Pietro Castellane
Observo a noite lentamente se render ao dia através da grande janela da minha sala no Vivaz. O céu, antes carregado de escuridão, ganha nuances de rosa, anunciando o nascer do sol. A luz tímida atravessa o vidro, mas não aquece. Não consigo sentir nada.
Deslizo o jaleco pelos ombros, ajustando-o com gestos automáticos. Meus movimentos são precisos, mas vazios.
Desço os corredores do hospital como se estivesse no piloto automático, cumprimentando rostos que não registro.
Não sinto sono.
Não sinto fome.
Não sinto sede.
Só existe uma coisa na minha mente, um único propósito que ainda me faz colocar um pé à frente do outro.
Eu só quero ver o meu filho.
O silêncio da ala neonatal é sufocante, quebrado apenas pelo som constante dos monitores. Meu olhar está fixo no pequeno corpo do meu filho dentro da incubadora, tão pequeno que parece que vai desaparecer a qualquer momento.
As luzes frias da sala acentuam sua pele translúcida, cada batida do coração dele registrada no monitor como um lembrete de que ele está aqui… mas por quanto tempo?
Minha mão toca o vidro da incubadora. Eu deveria estar aliviado por ele ter sobrevivido, mas tudo o que sinto é um peso esmagador no peito. Marina deveria estar aqui. Isso deveria ser um momento de alegria, mas só consigo pensar na última vez que segurei a mão dela, prometendo que cuidaríamos disso juntos.
Apesar de ser o CEO e médico cardiologista, não posso cuidar da doença do meu filho. Ele está nas mãos da Dra. Débora.
Uma enfermeira entra na sala, ajustando os cabos e verificando os níveis do oxigênio. Ela não diz nada, apenas me lança um olhar compreensivo antes de sair, deixando-me sozinho com meus pensamentos.
Meu celular vibra no bolso. Hesito antes de pegar o aparelho. A mensagem é de Fernando.
Fernando: "Como você está? Precisa de alguma coisa?"
Fecho os olhos, tentando conter as lágrimas que ameaçam cair. Como eu deveria responder?
Que estou completamente perdido?
Que não faço ideia de como ser pai sozinho?
Digito uma resposta rápida, algo vago e sem compromisso, antes de guardar o celular novamente.
O som da porta se abrindo me faz virar. Meu coração para por um instante quando vejo Fernanda. Ela está parada ali, parecendo tão nervosa quanto eu me sinto. Seus olhos encontram os meus, e algo no olhar dela me faz lembrar dos dias em que ela era apenas a " minha Naninha", a irmã caçula do meu melhor amigo, a garotinha doce e delicada.
— Pietro... — a voz dela é um sussurro hesitante, quase engolido pelo som constante dos monitores. Ela dá um passo à frente, mas para de repente, como se estivesse dividida entre avançar ou recuar, como se a própria presença dela aqui fosse uma intrusão.
Meus ombros enrijecem automaticamente.
— O que você está fazendo aqui? — minha voz sai mais dura do que eu queria, carregada pelo cansaço que parece estar grudado à minha pele. Não consigo evitar. Estou exausto, e a última coisa que preciso agora é mais perguntas sem respostas.
Ela engole em seco, e o movimento de sua garganta me chama a atenção por um segundo. Sua insegurança é evidente. Seus olhos desviam para a incubadora onde Gabriel está, e sua expressão muda. Suaviza.
— Eu... soube que você estava aqui e... queria saber como você está — ela diz, os dedos entrelaçados, apertando-se em um gesto que conheço bem. Sempre fazia isso quando estava desconfortável, quando não sabia o que dizer. — Sei que a situação é... difícil, e eu...
— Difícil? — A interrompo, minha voz gotejando sarcasmo. A palavra me soa ridícula. — Minha esposa morreu ontem, Fernanda. Meu filho está em uma incubadora lutando para sobreviver com uma doença cardíaca que pode piorar a qualquer momento. Nada disso é apenas difícil.
Ela recua levemente, mas seus olhos permanecem fixos em mim. Não baixa a cabeça, não foge. Isso me irrita tanto quanto me surpreende. Há três anos, ela teria saído correndo ao primeiro tom mais duro.
— Eu sei que nada do que eu disser vai mudar o que você está sentindo, Pietro — a voz dela é baixa, quase frágil, mas há algo sólido ali, uma sinceridade que me deixa inquieto. — Mas você não precisa enfrentar isso sozinho. Estou aqui... se você precisar.
As palavras dela são um soco direto na parte de mim que ainda dói por sua ausência.
— Por que agora, Fernanda? — Minha voz falha, carregada pela dor e pela mágoa que eu nem sabia que estava guardando até vê-la naquele dia... até vê-la sair daquela sala, com o sangue de Marina nas mãos. — Três anos. Três malditos anos sem uma mensagem, sem uma palavra. Você desapareceu, e agora aparece como se nada tivesse acontecido?
