Tempos atuais
- Seis horas da manhã. Seis horas da manhã.- Merda. - Soquei o despertador falante. - Já vou levantar cacete!As luzes do quarto acenderam e as cortinas se abriram sozinhas, tinha esquecido que foi eu quem programou tudo, só pra não chegar mais atrasada no escritório. Se minha cama tivesse a opção, teria me derrubado também.Muita gente ficava boquiaberta quando eu dizia onde consegui emprego, ainda mais exercendo minha profissão recém adquirida. Só não conto que sou obrigada a trabalhar até tarde nos processos e deixar tudo pronto para os mais velhos da empresa. Eu fazia todo o trabalho e eles levavam o crédito. Ou na pior das hipóteses ter que assistir julgamentos só pra anotar todas as artimanhas dos advogados mais caros, e isso me dava calafrios.Normalmente toda terça de manhã eu tomava café com o meu pai, depois ia trabalhar.Peguei o celular e digitei uma mensagem rápida;"9Desculpa pai, não vou poder estar aí hoje, o dia vai estar corrido... As seções começam mais cedo hoje... Beijos. Te amo..."Se não podia estar com meu pai, pelo menos correr eu podia. Joguei o celular e procurei minha roupa de exercícios.Quando o vento frio me golpeou pensei, só pensei em voltar correndo e me jogar na cama, esperar o sol frio de Londres sair e esquentar mesmo que minimamente as ruas.Comecei minha caminhada e liguei o celular, aumentei o volume e desci a rua.Sempre que podia corria até o parque do condomínio e depois ficava sentada por uns tempos, mas hoje não. Nem tinha corrido três minutos ainda quando notei algo se movendo na minha direção.Pensei ter visto um filhote de dinossauro correndo até mim. Fechei os olhos e abri de novo, poderia ser a adrenalina me fazendo ver um bicho daquele tamanho, e espumando pela boca, o animal corria na minha direção e se chocou contra mim, de tal forma que pensei ter morrido e voltado a vida em segundos. Fiquei deitada de costas até ouvir passos correndo na minha direção.- Moça. - continuei onde estava. - Senhorita? Me desculpa, você está bem?- Hum? - Desgrudei minha cara do chão frio e molhado.- Me desculpa, sou novo aqui. Ele se soltou de mim e pensei que ele não fosse ficar tão bravo assim e....- Entendi, entendi mas não precisa falar mais nada. - Limpei as mãos e me levantei aos poucos, cada canto do meu corpo doía. - Só acho que aquilo deveria ficar preso por correntes.- Aquilo se chama Harry, - Não me importei de olhar para ele, até porque meus cotovelos estavam parecendo um ralador. - Ele não fez porque quis!- Ainda bem, se não agora você estaria juntando meus restos ao invés de me amolar com a ideia do seu mini dinossauro. - Finalmente acabada a parte mais importante resolvi olhar para o estranho.O estranho parecia um sei lá, não dava pra comparar com o quê ele parecia, cabelos negros, naturais ou tingidos, vai saber. Os olhos eram azuis. Ao redor dos olhos os cílios eram tão fartos que dava a impressão que ele passava lápis preto, tudo isso era muito pouco para o sorriso, à sim, tipo pegador sabe, aqueles caras que sorriem e fecham um tantinho os olhos, enquanto a boca exprime um sorriso meio torto.Tentei não me impressionar, mas puta merda o cara era perfeito, ou quase, se não começasse a rir de mim, dar gargalhadas e colocar a mão na barriga.- O que foi? Acha bonitinho o que o seu bicho fez? Eu poderia ter chamado a polícia para você sabia? E te meter um processo grande. - Confesso que estava fungando pelo nariz. Ele continuou rindo ainda mais alto. - Fica rindo aí, só não estranha quando seu monstro não voltar para casa.Ele não parava de rir. Eu até poderia rir também, se não fosse o caso de estar toda ralada e moída por dentro, ter meu cabelo cheio de folhas e a tela do meu celular novinho rachada.Fui mancando até a minha querida casa e bati a porta, não precisei olhar no espelho para saber o motivo de tanta risada. Tinha perdido meu tênis do pé esquerdo, minha calça estava rasgada, e dava pra ver que minha calcinha era rosa, tinha também meu rabo de cavalo torto.