GUTEMBERG (Fantasma)
Todo governo tem suas leis.
É pura lógica: estamos tão obcecados com a ideia de liberdade que não percebemos o óbvio. Ainda somos os mesmos. Acontece que é muito mais complexo. É fácil fingir que não há controle.
As leis do mundo do crime são simples, mas aqui há uma coroa espinhosa e ensanguentada, um cinto de munição debaixo da cabeça, e cada decisão é pensada para causar o menor impacto. Isso significa que as ordens do rei devem ser obedecidas.
Limpo a garganta, coçando a nuca, enquanto Timmy limpa sua pistola, como se a noite passada nunca tivesse existido.
— Você está bem? — ele pergunta, com um sorriso provocante nos lábios, feliz o suficiente para me fazer pensar quantas vezes ele já participou de torturas. Muitos, provavelmente. Para alguém como Timmy, nascido e criado na pobreza, os episódios de violência surgem naturalmente. Mas não para mim.
Tento não parecer que estou prestes a vomitar só de olhar para o sangue espalhado pelo sofá, porque isso me faria parecer fraco. Mas foda-se.
— Essa merda é nojenta. — digo, vendo um dos seguranças se sentar perto da poça de sangue e morder seu sanduíche, sem sequer fazer careta.
— Relaxa, cara. — Timmy diz, e eu semicerro os olhos na direção dele. Ele não tem nem dezoito anos, mas pelas tatuagens e músculos no corpo, poderia ser mais velho que eu.
— Estou bem. — respondo, traçando círculos com os dedos na minha calça jeans. Ele bufa, mas não diz mais nada. E eu agradeço mentalmente.
— O que você vai fazer com a Pryia? — pergunta o cara do sanduíche, ainda sentado perto da poça de sangue.
Eu faço uma careta.
— Não fale o nome dessa vadia. — rosno, cerrando os punhos, pronto para marcar o rosto do desgraçado.
Não me esqueci do trapaceiro desde que descobri a traição e estava indo resolver o problema quando Timmy me ligou, dizendo que o chefe precisava conversar.
Uma noite inteira de tortura! Eu não.
O idiota que decidiu vender a fórmula que criei para os mexicanos sem nossa autorização.
Claro, isso me leva a Pryia.
Todo mundo pensa que Blake comandava a colina, mas ele morreu há menos de dois anos e, desde então, o único na linha de frente é seu irmão mais novo, Huxley, ou como prefere ser chamado, Meia-Noite. O cara tinha dezessete anos quando viu seu irmão ser assassinado e depois teve que enterrá-lo sozinho. Não acredito que naquele momento ele teve a ousadia de ocupar o lugar do irmão, mas foi o que aconteceu.
— Ela foi embora. — Timmy diz, e minha atenção se volta para ele.
— O que você quer dizer? — pergunto, finalmente me sentindo capaz de me levantar sem vomitar.
— Qualquer coisa.
Estalo a língua e encolho os ombros.
— Não parecia nada disso há meio minuto.
Um som baixo e risonho sai da garganta dele.
— Essa boceta realmente mexeu com a sua cabeça, não foi?
A raiva explode nas minhas veias. Primeiro, porque ele está certo. Pryia sempre teve controle sobre mim, mas agora que descobri os chifres que ela preparou especialmente para minha cabeça, estou obcecado.
O cara do sanduíche, que já parece ter terminado sua refeição e quer muito me provocar, bufa e aponta para a porta.
— O quê!? — grito para ele.
— Todo mundo está te chamando de corno.
Abro e fecho a boca, estreitando os olhos na direção da porta.
— Merda!
Timmy começa a rir e caminha até meu lado, dando tapinhas amigáveis no meu ombro.
Vejo tudo vermelho.
— Quem está me chamando assim? — meus olhos não saem da porta por um segundo. A adrenalina de ter presenciado um assassinato pela primeira vez ainda percorre meu corpo.
