II

Tempos atuais

- Seis horas da manhã. Seis horas da manhã.

- Merda. - Soquei o despertador falante. - Já vou levantar cacete!

As luzes do quarto acenderam e as cortinas se abriram sozinhas, tinha esquecido que foi eu quem programou tudo, só pra não chegar mais atrasada no escritório. Se minha cama tivesse a opção, teria me derrubado também.

Muita gente ficava boquiaberta quando eu dizia onde consegui emprego, ainda mais exercendo minha profissão recém adquirida. Só não conto que sou obrigada a trabalhar até tarde nos processos e deixar tudo pronto para os mais velhos da empresa. Eu fazia todo o trabalho e eles levavam o crédito. Ou na pior das hipóteses ter que assistir julgamentos só pra anotar todas as artimanhas dos advogados mais caros, e isso me dava calafrios.

Normalmente toda terça de manhã eu tomava café com o meu pai, depois ia trabalhar.

Peguei o celular e digitei uma mensagem rápida;

"9Desculpa pai, não vou poder estar aí hoje, o dia vai estar corrido... As seções começam mais cedo hoje... Beijos. Te amo..."

Se não podia estar com meu pai, pelo menos correr eu podia. Joguei o celular e procurei minha roupa de exercícios.

Quando o vento frio me golpeou pensei, só pensei em voltar correndo e me jogar na cama, esperar o sol frio de Londres sair e esquentar mesmo que minimamente as ruas.

Comecei minha caminhada e liguei o celular, aumentei o volume e desci a rua.

Sempre que podia corria até o parque do condomínio e depois ficava sentada por uns tempos, mas hoje não. Nem tinha corrido três minutos ainda quando notei algo se movendo na minha direção.

Pensei ter visto um filhote de dinossauro correndo até mim. Fechei os olhos e abri de novo, poderia ser a adrenalina me fazendo ver um bicho daquele tamanho, e espumando pela boca, o animal corria na minha direção e se chocou contra mim, de tal forma que pensei ter morrido e voltado a vida em segundos. Fiquei deitada de costas até ouvir passos correndo na minha direção.

- Moça. - continuei onde estava. - Senhorita? Me desculpa, você está bem?

- Hum? - Desgrudei minha cara do chão frio e molhado.

- Me desculpa, sou novo aqui. Ele se soltou de mim e pensei que ele não fosse ficar tão bravo assim e....

- Entendi, entendi mas não precisa falar mais nada. - Limpei as mãos e me levantei aos poucos, cada canto do meu corpo doía. - Só acho que aquilo deveria ficar preso por correntes.

- Aquilo se chama Harry, - Não me importei de olhar para ele, até porque meus cotovelos estavam parecendo um ralador. - Ele não fez porque quis!

- Ainda bem, se não agora você estaria juntando meus restos ao invés de me amolar com a ideia do seu mini dinossauro. - Finalmente acabada a parte mais importante resolvi olhar para o estranho.

O estranho parecia um sei lá, não dava pra comparar com o quê ele parecia, cabelos negros, naturais ou tingidos, vai saber. Os olhos eram azuis. Ao redor dos olhos os cílios eram tão fartos que dava a impressão que ele passava lápis preto, tudo isso era muito pouco para o sorriso, à sim, tipo pegador sabe, aqueles caras que sorriem e fecham um tantinho os olhos, enquanto a boca exprime um sorriso meio torto.

Tentei não me impressionar, mas puta merda o cara era perfeito, ou quase, se não começasse a rir de mim, dar gargalhadas e colocar a mão na barriga.

- O que foi? Acha bonitinho o que o seu bicho fez? Eu poderia ter chamado a polícia para você sabia? E te meter um processo grande. - Confesso que estava fungando pelo nariz. Ele continuou rindo ainda mais alto. - Fica rindo aí, só não estranha quando seu monstro não voltar para casa.

Ele não parava de rir. Eu até poderia rir também, se não fosse o caso de estar toda ralada e moída por dentro, ter meu cabelo cheio de folhas e a tela do meu celular novinho rachada.

Fui mancando até a minha querida casa e bati a porta, não precisei olhar no espelho para saber o motivo de tanta risada. Tinha perdido meu tênis do pé esquerdo, minha calça estava rasgada, e dava pra ver que minha calcinha era rosa, tinha também meu rabo de cavalo torto.

- Miserável. - Tirei o outro tênis e passei direto pro banheiro.

*******

-Bom dia.

