A minha vida mudou para sempre com a visão que se desdobrava diante de mim.
Minhas mãos apertavam o tecido amarelo do meu vestido de festa com tanta força que os nós dos meus dedos ficaram brancos. Eu não deveria estar ali, naquele corredor. Como fui me perder nesta mansão onde acontecia o casamento da minha mãe?
Ainda ouvia a música da festa distante, atrás de mim, mas aos poucos fui ficando como surda, ouvindo apenas as batidas apavoradas do meu coração. Meus pulsos ainda carregavam as marcas das consequências daquela união inesperada entre minha mãe e meu padrasto; eu havia sido atacada e amarrada. Pediram até um resgate.
Parece que essa era a nova realidade com a qual eu tinha de lidar: enquanto minha mãe encontrava o homem de sua vida, eu enfrentava dia após dia uma queda livre, sendo tragada para o meio do enigma de uma sociedade de elite secreta.
Não culpo minha mãe pelas coisas horríveis que aconteceram comigo, mas os traumas que carrego certamente seriam menores se ela nunca tivesse se casado com Irineo Campanazzi. Haviam hematomas das cordas em meus pulsos e há pelo menos dois meses eu não conseguia sair de casa, achando que estavam me observando. Estava passando por diversos tratamentos psicológicos, com os mais caros especialistas, afinal Irineo nunca me negaria nada, ele era um bom padrasto, mas não havia um médico capaz de curar minha mente quebrada.
Com apenas quinze anos, já não era a mesma garota alegre de antes, havia uma ruptura intensa dentro de mim. Mesmo assim, não estava preparada para a cena que se desenrolava diante de meus olhos.
Aquilo era brutal!
Pela fresta da porta maciça de madeira eu via apenas partes de um todo. Sequências que não faziam sentido absoluto, mas eu podia ver de maneira gráfica dois homens brigando. Ou mais precisamente, um deles estava levando a pior de maneira intensa. Mãos fechadas, músculos fortes e pesados, sons de ossos se quebrando, uma risada maléfica, os pedidos de misericórdia que foram se esvaindo até que o outro perdesse a consciência. Meu corpo inteiro reagiu intensamente ao homem à minha frente; sua presença masculina era quase sobrenatural enquanto ele castigava outro homem. Na Máfia, o poder e a força são fundamentais, e eu me peguei imaginando o que mais aquelas mãos seriam capazes de fazer.
O peso do colar estava me enforcando, deixando a respiração presa na garganta. Minhas pupilas estavam dilatadas, o suor se precipitava na minha testa e meu corpo inteiro tremia de pavor. Queria que minhas pernas funcionassem para eu sair correndo dali? Queria, mas meus pés não me obedeceram. Queria fechar os olhos e não testemunhar aquela desgraça? É claro, mas meus olhos não fizeram isso por mim.
Eu me senti caindo à beira do abismo, foi como perder o chão. Observava o sangue escorrendo pelo pé da mesa e formando uma poça no chão, com alguns dentes caídos. Meu coração estava tão acelerado que eu pensei que ia desmaiar, mas me mantive firme, observando. O que tanto me fascinava? Ver como aquele homem de cabelos escuros tinha um sorriso curvando seus lábios enquanto espancava um inimigo? Ou como ele era habilidoso? Talvez fosse o fato de que ele tinha tanto poder que não se importava de atacar alguém no meio de uma festa de casamento da alta sociedade.
De repente, a porta se abriu e eu encarei o colarinho branco, agora manchado de sangue. As gotinhas espirradas subiam para o rosto especialmente simétrico, manchando o queixo. Subi para encarar seus lábios quase grossos. Havia uma curva naturalmente caída nos cantos de seus lábios que concedia àquele belo homem um ar de descontentamento, mas seus olhos… Estes não escondiam a emoção, o divertimento e a crueldade que pulsava em suas veias.
Não me movi, não tive tempo. Os olhos bem escuros do italiano caíram em mim. Eu não sabia quem ele era, não fazia ideia do seu nome, mas meus olhos ficaram presos sobre ele, percebendo cada terrível detalhe de seu rosto. Uma beleza proporcional a sua crueldade.
Dizem que os piores venenos vêm nos mais belos frascos.
A única coisa que poderia entregar a sua identidade era o broche em sua lapela, em forma de uma flor roxa, combinando com o anel grande de ouro que ele usava no dedo indicador. Ele tinha dedos longos, como os de um pianista, mas eu sabia que aquelas mãos tinham experiência com ações mais brutais do que eu poderia imaginar.