— Cara... — Timmy começa, mas eu afasto o braço dele e olho para o cara do sanduíche.
— Quem diabos?! QUERO NOMES!
Ele me encara por alguns segundos, surpreso, antes de balançar a cabeça negativamente. Eu o agarro pela camisa e bato meu punho no estômago dele.
Alguém xinga ao fundo, mas estou tão concentrado que não ouço os protestos até que alguém me tira de cima do infeliz.
— Que porra é essa na porra da minha casa?! — piscando algumas vezes, foco no rosto jovem, mas marcado por cicatrizes, de Huxley, ou Meia-Noite. É difícil dissociar o rosto do nome quando você conhece a pessoa há tanto tempo.
— Ele me atacou, chefe! — diz o cara do sanduíche, e eu reviro os olhos. Ele não sabe que Meia-Noite é realmente o chefe, mas pensa que ele é apenas o segundo em comando.
— Fantasma está chateado porque a namorada dele saiu com um sugar daddy e o maluco, aqui. — Ele aponta para o cara do sanduíche.
— Gosta de brincar com fogo. — rosno. Porra! Ela me trocou por um velho? Sério?
— Eu acabei de dizer que todo mundo estava chamando ele de corno.
O cara do sanduíche parece irritado por Timmy não defendê-lo.
— Como eu disse, brincando com fogo. Ninguém chama traficante de corno, cara.
Levanto as sobrancelhas e inclino a cabeça na direção de Timmy.
— Eu já disse que não sou traficante. — falo.
Ele levanta as duas mãos, com uma expressão entediada.
— Só produz.
— Isso é completamente diferente. — eu pisco para ele.
— Cara, se você está tão chateado com os chifres, por que não se vinga? — é o cara do sanduíche falando de novo. Esse cara não para.
Passo a língua entre os lábios secos, percebendo que não sei há quanto tempo não bebo água, o que só me irrita mais. Tenho uma rotina rigorosa, inclusive com a quantidade de água que devo beber por dia.
— Eu adoraria arrastar aquela vadia por quilômetros, pelos cabelos, tirar toda a roupa e humilhá-la na frente da família, mas ela fugiu para outro país, então...
— E a irmã dela? — ele fala, e meus pés travam no caminho até a geladeira.
— Quem? — arqueio uma sobrancelha, mas antes que ele tenha chance de responder, Timmy enfia a arma na boca do infeliz e começa a cuspir ameaças.
— Não fale o nome dela, não olhe para ela, não pense nela, porra!
Justo quando penso que ele vai matar o desgraçado, Timmy relaxa e se vira lentamente para mim, com a arma ainda na mão.
— Davina não tem nada a ver com sua merda com Pryia, Fantasma. Deixe-a fora disso.
Davina.
O nome ecoa em minha mente. Primeiro, eu não sabia que Pryia tinha uma irmã adolescente, e segundo, o que eu faço com essa informação?
Ignorar a descoberta estava se tornando mais difícil, especialmente depois que Timmy praticamente declarou que possuía a garota como um homem das cavernas. Seu erro. Isso só aumentou minha curiosidade.
Esfrego o rosto com a palma da mão e abro a torneira, já se passaram mais de quarenta e oito horas desde que saí de casa, e tenho certeza de que meu celular foi bombardeado com mensagens e ligações da minha irmãzinha. Ela costuma não se importar quando estou fora, provavelmente o oposto disso, mas como recebi tantos sermões de Jimmy, decidi poupar meus ouvidos das reclamações de pai perfeito dele e mandar meu melhor amigo ser babá.
Não de graça.
Mas como ele provou minhas receitas especiais, sou sua fonte particular de suprimento. Claro, nenhum de nós dois fala sobre minha função extracurricular, embora eu suspeite que ele tenha seus próprios segredos.
Tiro o celular do bolso e vou direto para o número de contato dele, acenando quando Meia-Noite passa por mim e acena.
— Você já vai? — ele pergunta, sem olhar para mim, pegando uma maçã da geladeira.
