Fernanda Mendonça:
— Sério? Não acredito que deixaram uma gorda buscar equipamentos tão importantes!
A voz cheia de deboche ecoa pelo corredor, cortando o ar como uma lâmina, minha mão trava na maçaneta da sala de descanso.
— Ainda bem que a doutora também te levou, Ka. Imagina se você não estivesse lá! Poderiam ter perdido a vida do bebê! — Outra voz se junta, carregada de veneno, o tom leve só tornando as palavras mais cruéis.
— Eu ouvi dizer que ela não saiu da sala após a saída da doutora. Será que cometeu mais algum erro e por causa disso a paciente morreu? — Uma terceira voz se une ao coro, cada palavra me atingindo como um soco.
— Não duvido. Ela mais atrapalha do que ajuda.
— Sim, a tia da paciente deu um tapão na cara dela, só não bateu mais porque o Doutor Castellane impediu.
— Bem pouco, ela não tinha que dar notícia nenhuma a família.
As palavras pairam no ar, pesadas e implacáveis. Cada uma delas parece atravessar minha pele e se alojar fundo, alimentando uma dor que já carrego há tanto tempo.
Meu peito aperta, e uma mistura de vergonha e raiva cresce dentro de mim, como uma chama sufocada que não consegue se apagar nem se espalhar.
É tanta coisa acontecendo...
As risadas abafadas continuam, carregadas de escárnio, e tudo o que consigo fazer é abaixar a cabeça, fingindo que não ouvi e a passos lentos me afasto da sala. Meu rosto queima, e as lágrimas que eu pensei ter conseguido me livrar voltam com o dobro de força.
Mas eu não posso chorar.
Não aqui.
Meus dedos se fecham em punhos, cravando as unhas na palma das mãos, tentando conter o tremor que toma meu corpo.
Por que estou aqui mesmo?
A pergunta surge na minha mente como um sussurro insidioso. Por que achei que poderia fazer isso? Por que pensei que seria capaz?
Por que foi mesmo que eu tive a brilhante ideia de me tornar uma enfermeira?
Fecho as mãos em punhos e respiro fundo, tentando não me deixar consumir por essas palavras cruéis. Mas a verdade é que elas ecoam, alimentando a insegurança que já está tão arraigada dentro de mim.
Eu respiro fundo, tentando segurar a onda de emoções que ameaça me engolir. Mas é impossível ignorar o eco das palavras delas, repetindo-se na minha cabeça como uma fita quebrada, cada vez mais altas, mais cruéis.
— Ei, Mendonça... estagiaria Mendonça! — Sinto uma mão firme em meu ombro, me fazendo parar abruptamente.
Viro-me, encontrando a figura da Dra. Débora um pouco embaçada pelas lágrimas que teimam em se formar nos meus olhos.
— Você está bem?
Pisco rapidamente, tentando me recompor.
— Si-sim, estou... estou bem , eu só... eu — não consigo encontrar palavras.
Ela me observa por um momento, como se tentasse avaliar se deve insistir ou não.
— Soube do incidente com a tia da paciente. Não se abale por isso. Violência da parte deles é mais comum do que deveria em hospitais. A maioria acha que somos Deus.
Eu apenas assinto, incapaz de responder. Ela não precisa saber que a mulher não me bateu porque queria salvar a sobrinha, mas sim porque a culpa precisava de um alvo — e eu estava lá.
— Enfim — a Dra. Débora continua, ajeitando o jaleco. — Distraia sua mente absorvendo mais conhecimento. Venha comigo.
Ela começa a caminhar para a ala pediátrica onde as crianças estão internadas.
Meu coração começa a acelerar assim que entro na sala cheia de monitores e pequenos corpos conectados a fios e tubos. O som das máquinas é um lembrete constante de quão delicadas são essas vidas. Tento me concentrar, mas minhas mãos estão trêmulas, e cada movimento parece mais desajeitado do que o anterior.
— Estagiária Fernanda, o prontuário do paciente — a Dra. Débora pede, estendendo a mão.
