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As Cinzas Daqueles Que Caíram

No escuro e pequeno quarto iluminado somente pela fraca chama de uma vela usada, Gale acordou. Os pensamentos eram confusos em sua cabeça quando tentou abrir os olhos com dificuldade e se adequar à iluminação ambiente, ou à falta dela. Não se lembrava de muitas coisas, borrões e lampejos surgiam em sua mente e eram levados pela tempestade de suas memórias.

Pôs-se a sentar na cama que logo percebera não ser sua.

Não sentia tanta dor, mas percebeu que o punho esquerdo estava enfaixado e suas costelas também. O pé ainda latejava como se sentisse uma ferida inexistente. A cabeça doeu com o esforço.

— Ei, não se esforce tanto, garoto — disse a voz de alguém adentrando o quarto com outra vela que, dessa vez, acabara de ser acesa. Um indivíduo pálido, com os longos cabelos prateados e grandes orelhas em forma de seta se aproximou, a Luz da chama destacava seus olhos de cor dourada. Era Jörfann, um elfo da Lua.

Com a vitória dos primeiros sentinelas e suas espadas forjadas com a alma dos quatro filhos de Luxord, o Senhor da Luz partiu para um lugar desconhecido pelo mundo humano a fim de recuperar sua essência perdida, pois, para tal feito fora necessária quase toda a energia de vida do grande Pai das Estações. Após sua partida, os hud pacíficos que precisavam de um refúgio para viver foram acolhidos na terra de Cylch, gerando as várias espécies que habitavam o grande continente. Nas eras passadas, mais tipos e gêneros andavam sobre o solo, perdendo-se com o passar das Estações. Até aquele momento, o Santuário abrigava tanto protetores quanto aprendizes, havendo na história alguns casos de sentinelas não-humanos.

Gale conhecia pouco o Protetor Jörfann, tudo o que sabia era sobre o lugar de onde tinha vindo: O Vale da Lua. Um complexo de pedras lisas e do cinza mais escuro que era cortado por um rio de águas límpidas e fluídas capazes de curar qualquer ferida que pulse em um corpo ainda com vida. Os elfos de lá cultuavam o grande espelho que brilhava no alto dos céus. Suas peles eram cinzentas e os cabelos brancos, como o do filho da Luz à sua frente, que agora estava sentado examinando seus ferimentos com as mãos.

— Ai! — exclamou o garoto com dor.

— Dói quando encosto aqui? — perguntou o elfo enquanto tocava de forma displiscente suas costelas. — E aqui? — Apertou o pé direito do jovem de cabelos longos que, neste momento, mais pareciam um ninho de aves mal construído e sujo. Ele urrou de dor, arrancando do curandeiro uma breve risada.

— Mil perdões, estou há pelo menos umas sessenta voltas fazendo a mesma coisa e nunca perde a graça! — Então não conseguiu se segurar. Caiu na gargalhada até se contorcer.

Gale, impaciente, não estava com humor para piadas, principalmente as quais eram construídas em torno de seus ossos feridos.

Depois do aperto em seu pé, os fatos pareceram se encaixar melhor, conectando-se e resolvendo o terrível enigma do que havia ocorrido antes de acordar naquele lugar. Lembrou-se da Arena das Estrelas, o túnel onde fora acertado na cabeça, o beco da cidade, a luta contra o bárbaro e a chegada do Touro Armadurado, do quanto fora inútil ao correr para ajudar o acampamento onde morava.

Lembrou-se de Kyria.

— Quanto tempo eu passei desacordado? A Sentinela já se recuperou? Onde está Geralt? Por que é você quem cuida de mim? Qual a situação do Santuário? — o garoto falava tão rápido que qualquer outra pessoa não entenderia ao menos três palavras, mas por sua sorte, quem o tratava era um elfo da Lua muito bom em linguística.

Sua cabeça latejou novamente e ele gemeu, pousando as pontas de seus dedos sobre as laterais da face.

— Acalme-se, soldado. Você ainda não está bem o suficiente para bombardear a si mesmo com tantas questões — disse o elfo cinzento enquanto virava a vela usada para derramar a cera que derretia em seu topo.

— Me responda, por favor — suplicou o humano enquanto observava a cera da vela cair em cima do prato que a trouxera e se solidificar. — Preciso das respostas.

— E eu preciso de um trabalho novo. — O ser de cabelos prateados coçou a testa. — Será que seria um bom marinheiro?

— Acho que vou morrer — resmungou Gale enquanto o peito doía

— Confesso que é uma ideia tentadora, jovem. — Jörfann pousou a mão direita sobre o fino queixo. — Eu poderia usar o resto do seu remédio para fazer um chá de ervas. Seria muito mais interesante — disse enquanto expressava uma genuína satisfação em seu rosto.

— É dessa maneira que você trata os seus pacientes? — perguntou o aprendiz.

— Graças a Luxord que não possuo muitos. Pelo menos, não possuía até hoje. — Ele cuidava dos que haviam se ferido na batalha da invasão com ajuda de outros curandeiros, mas foi requisitado para tratar de Gale pessoalmente. Era o melhor naquele serviço em todo o Santuário da Luz e, até o dia anterior, mal haviam feridos por lá. — Pela Luz de Cylch, cuidar de humanos é pior do que ordenhar uma vaca voadora.

— Apenas me responda, senhor Jörfann — pediu o garoto.

O elfo o encarou com cautela.

— Você dormiu por algumas poucas horas. Descobrimos que fomos atacados por fanáticos ligados aos Senhores das Trevas, eles se auto-denominam “Devotos da Fumaça”. Agora estamos trabalhando para reconstruir o que de essencial fora perdido e armando defesas para podermos ter um chance de lutar contra esses doidos de nome esquisito.

— O que? Eles planejam retornar?—perguntou Gale, incrédulo.

— Mas é lógico que eles irão voltar, afinal, não vieram para cá fazer uma viagem em família. Estão atrás de alguma coisa qual ainda não sabemos. Navegamos no completo breu enquanto os desgraçados tiverem essa vantagem.

— Mas… — O rapaz pensou na pergunta que iria fazer. — Onde estão Geralt e Lenora? — Precisava ver os amigos. Depois do que tinha vivido, tudo o que Gale desejava era a companhia deles.

— A menina está bem, uma das melhores recrutas que já tive. Agora ela foi até os estábulos para ajudar a reconstruir a cerca dos unicórnios. — O elfo começou a falar. — Já o outro, não mora mais em nossa terra. Machado nas costas. Sinto muito.

O aprendiz sentiu o coração parar de bater por um instante.

A vontade de chorar era grande. Poderia ter se despedido melhor dele, talvez até lutado ao seu lado. Entretanto, todas as suposições o deprimiam ainda mais ao pensar em centenas de maneiras para ter procedido perto do irmão de criação que evitariam a dor que sentia no momento.

— E a Sentinela do Outono?

Jörfann abaixou a cabeça, deixando os longos cabelos prateados esconderem os olhos e a pele cinzenta, suspirou forte com um ar de decepção e sinalizou negativamente.

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