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Um ano e um mês depois

O reflexo no espelho refletia uma pessoa que não era a minha verdadeira identidade. Toda a minha vida me chamei Vicenza Leone Jung, mas desde que tive que assumir o sobrenome de Campanazzi, ele se tornou um carimbo a ferro quente na minha pele, literalmente.

Eu podia ver a marquinha que ficava em meu pulso e a esfreguei com força, desejando que ela pudesse sair, mas não importava quanta força eu usasse, estava para sempre marcado em mim. Tornei-me posse dos Campanazzi e isso queria dizer que eu era somente uma moeda de troca em acordos políticos e financeiros entre as famílias da sociedade.

Diante do espelho eu olhava para essa garota que teve os sonhos quebrados. Seu vestido era um luxuoso Elie Saab com um tom azul celeste; único, uma saia comprida, transparente e esvoaçante, e um corpete de renda feito a mão e acinturado. Corri a mão pelos tecidos, eram de alta costura e luxo, suave ao toque. Eu estava linda… mas odiando tudo aquilo.

— Seu noivo ficará encantado por você. — A voz de minha mãe soou atrás de mim. Quando me virei, encarei Antonella.

Éramos fisicamente diferentes. Enquanto minha mãe é uma loira de olhos verdes e corpo curvilíneo, eu era simplesmente uma mestiça. Tudo em mim remetia ao meu pai que nunca conheci, como se parte de minha identidade nem sequer existisse e era essa a que estava mais a mostra: meus cabelos lisos e grossos incapazes de segurar um penteado, meus olhos de dobra epicântica, pálpebras duplas, pupilas bem escuras e o rosto alongado. Eu era pequena, apenas com salto eu conseguia ficar com 1,60m de altura. Mas não era a nossa diferença de imagem que me assombrava e sim, o objeto que minha mãe segurava na mão.

Era um bracelete de ouro escovado, com um pingente com o símbolo do brasão dos Campanazzi — a árvore vermelha feita de rubis — mas para mim, aquilo era como uma algema me prendendo a um sobrenome. E, futuramente, outro sobrenome estaria nele. Um sobrenome que não me agradava em nada, como o dono dele.

Não pertencer a si mesmo pode tirar a sanidade de alguém. Essa ideia era apavorante em tantas formas que eu não conseguiria colocar em palavras! Eu não quero ser uma esposa-troféu! Que droga! 

Eu quero ser amada pela minha essência, me apaixonar perdidamente por alguém, me casar por amor! Essas são as coisas às quais eu fui ensinada desde pequena.

Mas não havia alternativa. 

Fugir não era uma opção viável. 

Não cumprir com as exigências acarretaria os piores castigos, ou até mesmo a morte... Eu só tinha uma saída: abaixar a cabeça e ser exemplar. Eu perdi minha liberdade.

— Duvido quanto a isso, mamãe, olhe minha aparência, há inúmeras garotas muito mais bonitas do que eu na escola. — Estendi o braço e ela colocou o bracelete, ele cobriu perfeitamente a marquinha do brasão.

Ela também tinha um bracelete desses e uma marquinha no seu pulso, mas em seu caso, o casamento foi por amor.

Eu me espelhava muito em como o casamento dela com Irineo, o meu padrasto, era inspirador. Eles enfrentaram muitos momentos para estarem juntos. Irineo Campanazzi é CEO da Eclat Fragranze Italiane, uma empresa de fragrâncias com design arrojado, que combina a beleza exterior com um conteúdo de ultra luxo, cheio de ingredientes raros e muito disputados. Bem, foi um desses ingredientes que acabou juntando os dois e transformou minha mãe, que era uma simples farmacêutica rotuladora do controle de qualidade dobrando horas para pagar as contas, em uma dondoca vestindo roupas de grife dos pés à cabeça. 