- Miserável. - Tirei o outro tênis e passei direto pro banheiro.*******-Bom dia.- Só se for pra você. - Peguei uma xícara de café e virei de uma vez na boca.- Nossa. Porque está tão amarga? Caiu da cama hoje?- Muita graça a sua Benjamim. - Juntei minhas coisas e peguei a chave do carro.Tá legal que dirigir meia hora com o pé inchado foi horrível, teve horas que eu chorava de raiva, mas cheguei bem. Benjamim como bom amigo, estacionou o carro para mim, aliás ele fazia isso desde os tempos da faculdade. Somos amigos à sete anos, nunca pensamos em namorar, acho que somos o tipo amigo irmão, ninguém entende, nem meu pai. Ele é bonito, do estilo Londrino, alto loiro e olhos verdes, bochechas rosadas e um tanto fortinho. Já rolou um beijo entre a gente, mas foi estranho, desde então nunca mais tentamos.- Vamos no meu carro. - Ele passou na frente e abriu a porta para eu passar. - Deus me livre entrar num carro com você dirigindo. E além do mais, quero saber o motivo de tanta raiva hoje.Ainda bem que o elevador era bem na frente da minha sala, não tive que disfarçar muito para ninguém me ver mancando. Como sempre fomos espremidos até o estacionamento e depois disso fomos o caminho todo em silêncio, pra falar a verdade eu não gostava nem um pouco de estacionamento subterrâneo, me dava a impressão de estar sendo observada, e que a qualquer instante alguma coisa pularia na minha frente.A porta do carro dele ficava aberta, para uma emergência ele dizia. Pulei no banco e me afundei o quanto pôde.- Vamos nessa dona estressada. - Benjamim apertou minha bochecha. - Assim que o carro passar por aquele segurança você me conta sua novidade e eu te conto a minha.-Fechado. - Bati na mão dele.O carro nem cruzou o portão com o segurança e já virei e abri o jogo, contei tudo até depois que entrei em casa, e para minha surpresa ele também riu, não tanto quanto o idiota, mas riu um bocado. Quando acabou notei Benjamim um pouco tenso, só quando chegou no tribunal que ele resolveu abrir o jogo.- Tenho um encontro hoje. - Ele desligou o carro e me encarou.-Que bom Ben, sério mesmo. - Peguei no ombro dele. - Mas porque você está inseguro?- Não foi eu quem marcou. Foi ela.- Ela quem?- A Isa, ela.... ela, me encurralou, eu sei que sofri um pouco com ela. - Ele estava aflito.- Um pouco? Ela te fez sofrer e muito. Aquela garota anda com todo mundo, você não merece isso Ben, não mesmo. - Juntei minhas coisas e abri o carro, mas ele me segurou.- E se eu não for?- Ela vai sair espalhando pra todo mundo.- Mas eu não posso, não sinto nada por ela. - Ele me segurou mais forte.- Gosta de alguém então?- Sim.- Então diz pra ela, fala que você gosta de outra pessoa e pronto. - Me soltei.- Não estou seguro quanto aos meus sentimentos.- Ele tremia um pouco. - Deixa isso pra lá, já deve ter começado o julgamento, e você tem razão, eu vou dizer tudo para ela, tudo mesmo.Ainda bem que acabou por aí, ele poderia muito bem dizer coisas que mais tarde iria acabar com a nossa amizade.Ele era alto, um metro e noventa, fiquei para trás mancando, mas Ben segurou a porta e entramos juntos.- Puta merda. - Senti minhas pernas endurecer.- Está no tribunal sabia? Pode ser presa por falar uma coisa dessas. - Ben falou no meu ouvido.- Ben? Lembra o que falei? - Ele me empurrou até o banco mais próximo.- Sim. O cara, - Ele parou. - A não, não me diz que é ele.- Hum. - Confirmei.Bastou um pequeno movimento meu para afirmar a história e o homem virou na minha direção. Ele arregalou os olhos só por um instante, e daquela distância eu vi uma risadinha se formando no canto da boca dele.- Ouvir dizer que ele foi transferido para cá, por causa de um julgamento na semana que vem. Dizem que ele é da Irlanda, o juiz mais jovem que tivemos. Acho que o nome dele é James O'Hare. Também falaram na empresa que ele é muito mal educado em pessoa, do tipo sarcástico ao extremo. Tem certeza que é ele?