Fernanda Mendonça:
Concentre-se Fernanda. Você já passou por várias simulações na faculdade, respire fundo e ajude!
— Pressão arterial subindo! — A voz da enfermeira corta o ar, carregada de tensão.
— Precisamos acelerar — a obstetra declara, sua postura rígida transparecendo a gravidade da situação. Ela se volta para o anestesista. — Ela está estabilizada o suficiente?
— Podemos começar — o anestesista responde com um breve aceno, embora o nervosismo esteja evidente em sua voz.
Meu coração parece pular do peito quando o bisturi na mão da doutora reluz sob a luz fria da sala. O ambiente ao meu redor parece diminuir, cada som ampliado como se estivesse dentro de uma bolha prestes a estourar.
Droga! A simulação nunca é como a vida real.
A obstetra começa a incisão, suas mãos rápidas e precisas. O sangue surge na pele pálida da paciente, e o som dos instrumentos sendo passados de mão em mão enche a sala, um ritmo quase hipnótico.
— Chegando na cavidade uterina — informa a Dra.
Sinto o suor escorrer pela minha testa, minhas pernas parecendo feitas de chumbo. Estou presa, impotente, uma mera espectadora de algo maior do que qualquer coisa que já enfrentei.
— Cuidado com a hemorragia — alerta outra enfermeira, e a equipe obstetra começa a se mover ainda mais rápido.
— Pressão está caindo! — A frase ecoa como um alarme, e a sala se torna um redemoinho de movimentos e comandos.
Quero sair. Preciso sair — o pensamento é esmagador, mas não posso ceder. Não agora.
Minha visão começa a embaçar. O som do monitor cardíaco disparando é ensurdecedor, cada bip martelando minha mente. Respiro fundo, mas o ar parece não chegar aos pulmões. Tento me concentrar, mas é impossível ignorar o pânico crescente.
A obstetra está suando enquanto tenta estabilizar a paciente.
— Precisamos de mais equipamentos. Rápido! — Ela pede, a urgência na voz dela fazendo minha espinha gelar.
Eu levanto a mão antes de pensar.
— Eu vou buscar.
Corro para uma das salas de suprimentos, mas meus movimentos estão desajeitados, o nervosismo me dominando. Ao puxar os cabos e ajustar o monitor, minha mão esbarra em um suporte, derrubando parte do equipamento no chão.
— Droga... — murmuro, abaixando-me para recolher as peças danificadas.
Coloco-as sobre a pequena mesa e começo a revirar as caixas, em busca de peças que sirvam. Cada segundo perdido parece uma eternidade. Pego um novo monitor e volto apressada para a sala de parto, o suor escorrendo pela minha testa.
Quando entro, minha colega já está posicionando o equipamento que deveria ser minha responsabilidade. Ela olha para mim de relance, mas não diz nada.
Sinto o olhar da Dra. Débora sobre mim, desapontado.
Levo o equipamento de volta e ao retorna para a sala, a Dra. Débora começa a dar novas ordens, faço o que me pedem, mas cada movimento parece automático.
— Vamos, precisamos agir rápido. Souza, segure aqui. Mendonça, prepare os equipamentos para o bebê.
Minhas mãos tremem enquanto faço o que ela pede. Tento me concentrar nos detalhes, nos passos, mas a ansiedade está me sufocando.
Até que um som corta o ar — agudo, frágil, quase como um sopro transformado em choro.
O bebê.
Meu olhar é instantaneamente atraído para ele, um pequeno corpo quase translúcido, que praticamente cabe apenas em uma mão, envolto em um tecido azul grande demais.
— Dificuldade respiratória detectada! Saturação em 85%! — Uma das enfermeiras avisa, ajustando os equipamentos com mãos rápidas.
— Precisamos estabilizá-lo antes de transferi-lo para a incubadora — Débora ordena, seu tom calmo, mas cheio de urgência.
O bebê é levado para a mesa neonatal, e eu observo em silêncio, minhas pernas presas no chão como se fossem feitas de cimento. A Dra. Débora e Karina saem da sala rapidamente, suas silhuetas desaparecendo pela porta.
