Gale ficou feliz de poder assistir Kyria lutar de tão perto. Ela era magnífica em combate, talvez a melhor dos quatro. A Sentinela logo o acolheu ao entrar na luta, mesmo não o conhecendo. O jovem sabia que os sentinelas possuíam tarefas mais importantes do que saber o nome dos aprendizes, mas ela era diferente, importava-se com cada soldado sob seu comando e sorriu quando apoiou suas costas nas do garoto.
— Quer que eu te cubra, novato? — perguntou ela em um tom leve dada a gravidade da situação. Com a respiração pesada, a Filha do Outono usava uma armadura leve, de malha de dragão, muito rara em tons escuros como madeira de carvalho guardiano e cabelos arrepiados e cuidadosamente raspados do lado direito da cabeça da cor das folhas secas que caem das árvores antes da chegada do Inverno. Seus grandes olhos envoltos de uma pintura preta pulsavam em tons dissonantes de laranja e transmitiam inspiração ao mais infeliz e desacreditado.
— S-Seria uma honra, senhora — disse o rapaz com a voz trêmula. Estava nervoso demais para proteger a retaguarda da Sentinela do Outono, uma dos quatro líderes do Santuário. — Darei minha vida se for preciso!
— Não será necessário, jovem Wintamer, apenas lute e fique vivo — respondeu com uma risada simpática, a Sentinela aparentava ter poucos anos de diferença do rapaz, tendo em vista de que o envelhecimento dos portadores das espadas de Luxord era diferente.
Como ela sabe meu nome?
Antes de abrir a boca para perguntar, o primeiro inimigo atacou. Gale bloqueou e rebateu o golpe, girando junto com Kyria. Como fora ensinado durante seus anos de luta, nunca se pode permanecer parado. O mais importante na dança do combate é estar em movimento, então foi o que fez. Eles atacavam e se movimentavam, protegendo as costas um do outro. O garoto podia ouvir risadas vindas dela.
— O que é tão engraçado!? — indagou com os cabelos colados na face pelo suor e logo em seguida se arrependeu-se pela insolência que estava cometendo.
— Nunca perca a calma em um combate, rapaz. É assim que te derrubam! Você tem que se sentir vivo e confiante em cada golpe! — respondeu a Sentinela com os cabelos bagunçados enquanto girava sua espada feita com o bronze das Montanhas Tempestuosas, Samhain.
Então surgiu um grupo de quatro novos mascarados e um brutamonte com um machado de guerra imenso. O elmo com chifre permitia que Gale visse o rosto em fúria do homem, ou o que ele fosse.
Seus olhos brilhavam como se estivessem em chamas e a carne em sua face parecia se deteriorar, era como se ele já tivesse morrido. A mandíbula era estranha, parecia pertencente mais a um animal do que uma pessoa e o nariz achatado como um focinho contribuía com essa ideia. O braço que segurava o machado era deformado, visivelmente maior e mais forte do que o outro. O aprendiz com certeza não gostaria de ser acertado por um soco daquela coisa.
— Consegue cuidar dele, novato? Eu lido com os outros — perguntou honestamente Kyria. Era uma oferta muito boa, um oponente em vez de vários. Entretanto, Gale não concordava com essa ideia após ver o tamanho do corpo e da fúria do gigante de elmo.
— C-Consigo — gaguejou. Não queria decepcionar uma Sentinela.
— Não se esqueça, lutamos por Luxord! — a Sentinela disse com um sorriso e levantou Samhain, a espada, aos céus. — Irmãos! Hoje a nossa missão é pela sobrevivência, então me escutem. Acima de nós o senhor que descarrega sua Luz sobre a terra nos assiste. Rompam as barreiras, purifiquem as trevas e brilhem como um farol para teu irmão ao lado! Não se esqueçam de seus juramentos, pois hoje seremos eternos! — Então partiu em direção aos invasores.
Não podia entender de onde vinha tanta empolgação que transbordava da Filha do Outono, aquilo era um desastre, o seu lar estava caindo nas mãos de sujeitos misteriosos e hostis. Por outro lado, as palavras e o ânimo dela eram impossíveis de não serem absorvidos. Gale sentia a energia voltando para seu corpo cansado, o escudo já não pesava tanto, podia sentir novamente os dedos e apertar o cabo da espada mais uma vez. Logo avançou contra o monstruoso homem de machado.
O primeiro golpe arremessou Gale a três metros de distância.
