DAVINA
O cheiro doce da calda de morango que a vovó fez ainda é forte quando entro na cozinha, apesar de tudo estar limpo e desinfectado. Ela disse que este é um bolo especial, pois faz parte de uma grande encomenda que recebeu, e que o dinheiro será usado para alugar um espaço comercial para abrir sua padaria. Como uma formiga atrás de um doce, sigo meu perfume favorito até rastrear o recipiente de plástico transparente, estampado com o logotipo exclusivo de sua marca. Que eu mesmo fiz no celular, na bancada de mármore que separa a parte do fogão da mesa que usamos para as refeições. Pergunto ao exagerado laço rosa que ela coloca em todos os seus pedidos e leio o nome escrito na cobertura do bolo.
Amber.
A irmã do meio do traficante local. Bem, não qualquer mafioso, o mais assustador que conheço.
Eu sabia que ela estava fazendo aniversário hoje, fui acordada pela queima de fogos que o irmão organizou exclusivamente para a data, mas não sabia que era a vovó quem estava preparando todos os doces e bolo, pensei que o pedido que ela não se cansava de falar era para alguém do seu antigo trabalho, mas faz sentido que seja ela, considerando que o cara é um lunático desconfiado e conhece vovó desde pequeno.
Empurro saliva garganta abaixo, uma tentativa fracassada de me livrar da secura na área. A vovó deveria ter me avisado, ela sabe que sou eu quem entrega os pacotes dela, e que eu odeio subir até a rua principal e conversar com aquela gente.
—Davina?— a voz insegura da minha irmã me faz olhar por cima do ombro e verifico seu rosto com preocupação, desde que ela começou a se envolver com um dos traficantes, Pryia não é mais a mesma e vive com um olhar de medo. Hoje, ela parece mais com a garota que era no passado, com o rosto quase limpo de maquiagem e o cabelo preso no alto da cabeça. Sendo sincera, nós estamos parecidas com jeans colado e blusa sem estampa, apesar de que meu cabelo cai em cascata pelas minhas costas. — O que aconteceu?— Pergunto quando vejo as lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
—Ei— Ela dá um passo mais perto, entrelaçando a mão na minha e beijando as costas dela com uma emoção que finjo não notar. Uma sirene assobia em meu cérebro. Algo está errado. Muito errado.
—De quem são essas malas?— Questiono quando noto duas bolsas grandes no canto da porta que dá acesso à cozinha. Ela soluça e começa a chorar. —Pryia? —Eu chamo quando ela me abraça.
—Estou indo embora, Davina. Este lugar não é para mim.— Eu movo o corpo dela para longe do meu, alinhando nossos olhos para ter certeza de que o que ela acabou de dizer é verdade, ou estou imaginando alguma coisa.
—O que você quer dizer? Eu agarro seus braços com as pontas dos dedos. Ela balança a cabeça e tenta se afastar. Meus olhos se voltam para as duas malas.— Você não está brincando.
Sussurro.
Ela engasga, consegue se livrar do meu aperto e enxuga as lágrimas.
—A decisão já foi tomada.
—Nós nunca saímos daqui.— Minha voz é baixa, cheia de nossas memórias de infância.
Silêncio.
Olho para o bolo ainda no balcão de mármore. Ele parece tão chato agora.
—Nossa mãe, sabe?
Deixo a pergunta escapar e olho nos olhos da minha irmã. Seu olhar contém incerteza, mas não o suficiente para convencê-la a ficar.
—Não.— ela fala.
Sugo o ar para os pulmões, buscando equilíbrio em uma cadeira próxima.
—Meu apelo para que você fique será em vão, não é?—Penso nos nossos pais, principalmente na nossa mãe, que sempre justificou as ações de Pryia como momentos rebeldes e fugazes da juventude.— Mamãe ficará arrasada.— comento quando ela permanece em silêncio.
—O voo já está marcado.
—Voo? Quer dizer que você vai de avião?
Ela levanta o canto esquerdo do lábio em um sorriso arrogante.
—Sua irmã não é fraca, Davina. Vou deixar esta vida de limitações por um palácio na Itália. A excitação em sua voz me fez pular da cadeira.
—Palácio? Itália?
Minha cabeça começou a doer.