De repente, todos os aparelhos ao redor da paciente disparam ao mesmo tempo, um som agudo que corta o ar e me puxa do meu estado de torpor. Um arrepio frio percorre meu corpo, fazendo cada fio de cabelo na nuca se arrepiar.
— Ela está sangrando muito! — Uma das enfermeiras grita, sua voz carregada de urgência e pânico.
Congelo no lugar, incapaz de processar o que estou vendo. O caos ao meu redor parece distante, como se eu estivesse vendo tudo através de um vidro.
— Você ai, venha ajudar! — a voz da obstetra me atinge como um trovão.
— Ma-mas eu sou da pediatri... — minha voz sai fraca, quase inaudível.
— Foda-se a sua área, porra! Venha aqui agora! — Ela grita, sua autoridade esmagando qualquer hesitação que eu pudesse ter.
Engulo em seco e forço minhas pernas a se moverem, um passo pesado de cada vez, até alcançar a mesa cirúrgica. O cheiro metálico do sangue preenche minhas narinas, e meus olhos se fecham instintivamente quando percebo a visão da barriga aberta da paciente.
— Mais compressão! Vamos lá, pessoal, ela ainda está conosco! — Ordena a obstetra, sua voz firme, mas com um traço de tensão que não consigo ignorar.
Meu peito aperta, como se um peso estivesse esmagando meus pulmões. Minhas mãos tremem violentamente, a ponto de quase perderem a força. Tento me concentrar, mas a realidade ao meu redor é avassaladora.
As vozes se misturam, os movimentos são rápidos e precisos, mas tudo parece fora de foco para mim.
De repente, todos os sons disparados viram um zumbido.
— Massagem cardíaca, agora! — A obstetra grita.
Minhas mãos, cobertas de sangue, colocam em prática mais um dos treinamentos, mesmo enquanto meu coração implora para fugir. Começo a compressão no peito da paciente.
— Por favor, por favor, por favor, por favor! — murmuro, cada palavra uma súplica desesperada.
— Afaste-se! — uma voz masculina soa atrás de mim. Um enfermeiro com o desfibrilador em mãos assume. — Um, dois, três!
Dou um passo para trás, observando enquanto a corrente elétrica atravessa o corpo da paciente. Fecho as mãos em punhos, segurando o fôlego enquanto ouço o som ensurdecedor do choque.
Nada.
Eles tentam de novo. E de novo.
Então, o som cessa.
Abro os olhos e encaro a linha contínua nos monitores, a confirmação cruel de que ela não está mais aqui. Meu estômago despenca, e minha mente se recusa a aceitar.
— Drogaaa! — a obstetra grita, sua voz carregada de frustração e desespero. Ela derruba os instrumentos no chão, suas lágrimas caindo descontroladamente. — Tentem de novo! Minha amiga não pode morrer aqui! Vamos!
O enfermeiro hesita, mas obedece. Outro choque. Outro silêncio devastador.
Nada muda.
A obstetra cai de joelhos, o corpo dela tremendo com o peso do momento. Uma enfermeira cobre a paciente com um pano branco, sua expressão carregada de pesar.
— Precisamos dar a notícia a família — escuto uma enfermeira dizer, mas é óbvio que a obstetra está em pedaços, sem condições de enfrentar essa tarefa.
— Eu falarei com a família — digo, as palavras escapando antes que eu possa pensar.
— Mas você é da equipe de cardiologia pediátrica... — alguém argumenta, hesitante.
— Eu estava no parto. Ela não pode fazer isso agora. Eu irei.
Não espero mais nenhum comentário. Viro-me e caminho até a porta. Seguro a maçaneta e respiro fundo, contando até três antes de girá-la.
Assim que abro a porta, ouço uma voz.
— Meu filho nasceu? Minha mulher está bem?
Congelo instantaneamente. A familiaridade daquele timbre profundo me atinge como um soco no estômago. Meus olhos buscam a fonte do som, e o tempo parece parar.
Pietro.
O homem que evitei por três anos está parado à minha frente, a preocupação e a dor estampadas em cada linha do seu rosto.
