O aprendiz conseguiu ver quando as lanças acertaram dois dos arqueiros. O outro se desviou, mas caiu de cima da casa. O socorro havia chegado com força. Tratava-se dos que lutavam perto do acampamento dos aprendizes, que dominaram o terreno e começaram a avançar. Liderando o avanço vinha Hêner, a General do Exército da Luz, patente mais alta do Santuário antes dos sentinelas. Tinha cabelos loiros e uma grande armadura que Gale arriscava ser de placa de dragão, mas não tinha certeza e não perguntaria. A alta mulher trazia uma espada curta e um gigante escudo branco que mais parecia uma porta, mas era esplêndido aos olhos do jovem. Ao seu lado, vinha Gaheris empunhando Litha, com sua espessa barba e tranças amarradas para trás. O guerreiro era intimidador, trajava uma armadura vermelha que mesmo de longe dava para saber que era feita de aço lofidiano pelo brilho que emanava. Gaheris era de Lofeed, reino especializado na arte da guerra e onde os habitantes possuíam a pele mais escura, embora Gale os achasse bons demais em combate para serem simples humanos. Seus olhos negros exalavam fúria, que era correspondida pelo pulsar da espada-chicote incandescente se segurando para não irromper em chamas mais uma vez.
Atrás deles vinham Lenora e Geralt, que estava machucado, mas bem o suficiente para manter-se de pé, então podia lutar. Seu amigo estava com as vestes idênticas às de Gale, o que usariam em combate naquele dia, mas ainda trajava o peitoral e a braçadeira. Os curtos cabelos ruivos contrastavam com os olhos azuis, um estava quase fechado devido ao inchaço de um golpe certeiro. O rosto estava muito sujo, quase não sendo visível sua marca de nascença ao lado da sobrancelha esquerda e mal conseguia levantar a espada, mas segurava um escudo seminovo.
— Fiquem juntos! Em formação! — gritou Hêner. A general levantou o escudo e avançou, sendo seguida por grupo de protetores formando uma parede que varria a via principal. — Pela Luz que brilha sobre toda Cylch! — e os protetores responderam repetindo a fala em uníssono. Os legionários que acompanhavam o garoto foram atrás. Ele continuou agachado atrás da carroça, sendo intimidado pela presença do Sentinela do Verão que ficara para trás. O lofidiano o encarou de volta e o jovem de cabelos bagunçados sentiu um frio percorrer sua espinha de ponta a ponta.
— Ainda pode ficar de pé? — perguntou Gaheris, e pela primeira vez Gale pôde ouvir sua voz, era retumbante e amedrontadora, reverberando dentro da cabeça do aprendiz. — Está me ouvindo, moleque? — questionou impaciente.
Assentiu com a cabeça.
— Então levante, homem! Você é um filho da Luz ou um covarde!? — Fez os três jovens recuarem com o poder de sua voz. O guerreiro no chão tentou levantar-se, mas seu sangue já havia esfriado e finalmente teve o prazer de sentir a dor. Seu pé direito era incapaz de apoiar-se no chão. Seu braço, que levantava a espada, perdera toda a força com o corte que empapava sua manga de sangue e a pancada na cabeça finalmente estava lhe deixando verdadeiramente tonto.
— Gale! Eu o levo, não se preocupem — disse Lenora, aproximando-se do companheiro para ajudá-lo a levantar. Com certa dificuldade e muita dor, ele conseguiu se apoiar nela e ficar de pé. Gaheris praguejou e foi em frente. Geralt pretendia segui-lo, mas antes virou para o amigo e falou:
— Não morra. Ainda preciso te vencer para tornar-me Protetor. — Então sorriu pressionando as sardas em seu rosto ao fazê-lo. Geralt era o companheiro de tenda do jovem ferido, passaram toda a vida dentro do acampamento juntos. Eram praticamente irmãos e Gale o viu partir em direção à batalha, novamente, sem ao menos dizer uma palavra sequer. Arrependeu-se de não ter conversado uma última vez com o amigo antes de ele virar as costas. Tentou gritar algo que o ruivo pudesse ouvir, mas gemeu de dor ao puxar o ar para os pulmões.
— Não se esforce. Vou te levar para onde estamos cuidando dos feridos. Esta área já é segura — contou a garota apontando para o sul da via principal, de onde ela e o grupo tinham acabado de vir. Ela não parecia tão machucada, apesar de estar suja e com as roupas levemente rasgadas. Gale podia ver que Lenora havia lutado muito bem. A lança que repousava nas costas da menina estava quebrada na ponta e com rachaduras, mas as cicatrizes que ganhara mostravam o quão boa aquela arma tinha sido.