Teria sido destroçado se não fosse o escudo, que agora só lhe restava metade no braço e a bossa de metal. O rapaz tirou os cabelos do rosto e armou a defesa com a proteção à sua frente e a espada apontada para o alvo. O gigante veio bufando como um animal e atacou. Ele rolou para o lado e acertou seu calcanhar, o que deixou o invasor de joelhos. No momento em que foi finalizá-lo, o homem se abaixou, o apanhou pelo peitoral já completamente danificado e o atirou longe.
O bárbaro pegou o machado de guerra do chão e o rapaz percebeu que sua proteção do torso havia ficado com ele. Não possuía mais nenhuma defesa no corpo e metade de um escudo. Então correu para acertar o guerreiro do elmo de chifres primeiro e foi recebido com o forte giro do machado em seu flanco esquerdo. Tudo o que podia fazer era saltar para trás, o que conseguiu realizar com dificuldade. Havia cortado o braço, mas não percebeu. Aproveitando do giro, o bárbaro encaixou outro golpe de cima para baixo que foi amortecido pela parte do escudo que sobrara, mas fez Gale cair de joelhos. Agora só lhe restava a bossa de metal. O restante do escudo foi jogado para longe após ser removido da ponta da arma do seu oponente.
O vento mudou de direção.
Gale ouviu o grito poderoso de um exército e as pisadas fortes no chão do centro do Santuário, então, o gigante foi arremessado para longe por um monstro de metal. Era o lendário Touro Armadurado, uma criatura de ferro tariano de 3 metros de altura construída a partir da forma de um antigo hud que era uma mistura de touro com humano. Sua armadura brilhava tanto, que não se podia ter tanta certeza sobre seu material naturalmente escuro. Ao olhar de perto, parecia até mesmo que as placas de ferro vibravam em conjunto. O jovem aprendiz só tinha ouvido falar da armadura viva em histórias contadas pelos protetores que tomavam conta de sua classe de aprendizes e, pelo que se lembrava, o Touro era símbolo e principal arma da Legião dos Cavaleiros de Ferro: A tropa de guerreiros de elite do reino de Tarian.
O que ele estaria fazendo ali?
Ao ouvir as pisadas ficarem mais altas, o garoto se virou e viu a Legião se juntando ao combate com suas armaduras de ferro tariano, que diferente do Touro, possuía seu tom escuro natural e que eram misturadas com aço lofidiano, uma recompensa do Santuário em forma de agradecimento ao reino aliado. Gale sabia disso, pois tinha acompanhado dois protetores em uma missão diplomática até Tarian no Verão passado.
Por causa de sua viagem também sabia que era impossível eles terem chegado tão rápido até lá.
— …le, Gale! GALE! — berrou Kyria. O guerreiro com a visão comprometida pelos cabelos bagunçados a viu lutando com dois soldados malignos quando deixou o mundo de seus pensamentos. — Vá ajudar Gaheris, nos viramos por aqui! — A Sentinela agora possuía o reforço necessário para lutar e sabia que as coisas estavam mais difíceis ao sul, então mandou mais cinco soldados, que acabavam de chegar, irem com Gale até o Filho do Verão. O rapaz relutou, mas quis crer que ela estaria mais bem acompanhada pela criatura que já despedaçou fileiras inteiras de exércitos que com ele.
Ao ficar livre de combate por uns instantes, percebeu que era um absoluto imbecil. Era impossível ganhar daquele bárbaro com brutalidade, ele tinha o dobro de força e o dobro de peso do garoto, que precisava ter abusado de sua agilidade e esperteza. O calor da batalha estava começando a afetar suas decisões, não estava pensando direito. O medo e o nervosismo o faziam agir primeiro, e isso ia acabar o matando.
Sem mais idiotices a partir de agora.
Gale desceu correndo portando somente Dente de Dragão em suas mãos, que já não mais brilhava. A espada estava amassada onde o guerreiro gostava de golpear, quase sem fio e suja de terra e sangue. Ele girou a lâmina acima da cabeça e aparou um corte da gigante espada à sua frente e depois cortou o dono da arma com um golpe espaçado, como gostava de lutar. Então finalmente perguntou aos soldados que o acompanhavam?
— De onde vocês vieram?
— De Tarian, senhor!
— Não sou senhor, e é impossível vocês terem vindo de lá!
O legionário com qual estava falando foi acertado por uma flecha no peito.