Pietro Castellane:— Sei que o momento é delicado para o senhor — minha secretaria começa. — Mas os novos estagiários chegaram ontem, você ainda não se apresentou a...A frase dela é interrompida pelo som agudo do meu celular vibrando em meu bolso.— Um momento, Emile — tiro o aparelho do bolso e vejo o nome da médica da minha esposa na tela. Meu coração acelera. — O que aconteceu? — Atendo imediatamente, minha voz soando mais firme do que me sinto por dentro.O silêncio do outro lado dura uma fração de segundo, mas é longo o suficiente para que meu estômago se contraia em um nó.— Senhor Castellane, o estado da sua esposa piorou. A pressão dela está perigosamente alta. Precisamos fazer o parto de emergência agora. Não há tempo, ou perderemos os dois.O peso das palavras atravessa o meu peito como um soco. A sala ao meu redor desaparece em um turbilhão de vozes abafadas e formas indistintas, como se o mundo tivesse perdido o foco. A única coisa que ouço, clara como um trovão, é o som
Pietro Castellane:Ela está pálida, o rosto marcado por uma expressão que mistura cansaço, nervosismo e algo mais... culpa? Por um instante, fico paralisado pela surpresa de vê-la ali, mas a preocupação com Marina e o bebê rapidamente me tira do transe.— Minha esposa... — meus olhos caem para suas mãos cheias de sangue.Ela respira fundo, os lábios se comprimindo como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. O silêncio dela é ensurdecedor.— Seu filho... — ela começa, a voz baixa e hesitante. — Ele nasceu. Está na UTI neonatal agora. Mas...Meu mundo gira. A palavra "mas" ecoa na minha mente como uma sentença. Minha garganta aperta, e preciso reunir todas as forças para perguntar:— E Marina? Ela está bem?Fernanda desvia o olhar, os olhos brilhando com lágrimas não derramadas. Meu coração para. Cada músculo do meu corpo fica tenso, esperando pelo golpe.— Eu sinto muito, Pietro. Fizemos tudo o que pudemos... — ela diz, e sua voz falha no final.As palavras me atingem como um
Pietro CastellaneObservo a noite lentamente se render ao dia através da grande janela da minha sala no Vivaz. O céu, antes carregado de escuridão, ganha nuances de rosa, anunciando o nascer do sol. A luz tímida atravessa o vidro, mas não aquece. Não consigo sentir nada.Deslizo o jaleco pelos ombros, ajustando-o com gestos automáticos. Meus movimentos são precisos, mas vazios.Desço os corredores do hospital como se estivesse no piloto automático, cumprimentando rostos que não registro.Não sinto sono.Não sinto fome.Não sinto sede.Só existe uma coisa na minha mente, um único propósito que ainda me faz colocar um pé à frente do outro.Eu só quero ver o meu filho.O silêncio da ala neonatal é sufocante, quebrado apenas pelo som constante dos monitores. Meu olhar está fixo no pequeno corpo do meu filho dentro da incubadora, tão pequeno que parece que vai desaparecer a qualquer momento.As luzes frias da sala acentuam sua pele translúcida, cada batida do coração dele registrada no mon
Pietro Castellane:Adélia.Ela entra como um furacão, trazendo consigo uma presença que preenche a sala de maneira sufocante. Seus saltos ressoam no chão frio, e seu olhar varre o ambiente, passando por Fernanda como se ela não existisse, antes de fixar-se em mim.— Pietro, finalmente te encontrei — sua voz é firme, seria, imediatamente fico em alerta.Respiro fundo, tentando conter o incômodo que cresce no peito.— Adélia, agora não é um bom momento — meu tom é controlado, mas sei que ela não vai aceitar um “não” tão facilmente.Ela ergue uma sobrancelha, desdenhosa, então avança, ignorando minhas palavras.— Não é um bom momento? — O sarcasmo em sua voz me faz cerrar os punhos. — Meu herdeiro está nessa incubadora, e você acha que não é um bom momento para discutirmos o futuro dele? Acha que pode me impedir de vê-lo?Sinto o sangue ferver, mas mantenho a calma.— Adélia — meu tom soa baixo, como um aviso. — Não tem nem vinte e quatro horas que perdi a minha esposa, respeite o meu lu