— Parece que você finalmente se batizou no combate, não é? — perguntou ele tentando esboçar um sorriso, mas só conseguiu sentir mais dor e embaçar sua visão. — Ai. — Não sabia o motivo de ter feito aquilo.
— Você fala como se este não tivesse sido seu primeiro combate também — respondeu ríspida e depois contraiu a boca rosada. Estava preocupada com o garoto, ela o via como um irmão mais velho que a acolheu quando chegara ao Santuário da Luz. Agora, ele mal podia andar.
— Estou bem, só preciso de um tempo e entã…
— Você não vai voltar para lá, Gale. Não vou deixar. — Ela se impôs. Lenora era bem menor que o rapaz e ele era bem pesado, mas não pensaria duas vezes em desacordá-lo para protegê-lo de si mesmo.
O jovem pensou em protestar quando os dois foram atingidos por uma rajada de vento que os lançou para trás. Ele tirou os cabelos do rosto e olhou em volta. Tudo o que via eram as casas que estavam em chamas e agora tinham sido apagadas com a lufada de ar que as atingira. Algumas delas perderam partes dos telhados e das paredes, outras foram arrancadas inteiramente do chão e levantadas até os céus.
Ao longe, em frente à estátua de Luxord e seus filhos, A Sentinela do Outono caiu.
O aprendiz mal podia se colocar em pé, mas não conseguiu mexer um só músculo quando viu guerreira de cabelos ruivos caída. Aquela era a mais habilidosa dos sentinelas, a Filha do Outono, aquela que empunhava Samhain, a Espada da Transformação. Não era possível ela ter sido vencida.
Se Kyria fora derrotada, quais chances teriam os outros? Estavam perdidos.
— Não pode ser — disse Lenora, também no chão.
— Preciso ir até lá. — Levantou-se, encontrando o máximo de forças que seu corpo poderia lhe dar. O que não era muito.
— O que, você ficou louco? Mal pode ficar em pé, o que acha que vai fazer?— Lenora se ergueu furiosa enquanto via o amigo mais velho mancar em direção onde o caos estava instaurado. Após a morte de Kyria, os protetores fizeram uma formação em círculo em volta de seu corpo e lutavam com apenas o que o luto e o ódio juntos poderiam criar percorrendo suas veias.
A menina parou à sua frente e abriu os braços, impedindo a passagem.
— Lenora, eu… — Já ia protestar furioso por sua invalidez quando as palavras sumiram de sua boca, junto de qualquer traço de saliva.
A garganta ficou instantaneamente seca ao ver o jovem de mesma idade de Lenora pegar Samhain, que tinha se perdido em meio ao combate e apontá-la de forma trêmula para Gaheris. Gale o conhecia, era o geniozinho, como o chamavam. A última vez que vira aquele garoto foi quando havia saído em uma missão em seu lugar. Os cabelos negros do menino precisavam ser aparados, o que significava que ele estava há meses fora.
Alabaster. Foi ele?
Antes que pensasse demais, pôde ouvir o grito do Sentinela ao longe:
— COVARDE! TRAIDOR! — Estalou seu chicote no chão, que irrompeu em chamas.
Gaheris golpeou uma vez e Alabaster defendeu com o escudo, que se desfez. No segundo ataque, tentou defender-se com Samhain, mas somente conseguiu desviar o golpe para seu rosto, queimando o olho esquerdo.
O menino caiu no chão ferido, sujo e aterrorizado pela imponência do Filho do Verão.
Quando viu as chamas incandescentes da lendária Litha inflamar-se em línguas de fogo para desferir o golpe que lhe tiraria a vida, tudo o que pôde fazer foi usar Samhain como escudo. Prevendo o que aconteceria, Gaheris tentou desviar a trajetória do fio de sua lâmina para não acertar a espada de Kyria. Era tarde, contudo.
O Outono se feriu.
O equilíbrio havia sido destruído.
Os céus ficaram vermelhos como o sangue fresco de um bezerro e as nuvens negras feito carvão. O chão tremeu e fez as casas ao redor balançarem, a imagem de Luxord e seus quatro filhos pareceram se mexer alguns centímetros enquanto assistiam a cena do altar à sua frente. Buracos no chão se abriram e de lá saíram águas escaldantes, mesmo não havendo nenhum fluxo de água pelo Santuário.
Uma evacuação em massa dos invasores ocorreu. Fugiram com medo. Um deles pegou Alabaster pelos braços e o arrastou pelo chão. Um grande grupo de cerca de cinquenta ou mais seres mascarados desceram a via principal, passando diretamente por Gale e Lenora, que estavam atônitos e nada podiam fazer. Eles não foram perseguidos, pois todos estavam mais preocupados com a Sentinela.