— Ah, sim, claro — digo apressadamente, pegando a prancheta ao meu lado.
Mas, no processo, ela escorrega dos meus dedos e cai no chão com um som seco que parece muito mais alto do que deveria.
A Dra. Débora e a enfermeira Carla me lançam olhares rápidos. Não são hostis, mas a tensão no ar é palpável.
Abaixo-me para pegar a prancheta, meu rosto queimando de vergonha. Quando volto a ficar de pé, percebo que perdi parte do que a Dra. Débora estava dizendo.
— Você ouviu o que eu pedi? — Ela pergunta, olhando para mim.
— Sim... quer dizer, não. Me desculpe, pode repetir?
Ela suspira, tentando disfarçar a irritação.
— A dosagem do medicamento que precisamos administrar. Está aí no prontuário.
Folheio as páginas freneticamente, meus olhos passando por linhas que parecem se embaralhar. As palavras na prancheta não fazem sentido, como se eu estivesse lendo um idioma desconhecido.
— Fernanda, hoje ainda, por favor — a enfermeira Carla fala baixo, para que as crianças não ouçam, me fazendo estremecer.
— Aqui... está aqui... — finalmente aponto para a linha, mas minha voz vacila.
— Isso não está certo — Carla diz, olhando rapidamente o que indiquei. Ela pega a prancheta das minhas mãos e verifica o dado correto em segundos. — A dosagem é 2,5 mg, não 1 mg.
Meu rosto queima, e eu sinto vontade de desaparecer ali mesmo.
— Está tudo bem. Vamos ajustar — a doutora Débora tenta amenizar.
Mas o olhar dela é suficiente para me fazer recuar. Ela se vira para Carla.
— Carla, assuma aqui, por favor. Fernanda, vá para casa, volte amanhã com a mente no lugar.
As palavras são educadas, mas o peso da insuficiência é impossível de ignorar.
— Sim, doutora — murmuro, com a garganta apertada. Saio da sala rapidamente, sem olhar para trás.
Assim que fecho a porta, as lágrimas finalmente escapam. Encosto-me contra a parede fria do corredor, sentindo cada gota escorrer pelo meu rosto.
Por que isso está acontecendo? Por que não consigo acertar?
Na faculdade, eu era excelente. Sempre tirava as melhores notas, sempre elogiada pelos professores. Mas aqui, na realidade, sinto como se não soubesse nada.
As vozes da doutora e de Carla ainda ecoam pela porta, calmas e eficientes. Elas estão fazendo o trabalho que deveria ser meu, por ser a estagiaria.
Você não está pronta para isso — a voz cruel na minha mente me golpeia novamente, mas a raiva contra mim mesma é maior.
— Fernanda?
Meu nome é chamado, mas não por uma voz — são duas, em uníssono.
Levanto a cabeça de repente, piscando para limpar a visão embaçada pelas lágrimas. Meus olhos alternam entre Pietro e Tiago, ambos parados à minha frente, tão próximos que parecem quase espelhar a presença um do outro. Suas mãos estão erguidas, como se estivessem prestes a me tocar, mas ambas hesitam, congeladas no meio do caminho dando-se conta uma da outra.
O choque inicial me deixa sem reação. Mas antes que eu consiga dizer qualquer coisa, os dois homens desviam os olhares de mim e se encaram.