- Toda a certeza do mundo. - Ele olhou mais uma vez para mim.Esse caso está suspenso por hoje. Amanhã terminaremos. Próximo caso. - Ele parecia entediado o tempo todo, menos quando me olhava, o que não demorou muito para Ben perceber.Desviei o olhar e saí do lugar, não anotei nada, se não fosse pelo Ben eu estaria na rua, não que eu não cumprisse com meu dever, só não tive, vamos dizer cabeça para escrever tudo o que aconteceu.Esse era um fato que eu achava muito errado na empresa, assistir e anotar tudo ou gravar, para ir para análise e descobrir o ponto fraco dos demais, ou adotar as táticas deles.No Brasil um advogado ter um escritório próprio é muito maneiro, mas em Londres trabalhar para uma empresa é mais ainda.Nunca peguei um caso grande, só divórcio, leitura de testamento e organizar documentos e provas importantes. Meu sonho de ser a advogada durona está longe de ser cumprido.- Hei, o que acha da gente sair hoje? - Ben arrancou com o carro.- Ainda tenho coisas para fazer. - Respondi. - Não Senhora. A gente pode trabalhar em casa
— QUE MERDA FOI AQUELA? – Ben bateu a porta tão forte que um quadro pequeno que ficava perto da porta caiu no chão.Sentei no sofá e me limitei a olhar para ele. Aprendi a esperar a pessoa se acalmar e ter uma conversa de gente grande. Benjamim não parava de andar, abria as mãos, fechava em punho de uma vez, socava o ar, ou alguma pobre parede.— Aquela vadia. Foi tudo culpa dela, se eu não tivesse....— Não foi culpa de ninguém. – Respondi.— Me dá um bom motivo pra eu não ligar agora mesmo pro seu pai. – Ele pegou o telefone e esperou a minha resposta.O pior de tudo era saber que ele ligava mesmo, e se eu não desse esse bom motivo, meu pai não seria tão legal assim, e Deus me livre se meu pai entrar na conversa.— Eu estava te observando, você me disse que não iria demorar. O homem chegou, e começamos a conversar. Benjamim entenda que eu estou solteira desde que acabei a faculdade. E você estava lá todo lindo, conversando com ela. Fui levada pelo momento. Só que depois de algum
Benjamim me encontrou na metade do corredor, saímos o mais rápido possível e entramos no carro, do outro lado homens armados até os dentes faziam a segurança do juiz. Saímos todos para o mesmo lugar. Seria meu primeiro caso importante.— Droga Marjorie. ,– Ben ficou calado. — Mas que merda, como isso foi acontecer? — Eu não sei, não tinha como, estava tudo certo, eu já tinha as provas, a mulher do cara, só faltava ele ser preso. – Cobri o rosto com as mãos.— Ele deve ter todos os nomes agora, sabe de você. – O carro parou no sinal. — Fiquei sabendo que te deram o caso porque ninguém quis, e os outros estavam ocupados de mais. Eu precisava ligar para o meu pai, ele me faria ter forças, ter outra visão do que estava acontecendo.Peguei meu celular, disquei o número e pronto minha voz não saía.— Marjorie? — Pai? – Não tinha como não chorar.Com o pouco tempo que me restava contei tudo para ele, enquanto Ben batucava no volante, ou afirmava dizendo um "essa eu não sabia ", ou "conta
— Deixa eu ver se entendi. Você está sendo investigada por um caso que te deram? Marjorie, eu acho...— Também acho que armaram pra mim, mas quem? Eu não tenho amizade com ninguém, a não ser você, já saí com um cara, mas ele foi mandado embora no dia seguinte. – Senti meu estômago embrulhar. — Sabe o que eu acho. Que você foi usada pela esposa dele, a polícia se dividiu, metade para um irmão metade pro outro, e você foi escolhida para ser a boba. – Ele parou de andar e virou para me olhar. — Ainda tem as provas? Ou deixou na sua sala?— Tenho outra coisa pra contar. – Ele esticou o pescoço na minha direção.— James me pediu para guardar as provas comigo, era como se ele soubesse que alguma coisa ia dar errado.— E se ele sabe? Se foi avisado, ou ameaçado sei lá. Eu acho estranho não te fornecerem segurança, mesmo que você foi declarada suspeita, – Mais uma vez Ben parou de falar. — Tem alguém aí.— Como sabe? – Ele fez sinal para eu ficar quieta. — Hum?Um carro estava parado na fre