A espada de Gaheris se apagou e voltou à sua forma normal. Ele colheu as partes de Samhain quebrada, cuidadosamente, pegou o corpo da Sentinela nos braços e parou por uns longos instantes. Gale só podia enxergar a figura de costas, então nem imaginava qual poderia ser a expressão que tomava conta de sua face no momento.
Hêner se ajoelhou e abaixou a cabeça para tentar esconder o rosto choroso. Os membros da Legião batiam com a ponta de suas espadas no chão em forma tradicional de respeito, enquanto o Touro Armadurado parecia se enrijecer e perder a vida, voltando a ser uma armadura comum. O Sentinela de pele escura saiu em direção ao palácio do Senhor da Luz levando Kyria.
A visão do aprendiz ficou embaçada. Seus olhos se tornaram pesados demais para segurar, então, desmaiou.
No escuro e pequeno quarto iluminado somente pela fraca chama de uma vela usada, Gale acordou. Os pensamentos eram confusos em sua cabeça quando tentou abrir os olhos com dificuldade e se adequar à iluminação ambiente, ou à falta dela. Não se lembrava de muitas coisas, borrões e lampejos surgiam em sua mente e eram levados pela tempestade de suas memórias. Pôs-se a sentar na cama que logo percebera não ser sua. Não sentia tanta dor, mas percebeu que o punho esquerdo estava enfaixado e suas costelas também. O pé ainda latejava como se sentisse uma ferida inexistente. A cabeça doeu com o esforço. — Ei, não se esforce tanto, garoto — disse a voz de alguém adentrando o quarto com outra vela que, dessa vez, acabara de ser acesa. Um indivíduo pálido, com os longos cabelos prateados e grandes orelhas em forma de seta se aproximou, a Luz da chama destacava seus olhos de cor dourada. Era Jörfann, um elfo da Lua. Com a vitória dos primeiros sentinelas e suas espadas forjadas com a alma dos
Com um rápido tratamento de ervas misturado ao pouco que tinha das águas do Loskjs, o rio do Vale da Lua, o elfo cinzento permitiu que o jovem fosse ajudar os outros filhos da Luz com os preparativos contra o próximo ataque e reparar o que fosse preciso. Ao sair da enfermaria, o garoto se deparou com um céu escuro e nuvens cor de ferro. Ainda não era noite, mas o Sol parecia ter sumido. Ao longe do Santuário podia se enxergar uma grande tempestade com trovões enlouquecidos que repetidamente atingiam o solo. Virando-se para o sul, um tornado devastava as plantações de Masnach, terra natal de Gale. No oeste, grandes massas de fumaça subiam aos céus escuros, aparentava ser um grande incêndio. As Estações serviam para manter o equilíbrio da natureza e o controle das ondas espirituais, sendo cada uma cuidada por um filho de Luxord. O Sentinela e a espada respectiva da Estação ganhavam mais poder e influência durante tal período de tempo. Estavam no final do Outono e Samhain havia sido qu
Nos estábulos eram criados os grandes cavalos do Santuário da Luz e unicórnios, cujo líquido gerado pelo chifre era capaz de consertar rachaduras em qualquer metal. Provavelmente era o que Polliko havia usado na armadura e o tempo na fornalha fora apenas para reforçar o equipamento. Fazia frio nas ruas da cidade, o que nunca acontecera no Santuário da Luz. O feitiço de proteção também fora afetado com a quebra do equilíbrio, logo os filhos da Luz ficariam a mercê da natureza enfurecida. Alastair estava do lado de fora do lugar limpando as asas de um pégaso negro. Ele possuía olhos prateados, a pele era branca como leite, chegando até a assustar pelo modo como suas veias ficavam expostas, e seus cabelos louros não eram cortados desde sua consagração como Sentinela há uns bons meses. O homem trajava roupas simples, como um camponês. O que o denunciava era Yule, que repousava na bainha em sua cintura. — Ah, você tem algo para mim, não é mesmo? — disse o Sentinela, simpático. — S-Sim
Todos os olhares eram direcionados a Gale, que comia sentado sozinho à mesa no pavilhão de refeições.O lugar ficava ao norte da cidade e era composto por grandes mesas e bancos enfileirados onde os protetores tinham suas refeições noturnas. Os aprendizes jantavam no acampamento, o que tornava o ambiente um pouco hostil ao seu ver. Poucos ali conheciam o garoto que mal conseguira encostar na sopa enquanto vigiado pelas sombras dos céus negros que não abrigavam nenhuma Luz.Os soldados da Legião de Tarian haviam desaparecido após a batalha, o que era extremamente suspeito. Como um exército e um animal de metal gigante poderiam sumir com tanta facilidade sem deixar rastros?A realidade ainda era difícil de aceitar. A cabeça do rapaz, que já estava confusa aquele dia, agora tinha sido virada do avesso. Os sentinelas possuem uma longevidade maior, por isso, são escolhidos a cada duas gerações de protetores no Santuário da Luz. Gale não deveria chegar assistir a uma consagração de Sentinel