Ela abaixa a cabeça, mordendo o lábio. Seus ombros tremem levemente, fecho as mãos em punhos e desvio o olhar.
Eu ainda odeio vê-la chorando.
— Eu... eu sei que errei. Sei que deveria ter estado aqui para você antes, Pietro, e nada do que eu diga ou faça vai mudar o que aconteceu. — A voz dela treme, quebrada pelo choro. — Sei que não tenho o direito de me aproximar de você agora, fingindo que esses três anos não existiram, mas...
— Mas o quê? — A encaro. — Não quero suas desculpas, continue me ignorando, fingindo que eu não existo.
— Eu nunca fingir... eu...
Antes que ela consiga terminar a frase, a porta se abre, e o som interrompe o momento como um estalo seco no ar.
Pietro Castellane:Adélia.Ela entra como um furacão, trazendo consigo uma presença que preenche a sala de maneira sufocante. Seus saltos ressoam no chão frio, e seu olhar varre o ambiente, passando por Fernanda como se ela não existisse, antes de fixar-se em mim.— Pietro, finalmente te encontrei — sua voz é firme, seria, imediatamente fico em alerta.Respiro fundo, tentando conter o incômodo que cresce no peito.— Adélia, agora não é um bom momento — meu tom é controlado, mas sei que ela não vai aceitar um “não” tão facilmente.Ela ergue uma sobrancelha, desdenhosa, então avança, ignorando minhas palavras.— Não é um bom momento? — O sarcasmo em sua voz me faz cerrar os punhos. — Meu herdeiro está nessa incubadora, e você acha que não é um bom momento para discutirmos o futuro dele? Acha que pode me impedir de vê-lo?Sinto o sangue ferver, mas mantenho a calma.— Adélia — meu tom soa baixo, como um aviso. — Não tem nem vinte e quatro horas que perdi a minha esposa, respeite o meu lu
Fernanda Mendonça:— Sério? Não acredito que deixaram uma gorda buscar equipamentos tão importantes!A voz cheia de deboche ecoa pelo corredor, cortando o ar como uma lâmina, minha mão trava na maçaneta da sala de descanso.— Ainda bem que a doutora também te levou, Ka. Imagina se você não estivesse lá! Poderiam ter perdido a vida do bebê! — Outra voz se junta, carregada de veneno, o tom leve só tornando as palavras mais cruéis.— Eu ouvi dizer que ela não saiu da sala após a saída da doutora. Será que cometeu mais algum erro e por causa disso a paciente morreu? — Uma terceira voz se une ao coro, cada palavra me atingindo como um soco.— Não duvido. Ela mais atrapalha do que ajuda.— Sim, a tia da paciente deu um tapão na cara dela, só não bateu mais porque o Doutor Castellane impediu.— Bem pouco, ela não tinha que dar notícia nenhuma a família.As palavras pairam no ar, pesadas e implacáveis. Cada uma delas parece atravessar minha pele e se alojar fundo, alimentando uma dor que já c
Fernanda Mendonça:A tensão no ar é palpável, e muito estranha. Pietro, com seu olhar sério e uma presença que domina qualquer espaço, mantém-se firme como uma rocha. Tiago, sempre descontraído, agora está ereto como uma linha, como se estivesse disputando território com Pietro, mesmo sendo visivelmente menor.Franzo o cenho, o que está acontecendo?— Doutor Castellane — Tiago quebra o silêncio, sua voz carregada de uma formalidade quase cortante. — Meus pêsames por sua esposa. É uma honra finalmente está na presença do homem melhor cardiogista desse hospital, e agora é o CEO. No entanto, a minha colega Mendonça, está ocupada. Se precisa de uma auxilio de um enfermeiro, estou à disposição.Minha garganta aperta, não consigo entender por que Tiago está agindo dessa forma. Tiago não tira os olhos de Pietro, e Pietro retribui o olhar, estreitando os olhos, como se estivesse lendo além do que foi dito.— Obrigado pela oferta — Pietro desvia o olhar para o crachá de Tiago. — Estagiário L
Pietro CastellaniAs palavras impressas nos papeis em minhas mãos são como facadas no meu peito.“Entrega da guarda legal de Gabriel da Silva Castellane...”Meu sangue ferve.O som do papel rasgando ecoa pela minha sala como um grito sufocado. A cada objeto destruído, rasgado, estilhaçado, minha respiração fica mais pesada, meu peito sobe e desce de forma irregular enquanto tento finalmente me acalmar do ódio que dessa vez eu não consegui conter.Minha visão fica turva pela raiva enquanto rasgo a última página e a jogo ao chão já cobertos por cacos de vidro da mesinha de centro e moveis revirados, computador quebrado.Meus olhos percorrem o caos que minha sala se transformou. Nas manchas de sangue deixadas na parede dos socos que dei. Sinto os nos dos meus dedos finalmente reclamarem com a dor dos ferimentos. Mas nada disso alivia a fúria crescendo dentro de mim.Maldita Adélia! Maldito Diogo! A porta se abre bruscamente.Levanto a cabeça, os ombros rígidos.Fernando entra sem nenhum