— Eu preciso verificar minha irmã. — justifico, encolhendo os ombros. Normalmente não fico mais de um dia no morro, embora tenha uma casa aqui também.
Ele franze a testa, fazendo uma careta.
— Irmã? — repete.
— Sim, você a conheceu naquela época. — faço uma careta. — Por alguns minutos.
Meia-Noite bufa, mordendo a maçã com raiva.
— Mas pra ela tentando me matar. — ele geme, soltando uma risada.
— Aquela era apenas uma garotinha se defendendo. — explico, embora ele não tenha pedido explicação e, francamente, ele não precisa. Morgana vive em uma bolha cor de diamante e pensou que sua casa havia sido invadida, então ela agiu impulsivamente e bateu a cabeça dele com uma panela? Problema. Fiquei orgulhoso. — Além disso, as pessoas tentam matá-lo todos os dias. — acrescento.
— Qualquer que seja. — diz ele, e o silêncio cai entre nós até que finalmente Vincent murmura do outro lado da linha.
— Que diabos! — pragueja, meio sonolento. — Que horas são? — olho para o relógio em meu pulso e assobio.
— Mais do que hora de acordar, Cinderela.
— Rapunzel. — olho para Meia-Noite.
— Como?
— A princesa certa é Rapunzel, não Cinderela. — falo, o tom quase condescendente.
Ele levanta o dedo médio e rosna meia dúzia de palavrões.
Meu sorriso se alarga.
— Onde você está, afinal? — Vincent retoma minha atenção. — É um dia e uma noite.
Suspiro.
— Houve um imprevisto. — Meia-Noite j**a a maçã meio comida no lixo e abre o armário, pegando uma jarra de leite e enchendo-a com água da torneira. Observo enquanto ele finge que não está prestando atenção na conversa. — Estou a caminho. — fecho a ligação, apoio o ombro na parede e espero ele começar a falar.
— Você ainda mantém essa parte da sua vida em segredo?
Vualá.
— Eu não deveria? — ele olha para mim por um segundo antes de decidir que não vale a pena e voltar a se concentrar na borra de café.
Reviro os olhos.
— O quê? — pergunto.
— Qualquer coisa.
— Cara, preciso encontrar meus pais e falar com minha irmã. Volto mais tarde.
— Eu preciso que você esteja aqui hoje. — diz ele, e eu olho para ele novamente.
— Por quê? — pergunto quando ele fica em silêncio novamente.
— Você saberá quando estiver aqui.
Passo a mão no rosto e aceno com a cabeça, porque sabia que não conseguiria manter os dois lados do meu mundo separados por muito mais tempo, mas achei que teria mais tempo.
Gutemberg (Fantasma) Deslizo o ferrolho do portão lentamente, verificando por cima do ombro se alguma luz acendeu desde que tranquei a porta da frente, quando percebo que não, solto um suspiro de alívio e olho para baixo. Encaro meus pés descalços e sujos, então, cenas da noite passada explodem dentro da minha cabeça e o cheiro de sangue me atinge.O sangue está grudado na minha roupa e pele, uma nota clara do que fiz. Na minha mão direita, meu telefone vibra sem parar. Esmago a vontade de atender a ligação e jogo o aparelho fora, ele b**e na parede e cai no chão.Meus pais possuem um lugar importante na sociedade, um lugar herdado da família do meu pai, um lugar que minha mãe nunca vai abrir mão, uma posição que nunca tive a opção de negar. Para todas as pessoas importantes de San Diego, eu sou Gutemberg Ramsey, um promissor advogado com propensões para esportes perigosos, romances rápidos e ativista nato. Para a parte menos favorecida de West City, um lugar que chamamos de Colina,
