seguidos por um pequeno número de protetores que não tentavam combater a invasão. O jovem puxou a amiga e correu para o portão oeste, que era a entrada direta na arena de luta através de um grande corredor, até ele ser arrombado por outro grupo dos mesmos invasores. Um deles veio na direção do rapaz com uma lança e tentou o golpear com uma estocada.
O aprendiz fez valer os anos de treinamento e desviou o corpo para a direita, agarrou a arma com as duas mãos e a tomou do dono, golpeando-o com a mesma. Era a primeira vez que tinha acertado carne humana com um objeto mortal, pôde sentir a resistência dos músculos e ossos enquanto a ponta de metal enferrujada perfurava o tórax do oponente e quando a vida se esvaiu da casca através do cabo.
Gale recobrou a consciência. Não podia entrar em choque, nem mesmo por um segundo sequer, depois, se sobrevivesse, poderia se lamentar. Puxou a lança de volta, que se partiu, deixando-o apenas com metade do cabo nas mãos.
— Quem diabos são eles!? — perguntou outro aprendiz mais novo. Qual era o nome dele? Robert? Gill? O garoto não se lembrava.
— Não sei! — respondeu.
— Como podem ter entrado aqui? — ele questionou novamente enquanto chutava um dos invasores escuros para desequilibrá-lo e roubar sua espada.
— Já disse que não s… — O jovem de cabelos grandes e bagunçados não conseguiu terminar a frase ao ver o garoto ser apunhalado pelas costas com uma adaga empenada e ter a espada que acabara de conseguir, removida das suas mãos que começavam a perder calor.
Gale investiu contra o covarde assassino com o cabo quebrado da lança. Primeiro o arremessou em direção ao alvo, que o rebateu para longe e, fazendo isso, abriu sua defesa. O menino segurou o braço em que o mascarado empunhava a espada e a tomou depressa, antes que a adaga presente na outra mão o acertasse. Depois, chutou o joelho do homem e brandiu a espada contra o mesmo. A sensação se fez presente de novo, nem um pouco mais fácil de lidar que a primeira morte.
Olhou ao redor. Encontrou o painel a sua direita onde estavam o escudo e a espada: Dente de Dragão. Suas armas haviam sido recolhidas na noite anterior para que fossem tratadas especialmente para aquele dia, então ele planejava somente tomá-las na hora do embate com Geralt. Correu com a arma que acabara de apanhar em punhos. Acompanhado de um grito, golpeou um soldado no caminho, depois aparou o golpe de outro e contra-atacou, perfurando a cota de malha enferrujada por baixo do corpo do inimigo naquela curta dança de espadas. Enquanto continuava correndo para atravessar o campo ia repelindo ataques e às vezes devolvia o golpe sem perder o fluxo de seus apressados passos até Dente de Dragão. A poucos metros de distância foi interrompido por um oponente muito habilidoso, qual não dava brecha para um ataque direto. Gale posicionou a espada para trás, abaixo de sua cintura, uma de suas posições favoritas com espadas de duas mãos para surpreender o inimigo. O espadachim adversário tent
Gale ficou feliz de poder assistir Kyria lutar de tão perto. Ela era magnífica em combate, talvez a melhor dos quatro. A Sentinela logo o acolheu ao entrar na luta, mesmo não o conhecendo. O jovem sabia que os sentinelas possuíam tarefas mais importantes do que saber o nome dos aprendizes, mas ela era diferente, importava-se com cada soldado sob seu comando e sorriu quando apoiou suas costas nas do garoto. — Quer que eu te cubra, novato? — perguntou ela em um tom leve dada a gravidade da situação. Com a respiração pesada, a Filha do Outono usava uma armadura leve, de malha de dragão, muito rara em tons escuros como madeira de carvalho guardiano e cabelos arrepiados e cuidadosamente raspados do lado direito da cabeça da cor das folhas secas que caem das árvores antes da chegada do Inverno. Seus grandes olhos envoltos de uma pintura preta pulsavam em tons dissonantes de laranja e transmitiam inspiração ao mais infeliz e desacreditado. — S-Seria uma honra, senhora — disse o rapaz com a
O aprendiz conseguiu ver quando as lanças acertaram dois dos arqueiros. O outro se desviou, mas caiu de cima da casa. O socorro havia chegado com força. Tratava-se dos que lutavam perto do acampamento dos aprendizes, que dominaram o terreno e começaram a avançar. Liderando o avanço vinha Hêner, a General do Exército da Luz, patente mais alta do Santuário antes dos sentinelas. Tinha cabelos loiros e uma grande armadura que Gale arriscava ser de placa de dragão, mas não tinha certeza e não perguntaria. A alta mulher trazia uma espada curta e um gigante escudo branco que mais parecia uma porta, mas era esplêndido aos olhos do jovem. Ao seu lado, vinha Gaheris empunhando Litha, com sua espessa barba e tranças amarradas para trás. O guerreiro era intimidador, trajava uma armadura vermelha que mesmo de longe dava para saber que era feita de aço lofidiano pelo brilho que emanava. Gaheris era de Lofeed, reino especializado na arte da guerra e onde os habitantes possuíam a pele mais escura, em