— Protejam-se! — gritou outro. Eles estavam na frente de três arqueiros empoleirados nas casas estrada acima. Gale e os outros legionários correram para se proteger, um deles foi acertado. Encontraram proteção atrás de carroças derrubadas ali perto. Era frustrante, não havia como sair dali sem cobertura, algo que eles definitivamente não tinham no momento.
O aprendiz conseguiu ver quando as lanças acertaram dois dos arqueiros. O outro se desviou, mas caiu de cima da casa. O socorro havia chegado com força. Tratava-se dos que lutavam perto do acampamento dos aprendizes, que dominaram o terreno e começaram a avançar. Liderando o avanço vinha Hêner, a General do Exército da Luz, patente mais alta do Santuário antes dos sentinelas. Tinha cabelos loiros e uma grande armadura que Gale arriscava ser de placa de dragão, mas não tinha certeza e não perguntaria. A alta mulher trazia uma espada curta e um gigante escudo branco que mais parecia uma porta, mas era esplêndido aos olhos do jovem. Ao seu lado, vinha Gaheris empunhando Litha, com sua espessa barba e tranças amarradas para trás. O guerreiro era intimidador, trajava uma armadura vermelha que mesmo de longe dava para saber que era feita de aço lofidiano pelo brilho que emanava. Gaheris era de Lofeed, reino especializado na arte da guerra e onde os habitantes possuíam a pele mais escura, em
No escuro e pequeno quarto iluminado somente pela fraca chama de uma vela usada, Gale acordou. Os pensamentos eram confusos em sua cabeça quando tentou abrir os olhos com dificuldade e se adequar à iluminação ambiente, ou à falta dela. Não se lembrava de muitas coisas, borrões e lampejos surgiam em sua mente e eram levados pela tempestade de suas memórias. Pôs-se a sentar na cama que logo percebera não ser sua. Não sentia tanta dor, mas percebeu que o punho esquerdo estava enfaixado e suas costelas também. O pé ainda latejava como se sentisse uma ferida inexistente. A cabeça doeu com o esforço. — Ei, não se esforce tanto, garoto — disse a voz de alguém adentrando o quarto com outra vela que, dessa vez, acabara de ser acesa. Um indivíduo pálido, com os longos cabelos prateados e grandes orelhas em forma de seta se aproximou, a Luz da chama destacava seus olhos de cor dourada. Era Jörfann, um elfo da Lua. Com a vitória dos primeiros sentinelas e suas espadas forjadas com a alma dos
Com um rápido tratamento de ervas misturado ao pouco que tinha das águas do Loskjs, o rio do Vale da Lua, o elfo cinzento permitiu que o jovem fosse ajudar os outros filhos da Luz com os preparativos contra o próximo ataque e reparar o que fosse preciso. Ao sair da enfermaria, o garoto se deparou com um céu escuro e nuvens cor de ferro. Ainda não era noite, mas o Sol parecia ter sumido. Ao longe do Santuário podia se enxergar uma grande tempestade com trovões enlouquecidos que repetidamente atingiam o solo. Virando-se para o sul, um tornado devastava as plantações de Masnach, terra natal de Gale. No oeste, grandes massas de fumaça subiam aos céus escuros, aparentava ser um grande incêndio. As Estações serviam para manter o equilíbrio da natureza e o controle das ondas espirituais, sendo cada uma cuidada por um filho de Luxord. O Sentinela e a espada respectiva da Estação ganhavam mais poder e influência durante tal período de tempo. Estavam no final do Outono e Samhain havia sido qu
Nos estábulos eram criados os grandes cavalos do Santuário da Luz e unicórnios, cujo líquido gerado pelo chifre era capaz de consertar rachaduras em qualquer metal. Provavelmente era o que Polliko havia usado na armadura e o tempo na fornalha fora apenas para reforçar o equipamento. Fazia frio nas ruas da cidade, o que nunca acontecera no Santuário da Luz. O feitiço de proteção também fora afetado com a quebra do equilíbrio, logo os filhos da Luz ficariam a mercê da natureza enfurecida. Alastair estava do lado de fora do lugar limpando as asas de um pégaso negro. Ele possuía olhos prateados, a pele era branca como leite, chegando até a assustar pelo modo como suas veias ficavam expostas, e seus cabelos louros não eram cortados desde sua consagração como Sentinela há uns bons meses. O homem trajava roupas simples, como um camponês. O que o denunciava era Yule, que repousava na bainha em sua cintura. — Ah, você tem algo para mim, não é mesmo? — disse o Sentinela, simpático. — S-Sim