— Conheci uma pessoa no site de namoro e ele mandou uma passagem para visitá-lo na Itália, mas não pretendo voltar. Farei dessa oportunidade minha carta para longe dessa vida medíocre.
Havia tanta raiva em suas palavras que eu simplesmente não conseguia entender. Nossa vida não era perfeita, mas nunca faltou nada, principalmente para o preferido da mamãe. Do que ela estava falando?
— Você não pode mudar para outro país sem falar a língua local.— Eu argumentei. — Também não é seguro,Pryia. Como você sabe que esse homem não é um bandido? O tráfico de mulheres é comum entre raparigas como nós. Apontei para a casa da vovó e para nossas roupas, embora sentisse uma pontada de culpa por usar o lugar onde crescemos e nossos pertences para colocar algum juízo na cabeça dela.
—Ele não é um bandido.— Ela defende o cara, cruzando os braços sobre o peito e me lançando um olhar irritado.
Bufo.
Porque ela é tão boa em se meter com o cara errado que provavelmente estou certa.
—Então você já o viu?
Outro momento de silêncio.
—Não, mas eu sei que ele é um bom homem. Minha capacidade de ler as pessoas, me diz isso.
Eu ri.
Ela deveria ser última pessoa a usar esse argumento.
—Seu namorado traficante sabe que você está indo embora?— Eu não sabia o nome do cara, só ouvia o apelido circulando pelo bairro e usava sempre que queria irritá-la. Pelo que parece, ele é como uma sombra e poucos o conhecem pessoalmente. Honestamente, eu não sei como minha irmã o conheceu.
Sua boca se apertou, lábios finos pressionando juntos.
—Ele não é traficante de drogas!— ela gritou e eu revirei os olhos.
—Claro que ele é. Todos na colina dizem que ele é o responsável pela produção de drogas e o braço direito de Blake.
—Eles são amigos.— Ela o defendeu.—Ghost pertence a uma família tradicional de San Diego, sua mãe é juíza e seu pai é um advogado de sucesso.
Abri e fechei a boca de tédio.
—Você não respondeu minha pergunta.
Ela levantou as mãos como se não acreditasse em minhas palavras.
—Claro que ele não sabe. Fantasma nunca permitiria que eu viajasse para encontrar outro homem, talvez ele até tente me matar quando descobrir.— a revelação causou arrepios no meu corpo, sua própria voz uma oitava mais baixa e mais sombria. Ele era tão perigosa assim? Como eu poderia deixá-la ir depois que ela me contou tudo isso? Eu não podia confiar que o cara da Itália fosse diferente daquele Fantasma, o dedo podre dela não me deixava acreditar.
—Por favor, Pryia. Não vá.— Eu implorei, as primeiras lágrimas enchendo meus olhos.
Ela suspirou, mas não fora do lugar.
—Sinto muito, Davina, mas tomei minha decisão e não vou retroceder. Meu relacionamento com Fantasma é tóxico e ele nunca vai revelar para seus pais.
—Você pode encontrar alguém melhor aqui. Um cara rico.
Mais uma vez, ela negou, porém, um pequeno ruído deixou seus lábios.
—Ninguém vai me fazer mudar de ideia, nem mesmo você. Eu mereço uma casa melhor, roupas de grife e estabilidade financeira. Sei que você acredita que pode ter um futuro diferente se estudar, mas acredite, isso não é suficiente. É preciso sorte. A lua não brilha para todos, mas podemos ser inteligentes como ela e roubar um pouquinho desse brilho para nós. Adeus, Davina. Diga à mãe e ao papai que os amo.
As lágrimas já estavam caindo, mas eu não ia chorar, me permiti dar um passo em sua direção enquanto ela pegava as sacolas do chão, então ela olhou por cima do ombro para mim, balançou a cabeça e saiu. Uma parte de mim queria gritar com Pryia, dizer a ela que a escolha dela foi egoísta e que não era justo me deixar sozinha para contar tudo aos nossos pais, mas não adiantou, ela não quis ouvir. Ela nunca ouviu.
A realidade bateu segundos depois.
O aperto no meu peito e o gosto amargo na minha boca eram todas as dicas.
