Capítulo 6: Duas Vozes

Fernanda Mendonça:

— Sério? Não acredito que deixaram uma gorda buscar equipamentos tão importantes!

A voz cheia de deboche ecoa pelo corredor, cortando o ar como uma lâmina, minha mão trava na maçaneta da sala de descanso.

— Ainda bem que a doutora também te levou, Ka. Imagina se você não estivesse lá! Poderiam ter perdido a vida do bebê! — Outra voz se junta, carregada de veneno, o tom leve só tornando as palavras mais cruéis.

— Eu ouvi dizer que ela não saiu da sala após a saída da doutora. Será que cometeu mais algum erro e por causa disso a paciente morreu? — Uma terceira voz se une ao coro, cada palavra me atingindo como um soco.

— Não duvido. Ela mais atrapalha do que ajuda.

— Sim, a tia da paciente deu um tapão na cara dela, só não bateu mais porque o Doutor Castellane impediu.

— Bem pouco, ela não tinha que dar notícia nenhuma a família.

As palavras pairam no ar, pesadas e implacáveis. Cada uma delas parece atravessar minha pele e se alojar fundo, alimentando uma dor que já carrego há tanto tempo.

Meu peito aperta, e uma mistura de vergonha e raiva cresce dentro de mim, como uma chama sufocada que não consegue se apagar nem se espalhar.

É tanta coisa acontecendo...

As risadas abafadas continuam, carregadas de escárnio, e tudo o que consigo fazer é abaixar a cabeça, fingindo que não ouvi e a passos lentos me afasto da sala. Meu rosto queima, e as lágrimas que eu pensei ter conseguido me livrar voltam com o dobro de força.

Mas eu não posso chorar.

Não aqui.

Meus dedos se fecham em punhos, cravando as unhas na palma das mãos, tentando conter o tremor que toma meu corpo.

Por que estou aqui mesmo?

A pergunta surge na minha mente como um sussurro insidioso. Por que achei que poderia fazer isso? Por que pensei que seria capaz?

Por que foi mesmo que eu tive a brilhante ideia de me tornar uma enfermeira?

Fecho as mãos em punhos e respiro fundo, tentando não me deixar consumir por essas palavras cruéis. Mas a verdade é que elas ecoam, alimentando a insegurança que já está tão arraigada dentro de mim.

Eu respiro fundo, tentando segurar a onda de emoções que ameaça me engolir. Mas é impossível ignorar o eco das palavras delas, repetindo-se na minha cabeça como uma fita quebrada, cada vez mais altas, mais cruéis.

— Ei, Mendonça... estagiaria Mendonça! — Sinto uma mão firme em meu ombro, me fazendo parar abruptamente.

Viro-me, encontrando a figura da Dra. Débora um pouco embaçada pelas lágrimas que teimam em se formar nos meus olhos.

— Você está bem?

Pisco rapidamente, tentando me recompor.

— Si-sim, estou... estou bem , eu só... eu — não consigo encontrar palavras.

Ela me observa por um momento, como se tentasse avaliar se deve insistir ou não.

— Soube do incidente com a tia da paciente. Não se abale por isso. Violência da parte deles é mais comum do que deveria em hospitais. A maioria acha que somos Deus.

Eu apenas assinto, incapaz de responder. Ela não precisa saber que a mulher não me bateu porque queria salvar a sobrinha, mas sim porque a culpa precisava de um alvo — e eu estava lá.

— Enfim — a Dra. Débora continua, ajeitando o jaleco. — Distraia sua mente absorvendo mais conhecimento. Venha comigo.

Ela começa a caminhar para a ala pediátrica onde as crianças estão internadas.

Meu coração começa a acelerar assim que entro na sala cheia de monitores e pequenos corpos conectados a fios e tubos. O som das máquinas é um lembrete constante de quão delicadas são essas vidas. Tento me concentrar, mas minhas mãos estão trêmulas, e cada movimento parece mais desajeitado do que o anterior.

— Estagiária Fernanda, o prontuário do paciente — a Dra. Débora pede, estendendo a mão.

— Ah, sim, claro — digo apressadamente, pegando a prancheta ao meu lado.

Mas, no processo, ela escorrega dos meus dedos e cai no chão com um som seco que parece muito mais alto do que deveria.

A Dra. Débora e a enfermeira Carla me lançam olhares rápidos. Não são hostis, mas a tensão no ar é palpável.

Abaixo-me para pegar a prancheta, meu rosto queimando de vergonha. Quando volto a ficar de pé, percebo que perdi parte do que a Dra. Débora estava dizendo.

— Você ouviu o que eu pedi? — Ela pergunta, olhando para mim.

— Sim... quer dizer, não. Me desculpe, pode repetir?

Ela suspira, tentando disfarçar a irritação.

— A dosagem do medicamento que precisamos administrar. Está aí no prontuário.

Folheio as páginas freneticamente, meus olhos passando por linhas que parecem se embaralhar. As palavras na prancheta não fazem sentido, como se eu estivesse lendo um idioma desconhecido.

— Fernanda, hoje ainda, por favor — a enfermeira Carla fala baixo, para que as crianças não ouçam, me fazendo estremecer.

— Aqui... está aqui... — finalmente aponto para a linha, mas minha voz vacila.

— Isso não está certo — Carla diz, olhando rapidamente o que indiquei. Ela pega a prancheta das minhas mãos e verifica o dado correto em segundos. — A dosagem é 2,5 mg, não 1 mg.

Meu rosto queima, e eu sinto vontade de desaparecer ali mesmo.

— Está tudo bem. Vamos ajustar — a doutora Débora tenta amenizar.

Mas o olhar dela é suficiente para me fazer recuar. Ela se vira para Carla.

— Carla, assuma aqui, por favor. Fernanda, vá para casa, volte amanhã com a mente no lugar.

As palavras são educadas, mas o peso da insuficiência é impossível de ignorar.

— Sim, doutora — murmuro, com a garganta apertada. Saio da sala rapidamente, sem olhar para trás.

Assim que fecho a porta, as lágrimas finalmente escapam. Encosto-me contra a parede fria do corredor, sentindo cada gota escorrer pelo meu rosto.

Por que isso está acontecendo? Por que não consigo acertar?

Na faculdade, eu era excelente. Sempre tirava as melhores notas, sempre elogiada pelos professores. Mas aqui, na realidade, sinto como se não soubesse nada.

As vozes da doutora e de Carla ainda ecoam pela porta, calmas e eficientes. Elas estão fazendo o trabalho que deveria ser meu, por ser a estagiaria.

Você não está pronta para isso — a voz cruel na minha mente me golpeia novamente, mas a raiva contra mim mesma é maior.

— Fernanda?

Meu nome é chamado, mas não por uma voz — são duas, em uníssono.

Levanto a cabeça de repente, piscando para limpar a visão embaçada pelas lágrimas. Meus olhos alternam entre Pietro e Tiago, ambos parados à minha frente, tão próximos que parecem quase espelhar a presença um do outro. Suas mãos estão erguidas, como se estivessem prestes a me tocar, mas ambas hesitam, congeladas no meio do caminho dando-se conta uma da outra.

O choque inicial me deixa sem reação. Mas antes que eu consiga dizer qualquer coisa, os dois homens desviam os olhares de mim e se encaram.

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