O italiano não pareceu surpreso ao me ver, mas parado ali na minha frente, me observou esquadrinhando meu rosto com um olhar afiado e intenso, que parecia uma âncora tão pesada que eu me sentia afundar. Não pareceu sequer intimidado por eu ter sido testemunha de seu crime, pelo contrário, parecia que ele tinha gostado.
Atrás dele havia outros homens, grandes, musculosos, de terno, certamente eram seus seguranças e amigos.
— Ih, chefe… ela viu tudo. — Um deles falou estalando os dedos das mãos.
Eu fiquei com tanto medo de ser a próxima, que apenas nem me mexi. Com certeza eles queriam apagar as testemunhas oculares de seus crimes… e quem eu era, senão somente a filha da noiva?! Eu não pertencia à Ultima Societá, era uma intrusa entre eles.
— Duncan você deixou ela apavorada. — Ouvi um riso atrás dele.
E eu realmente estava apavorada. Meu corpo estava completamente paralisado. Minha boca semiaberta segurando um grito mudo. Meus olhos não saiam daquele homem que estava à minha frente, especialmente assustada com a mancha de sangue em seu terno caro.
— Quer chiclete, mia principessa? — Ignorando seus seguranças e o amigo, o homem da flor roxa perguntou-me com sua voz bem grossa, um timbre firme que ressoava em cada célula do meu corpo, fazendo os pelinhos do braço arrepiarem.
E desde quando eu sou dele? Um soluço se prendeu na minha garganta, formando um nó que parecia impossível de desfazer. De alguma forma, consegui engolir o pavor em seco e, como não podia dar a ele indícios de medo, firmei o pescoço, fingindo inocência:
— É sabor de quê?
Gradualmente, um sorriso gengival e espontâneo se formou no rosto do homem alto à minha frente, revelando incisivos perfeitamente alinhados e brancos. Aquele sorriso, tão genuíno, contrastava com a aura perigosa que emanava dele, alguém capaz de estourar a cara de outro homem.
Ele retirou uma cartela de chicletes cor-de-rosa e retangulares do paletó cinza escuro Ermenegildo Zegna. Com um "ploc" que ecoou no corredor mal iluminado, quebrou um deles e o levou à boca. Enquanto seus dentes mastigavam o doce, deu um passo em minha direção.
— Tutti-frutti. — Respondeu suave.
Seu hálito era agradável. Permaneci imóvel, envolta pelo aroma doce de açúcar que parecia preencher o ar ao redor.
— Sr. Duncan, o que fazemos? — O homem ao seu lado perguntou, mas o homem da flor roxa não pareceu prestar atenção em mais ninguém senão a mim.
Ele segurou meu braço com firmeza, um toque quente e seguro que enviou um arrepio pela minha espinha. Lutei contra o instinto de me encolher ou gritar. Duncan ergueu minha mão, abrindo minha palma com cuidado, onde colocou a cartela de chicletes.
— Fica de presente, pequena. Uma pena não poder conversarmos mais.
Enquanto ele segurava minha mão, senti meu coração disparar ainda mais. Sua pele tinha um bronzeado único, era áspera contra a minha, mas seu toque tinha uma delicadeza surpreendente.
Duncan segurou meu olhar por mais um segundo, diante de seu sorriso quase desarmante, minhas pernas começaram a perder força. A intensidade dos seus olhos parecia queimar através de mim e percebi, com um misto de medo e fascinação, que aquele homem perigoso possuía uma estranha capacidade de me fazer sentir viva de uma maneira que eu nunca havia experimentado antes.
— Vicenza? — Uma voz conhecida me alcançou e as mãos de um secretário de Irineo, o meu padrasto, se fecharam gentilmente ao redor dos meus ombros.
Ele me puxou suavemente para trás, afastando-me de Duncan e como se quisesse me proteger, o que apenas aumentou o alerta que já soava dentro de mim.
Aquele homem da flor roxa… era um homem perigoso e brutal.
— O que está fazendo aqui? Sr. Delvecchio? — Perguntou, sua voz soando um pouco hesitante. — Precisa de ajuda para encontrar o caminho de volta à festa?
Duncan Delvecchio. Seu nome não significava nada para mim, mas o som de seu riso nunca seria esquecido. Os olhos de Duncan permaneceram intensos sobre mim, sem dar uma resposta imediata para o secretário, como se eu fosse sua única preocupação.
— Quem é você para me perguntar isso? — Retrucou com uma hostilidade sensível. — Cuide de seus assuntos e me deixe cuidar dos meus.
O Sr. Delvecchio enfiou as mãos nos bolsos e se afastou, voltando para o salão. Enquanto ele se afastava, olhei suas costas medindo mentalmente a distância de seus ombros ou como os fios escuros de seus cabelos em camadas cheias se balançavam graciosos. Nem parecia que ele havia acabado de espancar alguém. Meu coração estava batendo a milhão.