DAVINAPerdi a noção do tempo que passei olhando para a porta, mas já fazia alguns minutos. Muitos minutos.Enxuguei minhas lágrimas, peguei o bolo da Amber e fui até a casa do diabo. O medo que normalmente sinto quando passo por homens armados que guardam o caminho até a casa de Blake não estava lá como sempre, meus sentidos estavam entorpecidos pelo que minha irmã acabara de fazer. Os doces que vovó fez já haviam sido entregues, junto com os cupcakes e salgados, então não precisei fazer mais de uma viagem. Porém, a pessoa que deveria me receber não estava lá e tive que pedir ajuda ao meu amigo de infância.A última pessoa no mundo com quem eu queria conversar agora.—Você estava chorando.— Não era uma pergunta, mas neguei.—Tenho que ir. — disse assim que recebi o resto do dinheiro.—Eu conheço você, Davina— Timmy agarrou meu braço suavemente, mas com força suficiente para me fazer parar e olhar para ele.—Sua impressão.—Murmurei, já arrependido de ter pedido sua ajuda.—Duvido. Éra
GUTEMBERG (Fantasma)GutembergTodo governo tem leis.Todo crime tem um propósito.Toda sociedade tem regras.É pura lógica, estamos tão obcecados com a ideia de liberdade que não vemos o óbvio. Ainda somos os mesmos. Acontece que é muito mais. É fácil fingir que não há controle. As leis do mundo do crime são simples, mas aqui há uma coroa, espinhosa e ensanguentada, um cinto de munição embaixo da cabeça, e cada decisão é minimamente pensada para causar o menor impacto. O que também significa que as ordens do rei devem ser obedecidas.Limpo a garganta, coçando a nuca enquanto Timmy limpa sua pistola. Como se a noite passada nunca tivesse existido.—Você está bem?— ele pergunta com um sorriso provocante nos lábios, feliz o suficiente para me fazer opinar quantas vezes ele já participou de torturas. Muitos devem ser a resposta. Para alguém como Timmy, nascido e criado na pobreza, os episódios de violência surgem naturalmente. Mas não para mim.Tento não parecer que estou prestes a vomit
Gutemberg (Fantasma)Deslizo o ferrolho do portão lentamente, verificando por cima do ombro se alguma luz acendeu desde que tranquei a porta da frente, quando percebo que não, solto um suspiro de alívio e olho para baixo. Encaro meus pés descalços e sujos, então, cenas da noite passada explodem dentro da minha cabeça e o cheiro de sangue me atinge.O sangue está grudado na minha roupa e pele, uma nota clara do que fiz.Na minha mão direita, meu telefone vibra sem parar.Esmago a vontade de atender a ligação e jogo o aparelho fora, ele b**e na parede e cai no chão.Meus pais possuem um lugar importante na sociedade, um lugar herdado da família do meu pai, um lugar que minha mãe nunca vai abrir mão, uma posição que nunca tive a opção de negar. Para toda as pessoas importantes de San Diego, eu sou Gutemberg Ramsey, um promissor advogado com propessões para esportes perigosos, romances rápidos e ativista nato. Para a parte menos favorecida de West City, um lugar que chamamos de Colina, sou
DAVINAA coberta que escolhi hoje cedo, a mesma que venho usando desde os treze anos e acolhi como favorita depois que vovó confessou que costurou sozinha, mal cobre a cama, deixando um terço do colchão amostra. Acontece que, eu me recuso a trocar a coberta e pegar uma nova.Mesmo com a porta do quarto trancada, posso ouvir a discussão dos meus pais, todo dia eles encontram uma razão nova para brigarem, mesmo que o motivo seja algo bobo como deixar a casca da laranja na pia. É besteira, todos nós sabemos que mamãe culpa papai pela partida de Pryia. Mais uma besteira. Minha irmã sempre odiou esse lugar e partiria cedo ou tarde, aconteceu que foi cedo o bastante para deixar mamãe louca.Me jogo de volta na cama, me afogando no meio dos travesseiros alinhados. Minha irmã costumava implicar comigo sobre isso na infância, indicando o quanto eu era estranha por ter tantos travesseiros ao meu redor que não sobrava espaço para mim no colchão.A lembrança me faz olhar para o lado, para sua cama