Oito anos atrás...— Como ? – O sorriso no rosto dele desapareceu. — Como você deixou isso acontecer?— Ah me desculpe, não te contei que a cegonha veio me visitar, ela errou na casa, mas como não podia voltar para trás deixou o pacotinho comigo. — Não é hora de brincadeira Marjorie. – Sentia Davi cada vez mais distante de mim.— Fiz o teste hoje e deu positivo, o que vamos fazer Davi?– O frio deu lugar a mais pura vergonha.— Não posso... – Ele se afastou. — Eu... pensei que você tomasse remédio.— Você me disse que a primeira vez não engravida lembra? Eu tenho quinze anos Davi, não tenho idade pra tomar essas coisas. – Ele negava copiosamente, enquanto eu me negava a derramar mais uma lágrima.— Eu.. Eu não posso. Tenho um futuro pela frente, minha mãe vai conseguir me colocar na faculdade, eu.... – Ele estava em pânico. – Acho melhor a gente romper o namoro.— Romper o quê? Tem noção do quê está acontecendo? Você fez um filho em mim! – A água havia me ensopado até a alma. — Isso
Dias atuais...James pousou a lata bem devagar no balcão, cada movimento dele era calculado, percebi algo à mais nos olhos dele, mas não quis arriscar. Me servi de um copo de água enquanto a tensão aumentava, ele se mexeu na cadeira, era hora de falar. Me sentei de frente para ele e guardei todas as idiotices que fiz.— Pode começar me falando porquê tive que guardar com tanto sigilo as provas?— Primeiro, você esqueceu tudo em cima da sua mesa, tive que fazer um teatro bem ensaiado. Segundo, são muitas coisas a serem ditas, por hora só posso dizer que o chefe da facção era desconhecido, ninguém tinha idéia de como ele era, mas os papéis que você nem se deu ao trabalho de ler constam o nome dele, não só isso como também o paradeiro deles.O ar mudou, ou não queria entrar no meus pulmões. Agora tudo fazia sentido.— Sei exatamente quem é, só não sei em quem confiar.— Onde eu entro nisso tudo. – Me dobrei em cima da mesa.— Você foi, vamos dizer vigiada todo esse tempo, certamente pen
Benjamin teve que sair em viagem no outro dia, e só depois de uma semana consegui retomar a minha rotina de todos os dias. Ou quase isso, se ele não tivesse ligado para o meu pai ficar comigo na sua ausência.Benjamin foi visitar um clientes antigos da empresa, segundo ele o casal queria fazer o inventário de tudo o que possuíam, passando para o neto mais velho. Só que isso teria que durar três dias, e se não fosse a chuva ele já estaria em casa.Acabei não fazendo caminhada com o James, aliás eu nem o vi mais. O cara parecia ter tomado chá de sumiço.Quanto ao meu pai, a gente nem se via direito, não quer dizer que fiquei todo dia sem alguém. James fez questão de garantir minha segurança, me deixando com um homem a minha disposição.- Então tá. - Olhei para a tela do computador. - Vamos nessa.Abri os arquivos que ela deixou gravado em um pen drive. Uma pasta continha os nomes de clientes poderosos, tanto para drogas como para garotas. Na outra tinha dezena de vídeos. Fiz a pior best
Não sabia ao certo como não chorar na frente dele. James amassou o papel enquanto vazia ligações, era uma coisa louca. Ele se afastava as vezes, mas ficava de lá olhando para mim. Desejei tanto que o Benjamin estivesse comigo que meu celular tocou. Eu sabia que era ele, porque coloquei nossa música pra tocar toda vez que ele ligasse.- Marjorie. Ainda bem. Não consegui falar com você mais cedo.-Desculpa, eu realmente não sei o quê aconteceu.-Estou voltando para casa. Amanhã cedo chego aí, será que pode me buscar?-Com o maior prazer.-Tenho que desligar. Até mais, pequena.Se meu pai tivesse aqui, ele diria que eu estava bancando à safada, enquanto um homem sai o outro me ligando e marcando meio que um encontro. Claro que eu não pensaria no juiz como algo mais íntimo.James guardou o celular no bolso e veio caminhando na minha direção, ele manteve as mãos dentro do casaco preto, e deu um meio sorriso. Alguém do outro lado do lago soltou fogos, a luz colorida atingiu a gente. O so