- Só se for pra você. - Peguei uma xícara de café e virei de uma vez na boca.

- Nossa. Porque está tão amarga? Caiu da cama hoje?

- Muita graça a sua Benjamim. - Juntei minhas coisas e peguei a chave do carro.

Tá legal que dirigir meia hora com o pé inchado foi horrível, teve horas que eu chorava de raiva, mas cheguei bem. Benjamim como bom amigo, estacionou o carro para mim, aliás ele fazia isso desde os tempos da faculdade. Somos amigos à sete anos, nunca pensamos em namorar, acho que somos o tipo amigo irmão, ninguém entende, nem meu pai. Ele é bonito, do estilo Londrino, alto loiro e olhos verdes, bochechas rosadas e um tanto fortinho. Já rolou um beijo entre a gente, mas foi estranho, desde então nunca mais tentamos.

- Vamos no meu carro. - Ele passou na frente e abriu a porta para eu passar. - Deus me livre entrar num carro com você dirigindo. E além do mais, quero saber o motivo de tanta raiva hoje.

Ainda bem que o elevador era bem na frente da minha sala, não tive que disfarçar muito para ninguém me ver mancando. Como sempre fomos espremidos até o estacionamento e depois disso fomos o caminho todo em silêncio, pra falar a verdade eu não gostava nem um pouco de estacionamento subterrâneo, me dava a impressão de estar sendo observada, e que a qualquer instante alguma coisa pularia na minha frente.

A porta do carro dele ficava aberta, para uma emergência ele dizia. Pulei no banco e me afundei o quanto pôde.

- Vamos nessa dona estressada. - Benjamim apertou minha bochecha. - Assim que o carro passar por aquele segurança você me conta sua novidade e eu te conto a minha.

-Fechado. - Bati na mão dele.

O carro nem cruzou o portão com o segurança e já virei e abri o jogo, contei tudo até depois que entrei em casa, e para minha surpresa ele também riu, não tanto quanto o idiota, mas riu um bocado. Quando acabou notei Benjamim um pouco tenso, só quando chegou no tribunal que ele resolveu abrir o jogo.

- Tenho um encontro hoje. - Ele desligou o carro e me encarou.

-Que bom Ben, sério mesmo. - Peguei no ombro dele. - Mas porque você está inseguro?

- Não foi eu quem marcou. Foi ela.

- Ela quem?

- A Isa, ela.... ela, me encurralou, eu sei que sofri um pouco com ela. - Ele estava aflito.

- Um pouco? Ela te fez sofrer e muito. Aquela garota anda com todo mundo, você não merece isso Ben, não mesmo. - Juntei minhas coisas e abri o carro, mas ele me segurou.

- E se eu não for?

- Ela vai sair espalhando pra todo mundo.

- Mas eu não posso, não sinto nada por ela. - Ele me segurou mais forte.

- Gosta de alguém então?

- Sim.

- Então diz pra ela, fala que você gosta de outra pessoa e pronto. - Me soltei.

- Não estou seguro quanto aos meus sentimentos.- Ele tremia um pouco. - Deixa isso pra lá, já deve ter começado o julgamento, e você tem razão, eu vou dizer tudo para ela, tudo mesmo.

Ainda bem que acabou por aí, ele poderia muito bem dizer coisas que mais tarde iria acabar com a nossa amizade.

Ele era alto, um metro e noventa, fiquei para trás mancando, mas Ben segurou a porta e entramos juntos.

- Puta merda. - Senti minhas pernas endurecer.

- Está no tribunal sabia? Pode ser presa por falar uma coisa dessas. - Ben falou no meu ouvido.

- Ben? Lembra o que falei? - Ele me empurrou até o banco mais próximo.

- Sim. O cara, - Ele parou. - A não, não me diz que é ele.

- Hum. - Confirmei.

Bastou um pequeno movimento meu para afirmar a história e o homem virou na minha direção. Ele arregalou os olhos só por um instante, e daquela distância eu vi uma risadinha se formando no canto da boca dele.

- Ouvir dizer que ele foi transferido para cá, por causa de um julgamento na semana que vem. Dizem que ele é da Irlanda, o juiz mais jovem que tivemos. Acho que o nome dele é James O'Hare. Também falaram na empresa que ele é muito mal educado em pessoa, do tipo  sarcástico ao extremo. Tem certeza que é ele?

- Toda a certeza do mundo. - Ele olhou mais uma vez para mim.

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