Fernanda Mendonça:A tensão no ar é palpável, e muito estranha. Pietro, com seu olhar sério e uma presença que domina qualquer espaço, mantém-se firme como uma rocha. Tiago, sempre descontraído, agora está ereto como uma linha, como se estivesse disputando território com Pietro, mesmo sendo visivelmente menor.Franzo o cenho, o que está acontecendo?— Doutor Castellane — Tiago quebra o silêncio, sua voz carregada de uma formalidade quase cortante. — Meus pêsames por sua esposa. É uma honra finalmente está na presença do homem melhor cardiogista desse hospital, e agora é o CEO. No entanto, a minha colega Mendonça, está ocupada. Se precisa de uma auxilio de um enfermeiro, estou à disposição.Minha garganta aperta, não consigo entender por que Tiago está agindo dessa forma. Tiago não tira os olhos de Pietro, e Pietro retribui o olhar, estreitando os olhos, como se estivesse lendo além do que foi dito.— Obrigado pela oferta — Pietro desvia o olhar para o crachá de Tiago. — Estagiário L
Pietro CastellaniAs palavras impressas nos papeis em minhas mãos são como facadas no meu peito.“Entrega da guarda legal de Gabriel da Silva Castellane...”Meu sangue ferve.O som do papel rasgando ecoa pela minha sala como um grito sufocado. A cada objeto destruído, rasgado, estilhaçado, minha respiração fica mais pesada, meu peito sobe e desce de forma irregular enquanto tento finalmente me acalmar do ódio que dessa vez eu não consegui conter.Minha visão fica turva pela raiva enquanto rasgo a última página e a jogo ao chão já cobertos por cacos de vidro da mesinha de centro e moveis revirados, computador quebrado.Meus olhos percorrem o caos que minha sala se transformou. Nas manchas de sangue deixadas na parede dos socos que dei. Sinto os nos dos meus dedos finalmente reclamarem com a dor dos ferimentos. Mas nada disso alivia a fúria crescendo dentro de mim.Maldita Adélia! Maldito Diogo! A porta se abre bruscamente.Levanto a cabeça, os ombros rígidos.Fernando entra sem nenhum
Fernanda Mendonça:Por que você não liga?A pergunta ecoa na minha mente como um mantra. Aperto o celular com mais força, meus dedos hesitando sobre a tela.Três semanas desde a última vez que o vi e falei com ele. E continuo aqui, sem saber o que fazer.— Fê? … Fernanda? — Uma voz me chama, e sinto meu ombro ser cutucado. Pisco algumas vezes até minha visão focar e encaro os olhos castanhos de Tiago, que me olha com as sobrancelhas franzidas. — Você está bem?— O-oi — minha voz sai hesitante enquanto coço a garganta. — Sim, estou bem.Tiago inclina a cabeça, seus cabelos lisos balançando com o movimento, seus olhos me estudam.— Você está distraída a manhã inteira, e não é de hoje que está assim. Não está focando nas aulas, fica o tempo todo olhando o celular. Tem certeza que está bem?— Tenho sim — esboço um sorriso amarelo, tentando parecer mais confiante do que me sinto. — O estágio está sendo mais desafiador do que eu imaginei — murmuro deixando a mentira se misturar com uma pita
Fernanda Mendonça:Respiro fundo e ajusto as luvas nas mãos, tentando ignorar o suor que faz meu uniforme grudar na pele. Preciso me concentrar. Sei que este setor exige precisão, e qualquer erro pode ser fatal.— Mendonça, você está no suporte hoje. Monitore os sinais vitais e auxilie nos procedimentos conforme necessário — a voz firme da doutora Débora ecoa no espaço enquanto ela examina um dos recém-nascidos, seu tom carregado de autoridade.Aceno com a cabeça, engolindo em seco. Vou até a incubadora que me foi designada e olho de perto para o bebê tão minúsculo que mal parece real, pois parece caber na palma da minha mão. A pele rosada e quase translúcida brilha sob as luzes brancas, e cada movimento seu é um esforço monumental. O peitoral sobe e desce em um padrão irregular, como se cada respiração fosse uma batalha.Como eu gostaria que nenhum bebê tivesse que passar por isso.Meus olhos correm até a plaquinha de identificação. Meu estômago despenca no mesmo instante.Gabriel Ca