Todos os olhares eram direcionados a Gale, que comia sentado sozinho à mesa no pavilhão de refeições.O lugar ficava ao norte da cidade e era composto por grandes mesas e bancos enfileirados onde os protetores tinham suas refeições noturnas. Os aprendizes jantavam no acampamento, o que tornava o ambiente um pouco hostil ao seu ver. Poucos ali conheciam o garoto que mal conseguira encostar na sopa enquanto vigiado pelas sombras dos céus negros que não abrigavam nenhuma Luz.Os soldados da Legião de Tarian haviam desaparecido após a batalha, o que era extremamente suspeito. Como um exército e um animal de metal gigante poderiam sumir com tanta facilidade sem deixar rastros?A realidade ainda era difícil de aceitar. A cabeça do rapaz, que já estava confusa aquele dia, agora tinha sido virada do avesso. Os sentinelas possuem uma longevidade maior, por isso, são escolhidos a cada duas gerações de protetores no Santuário da Luz. Gale não deveria chegar assistir a uma consagração de Sentinel
— O que houve com o Outono? — perguntou ele, surpreso e confuso. — Não sabemos — contou Gaheris, agora com as tranças soltas sobre os ombros, que tentava inutilmente encontrar uma posição confortável para se sentar. As chamas da clareira no salão iluminavam seu rosto cansado e deixavam visíveis os fios esbranquiçados em sua barba. — Aparentemente o filho de Luxord se reforjou sozinho. — Terminou o lofidiano. Era visivelmente o mais abalado, Gale julgou por ter sido ele quem destruíra a espada de Kyria, causando a quebra no equilíbrio. — Tentamos usar o chifre de unicórnio para reparar suas feridas, porém, não adiantou. Suas rachaduras permanecem — Acalypha falou, sentida. — Há uma forma de consertá-lo? — perguntou Gale. Os campeões do Senhor da Luz se entreolharam. — O sacerdote Osellnif contou-nos a respeito de uma profecia, que se iniciava com os versos agora gravados do gume de Samhain, mas não temos nada documentado ou conhecimento sobre os próximos dizeres — começou Alastair
Os três silenciaram-se e encararam o Sentinela do Outono, que se encolheu. — O que disse, garoto? — o lofidiano semicerrou os olhos e perguntou com uma voz soturna, amedrontadora o suficiente para fazer o jovem tremer suas pernas e sua voz. — Somente uma pessoa precisa sair do Santuário, posso atravessar as linhas inimigas escondido enquanto eles tentam atacar. Meus braços não seriam de grande ajuda na linha de frente do combate, mas, posso pelo menos tentar restaurar o equilíbrio e trazer a Luz para nós mais uma vez! — É loucura. — Determinou Gaheris. — Não estamos em posição de perder mais nenhum guerreiro, muito menos uma das quatro espadas sagradas. — Que está quebrada — complementou Alastair. Talvez tenha soado em um tom de deboche mais do que deveria. — Você não está me ajudando, pardal. — o Filho do Verão se irritou. A cara furiosa do lofidiano de tranças longas era algo que aterrorizaria até o próprio Luxord. — Talvez não tenhamos escolhas a não ser resistir aos ataques
Aprontou-se: Tirou os fios recém-cortados dos ombros, botou Samhain nas costas, dentro da bainha, e apanhou a mala, que continha um cantil, ração para alguns dias, corda, um conjunto básico de equipamentos para preparar comida e um frasco com água do rio Loskjs, que Jörfann lhe dera para emergências. Por fim, o jovem encarou o colar de Geralt. Decidiu amarrá-lo no pulso esquerdo, para que uma parte do amigo empunhasse a espada junto dele de agora em diante. O Sentinela do Outono partiu em direção ao acampamento dos aprendizes, pois precisava despedir-se de alguém. — Lenora — sussurrou ele na entrada de sua tenda. A garota dormia profundamente em sua cama. As outras duas estavam vazias, pertenciam às amigas dela que agora jaziam no antebraço de Gale. — Lenora! — Tentou mais uma vez, com medo de acordar os outros aprendizes nas tendas ao redor. A garota roncava enquanto estava abraçada a um travesseiro de palha. Era impossível acordá-la de tão longe. O jovem encarou o antebraço e