Os homens que estavam com Duncan saíram da sala e o segurança me afastou rapidamente, abalado com o que estava acontecendo.
— Não olhe! — Ele me virou, tentando ocultar a visão da vítima em cima da mesa com a mão sobre meus olhos. Mas eu já tinha visto tudo.
Eu ainda me sentia atordoada pela presença mordaz e afável de Duncan. O gosto do chiclete penetrava minha língua. Esperava encontrá-lo novamente, sem saber que aquele foi somente o primeiro de muitos encontros que mudariam a minha vida de uma forma para a qual eu jamais estaria preparada.
Um ano e um mês depoisO reflexo no espelho refletia uma pessoa que não era a minha verdadeira identidade. Toda a minha vida me chamei Vicenza Leone Jung, mas desde que tive que assumir o sobrenome de Campanazzi, ele se tornou um carimbo a ferro quente na minha pele, literalmente.Eu podia ver a marquinha que ficava em meu pulso e a esfreguei com força, desejando que ela pudesse sair, mas não importava quanta força eu usasse, estava para sempre marcado em mim. Tornei-me posse dos Campanazzi e isso queria dizer que eu era somente uma moeda de troca em acordos políticos e financeiros entre as famílias da sociedade.Diante do espelho eu olhava para essa garota que teve os sonhos quebrados. Seu vestido era um luxuoso Elie Saab com um tom azul celeste; único, uma saia comprida, transparente e esvoaçante, e um corpete de renda feito a mão e acinturado. Corri a mão pelos tecidos, eram de alta costura e luxo, suave ao toque. Eu estava linda… mas odiando tudo aquilo.— Seu noivo ficará encanta
A festa de noivado havia sido preparada no salão do hotel, que era um local muito luxuoso, como tudo na sociedade. Conforme se aproximava da hora de assinar o contrato, eu me sentia nervosa e meu estômago se revirava.Preparar a recepção de noivado é uma obrigação dos pais da noiva, então eu participei de todo o processo, desde a escolha do vestido azul celeste às flores cor-de-rosa que decoravam o salão. O hotel foi uma sugestão de Irineo, por ser um local de fácil controle de ambiente e porque, dessa forma, ele não levaria uma família da sociedade para o centro de sua casa; o que poderia ser perigoso. Embora eu tivesse escolhido cada detalhe, confesso que muitas coisas escolhi por sugestão de minhas amigas e a sabedoria do meu padrasto e governanta; ambos muito familiarizados com as regras da sociedade, caso contrário, eu teria imposto que uma das coisas que não poderia faltar no meu noivado era um colete à prova de balas.A ideia de que Duncan Delvecchio era o meu noivo me apavora
Nos afastamos e seguimos para o elevador. Minha mãe que nos esperava por ali limpou uma lágrima e meu padrasto logo estendeu um lenço para ela.— Mamãe, não chore, ou eu irei borrar a maquiagem. — Pedi com a voz trêmula.Ela me deu um abraço e meu padrasto me abraçou também. Esforcei-me para não chorar. Um casamento devia ser um processo feliz, mas eu estava tremendo por inteiro, assustada.— Eu sinto que falhei em proteger você, minha filha. — Ela disse aos soluços, apertando os braços com força ao meu redor.— Ninguém falhou em proteger ninguém. — Meu padrasto disse. — Estarei sempre aqui para proteger vocês duas, custe o que custar.Sei que Irineo está dando o seu melhor e que apesar de não poder impedir que eu me case com alguém dentro da Máfia; ele está lutando bravamente naquilo que acredita. Por mais que eu tenha medo do meu noivo, eu também sei que meu padrasto não me abandonaria à má sorte. Deve haver um motivo para Duncan Delvecchio ter me escolhido como sua noiva e para que
Capítulo 005— Há algum problema com o contrato, senhor Delvecchio? — Meu padrasto perguntou entrando na sala.Duncan ergueu a postura, mas não se levantou, apoiando o queixo na mão com o cotovelo por cima da mesa, com a outra mão, deu um peteleco no sapo de papel, fazendo-o parar diante dos meus sapatos. Seus cabelos escuros caiam adoravelmente em seu rosto pálido, seu maxilar estava relaxado, diferente da primeira vez que nos vimos e achei a curva de descontentamento em seus lábios ainda mais adorável. Eu certamente não devia pensar assim, mas Duncan Delvecchio era mesmo um dos solteiros mais bonitos da alta sociedade. Era inegável.— Este contrato não me satisfaz. — Revelou com a voz calma, ainda mansa. O timbre grosso e rouco fez meu corpo se arrepiar. Fazia tempo desde a última vez que ouvi sua voz e ela continuava hipnotizante.Meu padrasto suspirou cansado, com ambas as mãos na cintura por cima do paletó:— E como podemos agradá-lo então?— Fiz algumas alterações. — Duncan fez u