No escuro e pequeno quarto iluminado somente pela fraca chama de uma vela usada, Gale acordou. Os pensamentos eram confusos em sua cabeça quando tentou abrir os olhos com dificuldade e se adequar à iluminação ambiente, ou à falta dela. Não se lembrava de muitas coisas, borrões e lampejos surgiam em sua mente e eram levados pela tempestade de suas memórias. Pôs-se a sentar na cama que logo percebera não ser sua. Não sentia tanta dor, mas percebeu que o punho esquerdo estava enfaixado e suas costelas também. O pé ainda latejava como se sentisse uma ferida inexistente. A cabeça doeu com o esforço. — Ei, não se esforce tanto, garoto — disse a voz de alguém adentrando o quarto com outra vela que, dessa vez, acabara de ser acesa. Um indivíduo pálido, com os longos cabelos prateados e grandes orelhas em forma de seta se aproximou, a Luz da chama destacava seus olhos de cor dourada. Era Jörfann, um elfo da Lua. Com a vitória dos primeiros sentinelas e suas espadas forjadas com a alma dos
Com um rápido tratamento de ervas misturado ao pouco que tinha das águas do Loskjs, o rio do Vale da Lua, o elfo cinzento permitiu que o jovem fosse ajudar os outros filhos da Luz com os preparativos contra o próximo ataque e reparar o que fosse preciso. Ao sair da enfermaria, o garoto se deparou com um céu escuro e nuvens cor de ferro. Ainda não era noite, mas o Sol parecia ter sumido. Ao longe do Santuário podia se enxergar uma grande tempestade com trovões enlouquecidos que repetidamente atingiam o solo. Virando-se para o sul, um tornado devastava as plantações de Masnach, terra natal de Gale. No oeste, grandes massas de fumaça subiam aos céus escuros, aparentava ser um grande incêndio. As Estações serviam para manter o equilíbrio da natureza e o controle das ondas espirituais, sendo cada uma cuidada por um filho de Luxord. O Sentinela e a espada respectiva da Estação ganhavam mais poder e influência durante tal período de tempo. Estavam no final do Outono e Samhain havia sido qu
Nos estábulos eram criados os grandes cavalos do Santuário da Luz e unicórnios, cujo líquido gerado pelo chifre era capaz de consertar rachaduras em qualquer metal. Provavelmente era o que Polliko havia usado na armadura e o tempo na fornalha fora apenas para reforçar o equipamento. Fazia frio nas ruas da cidade, o que nunca acontecera no Santuário da Luz. O feitiço de proteção também fora afetado com a quebra do equilíbrio, logo os filhos da Luz ficariam a mercê da natureza enfurecida. Alastair estava do lado de fora do lugar limpando as asas de um pégaso negro. Ele possuía olhos prateados, a pele era branca como leite, chegando até a assustar pelo modo como suas veias ficavam expostas, e seus cabelos louros não eram cortados desde sua consagração como Sentinela há uns bons meses. O homem trajava roupas simples, como um camponês. O que o denunciava era Yule, que repousava na bainha em sua cintura. — Ah, você tem algo para mim, não é mesmo? — disse o Sentinela, simpático. — S-Sim
Todos os olhares eram direcionados a Gale, que comia sentado sozinho à mesa no pavilhão de refeições.O lugar ficava ao norte da cidade e era composto por grandes mesas e bancos enfileirados onde os protetores tinham suas refeições noturnas. Os aprendizes jantavam no acampamento, o que tornava o ambiente um pouco hostil ao seu ver. Poucos ali conheciam o garoto que mal conseguira encostar na sopa enquanto vigiado pelas sombras dos céus negros que não abrigavam nenhuma Luz.Os soldados da Legião de Tarian haviam desaparecido após a batalha, o que era extremamente suspeito. Como um exército e um animal de metal gigante poderiam sumir com tanta facilidade sem deixar rastros?A realidade ainda era difícil de aceitar. A cabeça do rapaz, que já estava confusa aquele dia, agora tinha sido virada do avesso. Os sentinelas possuem uma longevidade maior, por isso, são escolhidos a cada duas gerações de protetores no Santuário da Luz. Gale não deveria chegar assistir a uma consagração de Sentinel
— O que houve com o Outono? — perguntou ele, surpreso e confuso. — Não sabemos — contou Gaheris, agora com as tranças soltas sobre os ombros, que tentava inutilmente encontrar uma posição confortável para se sentar. As chamas da clareira no salão iluminavam seu rosto cansado e deixavam visíveis os fios esbranquiçados em sua barba. — Aparentemente o filho de Luxord se reforjou sozinho. — Terminou o lofidiano. Era visivelmente o mais abalado, Gale julgou por ter sido ele quem destruíra a espada de Kyria, causando a quebra no equilíbrio. — Tentamos usar o chifre de unicórnio para reparar suas feridas, porém, não adiantou. Suas rachaduras permanecem — Acalypha falou, sentida. — Há uma forma de consertá-lo? — perguntou Gale. Os campeões do Senhor da Luz se entreolharam. — O sacerdote Osellnif contou-nos a respeito de uma profecia, que se iniciava com os versos agora gravados do gume de Samhain, mas não temos nada documentado ou conhecimento sobre os próximos dizeres — começou Alastair