GUTEMBERG Meus olhos apertam na direção de Timmy e me concentro na tatuagem em seu pescoço, é apenas um número, um oito, mas ele nunca explicou o significado para qualquer um. Nós dois estamos tendo mais uma discussão por causa dela, sua pequena protegida e minha mais nova obsessão. Se ele apenas soubesse o que sei sobre sua queridinha. — Você é quem continua falando dela. — respondo e seu maxilar aperta. Ele está um passo de me bater no rosto, a única coisa que impede é o seu estado debilitado. Eu estava me divertindo com nosso pequeno debate até que ele começou a falar meu outro nome, não o verdadeiro, aquele que ninguém aqui deveria ouvir. — Cala a boca, porra! Não existe Fantasma aqui, apenas Gutemberg. Lembre-se disso, ninguém pode saber sobre minha outra vida. Tenho certeza que ele pode ver que ultrapassou uma linha, mas não haverá pedidos de desculpa. Posso enxergar nos seus olhos que ele fará qualquer coisa para me afastar de Davina, incluindo, me chantagear. Preciso pens
DAVINA Eu não deveria beber. Pelo menos, não deveria beber nada alcoólico antes de ter a idade correta. Acontece que, eu precisava de uma bebida. Muito. A conversa que tive com Timmy três dias atrás no hospital tanto me aterrorizou quanto criou certa esperança, o que é loucura, já que ele me fez prometer ficar longe de Gutemberg Ramsey sob ameaça, sim, Gutemberg Ramsey, eu digo seu nome completo porque ele não está presente, aliás, já repeti seu nome inúmeras vezes desde que descobri e não pretendo parar. Ele também pode ser um Fantasma, considerando que nunca o tinha visto antes daquele dia no hospital e nunca fiquei tão assustada na presença de alguém. Assustada e de quatro. Eu quase sofri um infarto quando ele abriu a porta do quarto e caí de joelhos no chão na posição mais humilhante. Urgh. Inacreditável. Pouso meus olhos nos três pontinhos piscando no celular, Sissy está digitando desde que contei para ela sobre o ex da minha irmã, ter uma vida dupla. Eu não tinha certeza
DAVINAEstou tão imersa na conversa com Sissy que apenas noto a confusão ao meu redor quando já é tarde demais. Minha mãe grita com meu pai, defendendo Pryia e culpando-o, novamente, a novidade caótica é que ele responde com a mesma intensidade. Quase alcanço meus fones de ouvido antes de ela mandá-lo embora de casa aos berros. Num instante, pulo da cama e me apresso até a sala para evitar um desastre maior. Também estou chegando no meu limite com eles, é como se meus pais tivessem sido substituídos por seres de outro planeta. Antes da Priya partir, não me recordo de presenciar brigas entre eles, na verdade, mal se comunicavam além do necessário. Penso que o casamento deles não ia bem e a saída repentina da minha irmã foi o estopim.— O que vocês estão fazendo? Todos os vizinhos vão ouvir!— Fique fora disso, Davina. — meu pai resmungou, parecendo desorientado. Ao se aproximar dele, percebi o motivo. Ele estava bêbado, algo cada vez mais frequente.— Seu pai perdeu todo nosso dinheir
GUTEMBERGPassei o dedo pela página do livro uma última vez, decorando a frase final e refletindo sobre ela um segundo antes de dizer adeus a história.Se alguém me perguntar, eu não curto livros. Uma mentira que inventei e reinventei várias vezes para apagar a memória de uma mãe altruísta e amável que não existe mais.Para os sites de fofoca, sou o herdeiro despojado e aventureiro. Para os membros e irmãos da facção que faço parte, sou a sombra, a lâmina,o Fantasma. A maioria não sabe de onde vim e qual minha real função, mas todos buscam por mim.Mas no meu quarto, eu sou amante de romances contemporâneos. Tudo começou com biografias, depois livros de aventura e mistério, então, de alguma forma, esbarrei nos romances.Descanso a cabeça no travesseiro e resgato meu celular entre os lençóis, assim que o aparelho ilumina, o nome de Meia-noite aparece. Ele quer que eu volte para a Colina e lide com seu novo mascote, Aaron Taylor. Digito um não enorme, porque eu não sou uma m*****a babá