Os guardas de Duncan tinham levantado suas armas para mim. Por mais que o som das armas municiando me fizessem tremer as pernas, eu me mantive em pé, encarando meu futuro noivo com fogo no olhar.— Não a machuque! — Irineo interveio.Duncan ergueu a mão, olhando para os homens atrás de mim e pedindo calma de maneira descontraída:— O que estão fazendo? — Reclamou. Os homens recuaram. — Saíam da sala, quero resolver logo o contrato com minha noiva e vocês estão nos atrapalhando. — Ele disse, expulsando seus guardas-costas e virando-se para mim. Fiquei chocada com suas palavras e percebi que ele realmente considerava um casamento entre nós. — O que você quer, pequena? Estou ouvindo.Senti o tom de escárnio e desafio em sua voz. Mas se ele achava que eu me dobraria tão facilmente, estava enganado. Não demonstrei medo para ele na primeira vez que o vi e certamente eu não o faria agora. Os guardas deixaram a sala e ficamos apenas nós, os advogados e os seguranças do meu padrasto.— Não lev
A decoração da festa tinha sido exatamente como imaginei, mas agora que eu olhava para ela, via que talvez eu tivesse sido muito ingênua na escolha de alguns elementos. As cores que escolhi eram para representar uma pintura renascentista com ares de vernaglia; aquela nostalgia da primavera.Rosas exuberantes em tom rosa claro eram expostas puras em vasos longos dourados. Os pratos tinham bordas douradas e rosas delicadas pintadas à mão por uma artista talentosa. Os lustres eram pendurados, com cristais que expunham feixes de luzes brilhantes e reluziam as lâmpadas amareladas. O salão fora coberto por um tapete cinza claro, os sofás, de couro branco, adornados com almofadas douradas e rosas. Nas mesas, em estilo provençal, haviam arranjos arrojados.A única coisa destoando naquela decoração toda era um adorno de pomba que deveria representar fidelidade, harmonia e união entre os noivos e que agora eu suspirava resignada só de olhar para ele. Como haveria paz entre eu e Duncan?! Como eu
Duncan tirou seu paletó o jogou sobre meus ombros. Dei um salto e olhei para o lado. Sentir o calor dele sobre o meu, foi como receber um abraço. O perfume intenso estava impregnado em sua roupa, me envolvendo. Meus olhos capturaram o coldre que ele usava, que lembrava um suspensório e segurava as duas armas nas costas.Engoli em seco encarando as pistolas cromadas de um metal levemente dourado, indicando que eram personalizadas. Quando ele transita para a leveza dessa forma, quase me esqueço de que Duncan é um homem perigoso.— O que está fazendo? — Questionei.— Está frio.— Eu posso pegar uma estola com uma das responsáveis pela festa, não precisa se preocupar. — Tirei o paletó e devolvi para ele.Fiquei segurando a peça no ar, mas Duncan não se mexeu. A única coisa que ele fez foi tirar o cigarro dos lábios e soltar a fumaça pela boca. O breve silêncio entre nós foi preenchido pelo som da música no salão, uma balada lenta.Duncan cortou o momento com um “tsc”.— Você quer me mostra
A brisa outonal batia fresca em meu rosto, queimando levemente minhas bochechas. Em frente ao Collegio Palazzo Splendore, as folhas das árvores estavam em tons vibrantes de laranja, vermelho e amarelo. Avistei Ottavia de longe, seus cabelos ruivos da cor do cobre sempre chamavam a atenção, mesmo em dias nublados. Ela levantou do banco ao me ver e veio rápido em meu encontro, segurando o celular enquanto puxava os fones de ouvido, a mochila Fendi balançando de um lado para o outro.— Vicenza! — Ela me abraçou e um sorriso espalhou no meu rosto. — Que saudades!— Também senti sua falta. — Respondi apertando os braços ao redor da minha amiga.De repente ela começou a farejar meus cabelos e roupas.— Uau, que cheirinho bom, é o novo perfume da coleção que a empresa do seu pai lançou? Aquele com cheirinho de pêssego?— Sim, é ele.— Ai! Eu estou louca para comprar. Assisti a propaganda com o Mattia! Ele é tão lindo! Você chegou a conhecê-lo? Foi por isso que você sumiu nas férias? Não me di