Não me leve a mal, Irineo Caballero era o melhor padrasto que uma menina mestiça de 16 anos, que cresceu pobre e estudando em colégios públicos, poderia sonhar em ter. Ele era um homem de classe, com um sorriso acolhedor e uma carteira recheada. Tinha 44 anos, olhos verdes intensos e cabelos loiros e encaracolados, sempre impecavelmente arrumados. Lembro que, na primeira vez que o vi, tive duas impressões fortes ao mesmo tempo: uma muito boa e outra muito ruim. Irineo era um homem bonito, alto, com músculos grandes e um porte elegante. Sempre vestia ternos caros e estava disponível com um sorriso acolhedor. No entanto, ele também podia ser severo e punitivo quando ficava bravo, especialmente assustador quando segurava uma arma.

Pensando bem, quando eu vivia em um pequeno apartamento em um prédio sujo, desejava que alguma coisa louca acontecesse e a gente ganhasse na loteria o sonho dourado. Agora que eu estava vivendo-o, não queria reclamar do preço que ele me cobrava.

Mas era um preço alto. Um preço que esfaqueava o meu coração com a mais pura crueldade.

— Pois para mim, não existe uma mulher mais bela. — Antonella passou as mãos delicadas por meus ombros. — E francamente, seu noivo me parece uma boa pessoa, um homem civilizado.

Quem era o meu noivo? Eu não sabia, não conhecia. Meu coração se enchia de medo ao pensar sobre isso. Só havia uma pessoa na qual eu me interessava, mas ele era inalcançável.

— Não acho que existam pessoas civilizadas nessa sociedade. — Eu queria dizer “no crime”; mas preferi omitir qualquer informação que pudesse gerar perguntas.

— Irineo é civilizado.

— Ele é muito diferente, mãe.

— Não, não é. Os amigos de Irineo também são boas pessoas, o Sr. Mazzarello apoiou nosso casamento e inclusive protegeu você. — Mamãe se afastou mais uma vez indo até a cômoda de onde tirou os meus sapatos da caixa. Eu suspirei e me sentei no banco em frente à cama do hotel, para calçá-los.

Ela não precisava me arrumar hoje, mas fez questão. Poderia ter qualquer outra das centenas de funcionárias que cuidavam da mansão, mas o fato de que ela ainda agia como a minha mãe era reconfortante.

— Fique sabendo que se não fosse pela opinião de Venanzio e de Irineo sobre o seu futuro noivo, eu nunca teria concordado com essa loucura. Você ainda é uma menina, tem apenas dezesseis anos! 

Estremeci. Eu não queria pensar no meu futuro noivo agora, embora faltasse apenas meia hora para nos encararmos diante dos advogados e assinar um contrato.

— Mamãe e se eu não for boa o suficiente? E se ele não gostar de mim? Ainda estou aprendendo, não sou tão versada e nem bonita, o que esse cara pensa que está fazendo para pagar o meu dote? — Soltei de repente as minhas dúvidas. — Por acaso ele está sendo obrigado, também?

Antonella se virou segurando meus sapatos de tecido prateado e com brilhantes na fivela. Um sorriso simples se formou em seu rosto, paciente, como uma professora. Seus olhos claros tinham um certo brilho no olhar que misturava tristeza e admiração.

— Quando foi que você se tornou tão madura? — Perguntou se aproximando e se abaixou, empurrando a saia marrom de seu vestido chique para poder ajoelhar e me calçar. — As regras da sociedade são complexas, Vicenza, mas para minha admiração apesar de que a Sra. Delvecchio é a matriarca da família, ela permitiu que seu neto escolhesse entre as moças de sua idade e ele decidiu-se por você. Acredito que algo em seu perfil tenha chamado a atenção dele.

Meu corpo gelou.

— Espera, você disse Delvecchio? — Murmurei quase sem forças com a revelação.

— Sim. — Mamãe se levantou. — Estava guardando segredo, pois não queria que você se apegasse a ideia até que o acordo estivesse firmado, mas vocês irão assinar o contrato agora, então nada mais justo de você saber com quem irá se casar. É o Sr. Duncan Delvecchio; dono da rede de cassinos Black Velvet.

Pensei que meu coração pudesse parar de bater e eu morreria imediatamente com um infarto fulminante, dessa forma eu não teria que passar pelo trauma de me casar com o homem mais inapropriado da alta sociedade. Essa era uma coincidência desagradável, de tantos nomes, Duncan Delvecchio era o único que eu realmente temia.

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