— O que houve com o Outono? — perguntou ele, surpreso e confuso. — Não sabemos — contou Gaheris, agora com as tranças soltas sobre os ombros, que tentava inutilmente encontrar uma posição confortável para se sentar. As chamas da clareira no salão iluminavam seu rosto cansado e deixavam visíveis os fios esbranquiçados em sua barba. — Aparentemente o filho de Luxord se reforjou sozinho. — Terminou o lofidiano. Era visivelmente o mais abalado, Gale julgou por ter sido ele quem destruíra a espada de Kyria, causando a quebra no equilíbrio. — Tentamos usar o chifre de unicórnio para reparar suas feridas, porém, não adiantou. Suas rachaduras permanecem — Acalypha falou, sentida. — Há uma forma de consertá-lo? — perguntou Gale. Os campeões do Senhor da Luz se entreolharam. — O sacerdote Osellnif contou-nos a respeito de uma profecia, que se iniciava com os versos agora gravados do gume de Samhain, mas não temos nada documentado ou conhecimento sobre os próximos dizeres — começou Alastair
Os três silenciaram-se e encararam o Sentinela do Outono, que se encolheu. — O que disse, garoto? — o lofidiano semicerrou os olhos e perguntou com uma voz soturna, amedrontadora o suficiente para fazer o jovem tremer suas pernas e sua voz. — Somente uma pessoa precisa sair do Santuário, posso atravessar as linhas inimigas escondido enquanto eles tentam atacar. Meus braços não seriam de grande ajuda na linha de frente do combate, mas, posso pelo menos tentar restaurar o equilíbrio e trazer a Luz para nós mais uma vez! — É loucura. — Determinou Gaheris. — Não estamos em posição de perder mais nenhum guerreiro, muito menos uma das quatro espadas sagradas. — Que está quebrada — complementou Alastair. Talvez tenha soado em um tom de deboche mais do que deveria. — Você não está me ajudando, pardal. — o Filho do Verão se irritou. A cara furiosa do lofidiano de tranças longas era algo que aterrorizaria até o próprio Luxord. — Talvez não tenhamos escolhas a não ser resistir aos ataques
Aprontou-se: Tirou os fios recém-cortados dos ombros, botou Samhain nas costas, dentro da bainha, e apanhou a mala, que continha um cantil, ração para alguns dias, corda, um conjunto básico de equipamentos para preparar comida e um frasco com água do rio Loskjs, que Jörfann lhe dera para emergências. Por fim, o jovem encarou o colar de Geralt. Decidiu amarrá-lo no pulso esquerdo, para que uma parte do amigo empunhasse a espada junto dele de agora em diante. O Sentinela do Outono partiu em direção ao acampamento dos aprendizes, pois precisava despedir-se de alguém. — Lenora — sussurrou ele na entrada de sua tenda. A garota dormia profundamente em sua cama. As outras duas estavam vazias, pertenciam às amigas dela que agora jaziam no antebraço de Gale. — Lenora! — Tentou mais uma vez, com medo de acordar os outros aprendizes nas tendas ao redor. A garota roncava enquanto estava abraçada a um travesseiro de palha. Era impossível acordá-la de tão longe. O jovem encarou o antebraço e
Floresta de Niwloedd, 64 dias antes da invasão ao Santuário da Luz Era quase noite quando o chão se tornou visível através das brumas da floresta. Alabaster, um aprendiz mais novo, acompanhava dois protetores em uma expedição até Dynion, sua terra natal. O jovem menino conquistara esse privilégio ao se mostrar um ótimo estrategista em batalha nos jogos de guerra, que haviam ocorrido na semana anterior dentro do acampamento. Por mais que não tenha lutado muito, os protetores responsáveis notaram sua capacidade de liderança somada à facilidade com que entendia processos e criava novas táticas, características que já vinham sendo observadas. A missão a princípio deveria ser designada a Gale Wintamer, um aprendiz próximo à sua graduação, que recusou a oportunidade por este mesmo motivo. Alabaster Starrock então se tornou a escolha mais sensata, pois, era jovem, habilidoso e nativo da localidade hostil para onde iam. Perfeito. Após ser preparado, o garoto poderia desempenhar um melhor