Fernanda Mendonça:— Sério? Não acredito que deixaram uma gorda buscar equipamentos tão importantes!A voz cheia de deboche ecoa pelo corredor, cortando o ar como uma lâmina, minha mão trava na maçaneta da sala de descanso.— Ainda bem que a doutora também te levou, Ka. Imagina se você não estivesse lá! Poderiam ter perdido a vida do bebê! — Outra voz se junta, carregada de veneno, o tom leve só tornando as palavras mais cruéis.— Eu ouvi dizer que ela não saiu da sala após a saída da doutora. Será que cometeu mais algum erro e por causa disso a paciente morreu? — Uma terceira voz se une ao coro, cada palavra me atingindo como um soco.— Não duvido. Ela mais atrapalha do que ajuda.— Sim, a tia da paciente deu um tapão na cara dela, só não bateu mais porque o Doutor Castellane impediu.— Bem pouco, ela não tinha que dar notícia nenhuma a família.As palavras pairam no ar, pesadas e implacáveis. Cada uma delas parece atravessar minha pele e se alojar fundo, alimentando uma dor que já c
Fernanda Mendonça:A tensão no ar é palpável, e muito estranha. Pietro, com seu olhar sério e uma presença que domina qualquer espaço, mantém-se firme como uma rocha. Tiago, sempre descontraído, agora está ereto como uma linha, como se estivesse disputando território com Pietro, mesmo sendo visivelmente menor.Franzo o cenho, o que está acontecendo?— Doutor Castellane — Tiago quebra o silêncio, sua voz carregada de uma formalidade quase cortante. — Meus pêsames por sua esposa. É uma honra finalmente está na presença do homem melhor cardiogista desse hospital, e agora é o CEO. No entanto, a minha colega Mendonça, está ocupada. Se precisa de uma auxilio de um enfermeiro, estou à disposição.Minha garganta aperta, não consigo entender por que Tiago está agindo dessa forma. Tiago não tira os olhos de Pietro, e Pietro retribui o olhar, estreitando os olhos, como se estivesse lendo além do que foi dito.— Obrigado pela oferta — Pietro desvia o olhar para o crachá de Tiago. — Estagiário L
Pietro CastellaniAs palavras impressas nos papeis em minhas mãos são como facadas no meu peito.“Entrega da guarda legal de Gabriel da Silva Castellane...”Meu sangue ferve.O som do papel rasgando ecoa pela minha sala como um grito sufocado. A cada objeto destruído, rasgado, estilhaçado, minha respiração fica mais pesada, meu peito sobe e desce de forma irregular enquanto tento finalmente me acalmar do ódio que dessa vez eu não consegui conter.Minha visão fica turva pela raiva enquanto rasgo a última página e a jogo ao chão já cobertos por cacos de vidro da mesinha de centro e moveis revirados, computador quebrado.Meus olhos percorrem o caos que minha sala se transformou. Nas manchas de sangue deixadas na parede dos socos que dei. Sinto os nos dos meus dedos finalmente reclamarem com a dor dos ferimentos. Mas nada disso alivia a fúria crescendo dentro de mim.Maldita Adélia! Maldito Diogo! A porta se abre bruscamente.Levanto a cabeça, os ombros rígidos.Fernando entra sem nenhum
Fernanda Mendonça:Por que você não liga?A pergunta ecoa na minha mente como um mantra. Aperto o celular com mais força, meus dedos hesitando sobre a tela.Três semanas desde a última vez que o vi e falei com ele. E continuo aqui, sem saber o que fazer.— Fê? … Fernanda? — Uma voz me chama, e sinto meu ombro ser cutucado. Pisco algumas vezes até minha visão focar e encaro os olhos castanhos de Tiago, que me olha com as sobrancelhas franzidas. — Você está bem?— O-oi — minha voz sai hesitante enquanto coço a garganta. — Sim, estou bem.Tiago inclina a cabeça, seus cabelos lisos balançando com o movimento, seus olhos me estudam.— Você está distraída a manhã inteira, e não é de hoje que está assim. Não está focando nas aulas, fica o tempo todo olhando o celular. Tem certeza que está bem?— Tenho sim — esboço um sorriso amarelo, tentando parecer mais confiante do que me sinto. — O estágio está sendo mais desafiador do que eu imaginei — murmuro deixando a mentira se misturar com uma pita