Pietro CastellaneA colher de metal bate contra o prato de porcelana pela terceira vez. O som me irrita mais do que deveria. O cheiro do café e comida preenche o refeitório, mas não consigo sentir fome.Desvio os olhos da xicara em minha mão, pousando na Dra. Isabela Mancini, uma das candidatas da maldita lista que Fernando e minha secretária ajudaram a elaborar e também uma das medicas mais procuradas do meu hospital, especializada em neurologia, brilhante em sua área e, aparentemente, convencida de que todos deveriam saber disso.— Porque, veja bem, Pietro, tudo bem eu lhe chamar assim, né? — Ela não espera por resposta. — Eu sou uma das poucas que conseguem equilibrar a vida profissional e pessoal de maneira impecável — ela diz, enquanto mexe no café com a colher, sem realmente beber.Apenas assinto, bebendo meu próprio café. Ela claramente não precisa de incentivo para continuar falando.— Eu sempre soube que nasci para ser excepcional. Desde a faculdade, eu era uma das melhores d
Pietro Castellane:— Seu filho… — Débora começa, e o tom dela já me coloca em alerta. — Passou por uma situação de alto risco, que pode comprometer ainda mais a condição do coração dele.Um calafrio horrível sobe pela minha espinha, e meu coração bate tão forte que parece ecoar no silêncio do corredor.— Explique — exijo entre dentes, cada músculo do meu corpo enrijecendo.Débora suspira de forma bem audível.— A culpa foi minha. Não deveria ter confiado a monitorização do equipamento a uma estagiária. Mas… — ela pausa por um milésimo de segundo e então continua: — Isso aconteceu apenas porque ela resolveu mexer nos tubos do pequeno Gabriel sem o meu consentimento enquanto eu estava cuidando da emergia de outro bebê.Meu peito aperta, e meu olhar se estreita.— E o que exatamente ela fez?— Por ela ter ajustado de forma errada, o pequeno Gabriel ficou sem oxigênio e entrou em colapso respiratório o que causou uma taquicardia grave nele.O zumbido nos meus ouvidos fica ensurdecedor, fe
Pietro CastellaneMe apoio de costa sobre a mesa, cruzo os braços sobre o peito e observo Fernanda de costa, se movimentando tão lentamente quanto uma lesma.Finalmente a porta se fecha com um clique abafado.Ela permanece parada com a mão sobre a maçaneta, hesitando por um segundo antes de finalmente se virar para mim. Ela parece menor do que realmente é, e mesmo estando afastado dela por tanto anos, ainda odeio vê-la assim. Os dedos dela se apertam na barra da camisa do uniforme, enxergo o leve tremor neles.Mas esse não é um momento para eu me preocupar com ela.“Pietro tem a vida dele, ele é um homem casado agora. A esposa dele precisa de cuidados, você bem sabe, não tem porque eu ficar mantendo contato com ele.” — As palavras que o irmão dela repetiu quando eu questionei sobre o porquê eu não conseguia falar com Fernanda ecoam em minha mente, há um ano, minha esposa eram quem precisava dos meus cuidados, agora é o meu filho que precisa.— Por que mexeu nos tubos do meu filho? — M
Fernanda Mendonça— Tia! — Uma voz infantil que eu conheço bem grita atrás de mim.Me viro a tempo de ver Luciano correndo em minha direção. Ele vem tão rápido que quase esbarra em um médico que sai de uma sala, mas consegue desviar no último segundo. Ele abre seus pequenos braços e se joga contra minhas pernas com tanta força que quase perco o equilíbrio, mas o agarro antes que ele tropece.— Luciano, devagar! — Laura, minha cunhada, reclama, mas meu pequeno sobrinho ignora completamente e me abraça apertado.— Oi, campeão — sorrio, abaixando para ficar na mesma altura da dele.Antes que eu possa dizer mais alguma coisa, Luciana também vem correndo, silenciosa, mas com um sorriso tão grande que enche o meu coração.— Venha cá, princesa — digo, e abro o outro braço para ela.Ela se aninha contra mim, e eu seguro os dois, apertando-os com carinho. Dou um beijo na bochecha de cada um.— Como vocês estão?— Bem, tia — Luciano responde com um sorriso de tirar o fôlego.Passo a mão pelos c