Fernanda Mendonça:Por que você não liga?A pergunta ecoa na minha mente como um mantra. Aperto o celular com mais força, meus dedos hesitando sobre a tela.Três semanas desde a última vez que o vi e falei com ele. E continuo aqui, sem saber o que fazer.— Fê? … Fernanda? — Uma voz me chama, e sinto meu ombro ser cutucado. Pisco algumas vezes até minha visão focar e encaro os olhos castanhos de Tiago, que me olha com as sobrancelhas franzidas. — Você está bem?— O-oi — minha voz sai hesitante enquanto coço a garganta. — Sim, estou bem.Tiago inclina a cabeça, seus cabelos lisos balançando com o movimento, seus olhos me estudam.— Você está distraída a manhã inteira, e não é de hoje que está assim. Não está focando nas aulas, fica o tempo todo olhando o celular. Tem certeza que está bem?— Tenho sim — esboço um sorriso amarelo, tentando parecer mais confiante do que me sinto. — O estágio está sendo mais desafiador do que eu imaginei — murmuro deixando a mentira se misturar com uma pita
Fernanda Mendonça:Respiro fundo e ajusto as luvas nas mãos, tentando ignorar o suor que faz meu uniforme grudar na pele. Preciso me concentrar. Sei que este setor exige precisão, e qualquer erro pode ser fatal.— Mendonça, você está no suporte hoje. Monitore os sinais vitais e auxilie nos procedimentos conforme necessário — a voz firme da doutora Débora ecoa no espaço enquanto ela examina um dos recém-nascidos, seu tom carregado de autoridade.Aceno com a cabeça, engolindo em seco. Vou até a incubadora que me foi designada e olho de perto para o bebê tão minúsculo que mal parece real, pois parece caber na palma da minha mão. A pele rosada e quase translúcida brilha sob as luzes brancas, e cada movimento seu é um esforço monumental. O peitoral sobe e desce em um padrão irregular, como se cada respiração fosse uma batalha.Como eu gostaria que nenhum bebê tivesse que passar por isso.Meus olhos correm até a plaquinha de identificação. Meu estômago despenca no mesmo instante.Gabriel Ca
Pietro CastellaneA colher de metal bate contra o prato de porcelana pela terceira vez. O som me irrita mais do que deveria. O cheiro do café e comida preenche o refeitório, mas não consigo sentir fome.Desvio os olhos da xicara em minha mão, pousando na Dra. Isabela Mancini, uma das candidatas da maldita lista que Fernando e minha secretária ajudaram a elaborar e também uma das medicas mais procuradas do meu hospital, especializada em neurologia, brilhante em sua área e, aparentemente, convencida de que todos deveriam saber disso.— Porque, veja bem, Pietro, tudo bem eu lhe chamar assim, né? — Ela não espera por resposta. — Eu sou uma das poucas que conseguem equilibrar a vida profissional e pessoal de maneira impecável — ela diz, enquanto mexe no café com a colher, sem realmente beber.Apenas assinto, bebendo meu próprio café. Ela claramente não precisa de incentivo para continuar falando.— Eu sempre soube que nasci para ser excepcional. Desde a faculdade, eu era uma das melhores d
Pietro Castellane:— Seu filho… — Débora começa, e o tom dela já me coloca em alerta. — Passou por uma situação de alto risco, que pode comprometer ainda mais a condição do coração dele.Um calafrio horrível sobe pela minha espinha, e meu coração bate tão forte que parece ecoar no silêncio do corredor.— Explique — exijo entre dentes, cada músculo do meu corpo enrijecendo.Débora suspira de forma bem audível.— A culpa foi minha. Não deveria ter confiado a monitorização do equipamento a uma estagiária. Mas… — ela pausa por um milésimo de segundo e então continua: — Isso aconteceu apenas porque ela resolveu mexer nos tubos do pequeno Gabriel sem o meu consentimento enquanto eu estava cuidando da emergia de outro bebê.Meu peito aperta, e meu olhar se estreita.— E o que exatamente ela fez?— Por ela ter ajustado de forma errada, o pequeno Gabriel ficou sem oxigênio e entrou em colapso respiratório o que causou uma taquicardia grave nele.O zumbido nos meus ouvidos fica ensurdecedor, fe