DAVINAA coberta que escolhi hoje cedo, a mesma que venho usando desde os treze anos e acolhi como favorita depois que vovó confessou que costurou sozinha, mal cobre a cama, deixando um terço do colchão amostra. Acontece que, eu me recuso a trocar a coberta e pegar uma nova.Mesmo com a porta do quarto trancada, posso ouvir a discussão dos meus pais, todo dia eles encontram uma razão nova para brigarem, mesmo que o motivo seja algo bobo como deixar a casca da laranja na pia. É besteira, todos nós sabemos que mamãe culpa papai pela partida de Pryia. Mais uma besteira. Minha irmã sempre odiou esse lugar e partiria cedo ou tarde, aconteceu que foi cedo o bastante para deixar mamãe louca.Me jogo de volta na cama, me afogando no meio dos travesseiros alinhados. Minha irmã costumava implicar comigo sobre isso na infância, indicando o quanto eu era estranha por ter tantos travesseiros ao meu redor que não sobrava espaço para mim no colchão.A lembrança me faz olhar para o lado, para sua cam
GUTEMBERGMeus olhos apertam na direção de Timmy e me concentro na tatuagem em seu pescoço, é apenas um número, um oito, mas ele nunca explicou o significado para qualquer um. Nós dois estamos tendo mais uma discussão por causa dela, sua pequena protegida e minha mais nova obsessão.Se ele apenas soubesse o que sei sobre sua queridinha.— Você é quem continua falando dela. — respondo e seu maxilar aperta. Ele está um passo de me bater no rosto, a única coisa que impede é o seu estado debilitado.Eu estava me divertindo com nosso pequeno debate até que ele começou a falar meu outro nome, não o verdadeiro, aquele que ninguém aqui deveria ouvir.— Cala a boca, porra! Não existe Fantasma aqui, apenas Gutemberg. Lembre-se disso, ninguém pode saber sobre minha outra vida.Tenho certeza que ele pode ver que ultrapassou uma linha, mas não haverá pedidos de desculpa. Posso enxergar nos seus olhos que ele fará qualquer coisa para me afastar de Davina, incluindo, me chantagear. Preciso pensar em
DAVINA Eu não deveria beber. Pelo menos, não deveria beber nada alcoólico antes de ter a idade correta. Acontece que, eu precisava de uma bebida. Muito. A conversa que tive com Timmy três dias atrás no hospital tanto me aterrorizou quanto criou certa esperança, o que é loucura, já que ele me fez prometer ficar longe de Gutemberg Ramsey sob ameaça, sim, Gutemberg Ramsey, eu digo seu nome completo porque ele não está presente, aliás, já repeti seu nome inúmeras vezes desde que descobri e não pretendo parar. Ele também pode ser um Fantasma, considerando que nunca o tinha visto antes daquele dia no hospital e nunca fiquei tão assustada na presença de alguém. Assustada e de quatro. Eu quase sofri um infarto quando ele abriu a porta do quarto e caí de joelhos no chão na posição mais humilhante. Urgh. Inacreditável. Pouso meus olhos nos três pontinhos piscando no celular, Sissy está digitando desde que contei para ela sobre o ex da minha irmã, ter uma vida dupla. Eu não tinha certeza
DAVINAEstou tão imersa na conversa com Sissy que apenas noto a confusão ao meu redor quando já é tarde demais. Minha mãe grita com meu pai, defendendo Pryia e culpando-o, novamente, a novidade caótica é que ele responde com a mesma intensidade. Quase alcanço meus fones de ouvido antes de ela mandá-lo embora de casa aos berros. Num instante, pulo da cama e me apresso até a sala para evitar um desastre maior. Também estou chegando no meu limite com eles, é como se meus pais tivessem sido substituídos por seres de outro planeta. Antes da Priya partir, não me recordo de presenciar brigas entre eles, na verdade, mal se comunicavam além do necessário. Penso que o casamento deles não ia bem e a saída repentina da minha irmã foi o estopim.— O que vocês estão fazendo? Todos os vizinhos vão ouvir!— Fique fora disso, Davina. — meu pai resmungou, parecendo desorientado. Ao se aproximar dele, percebi o motivo. Ele estava bêbado, algo cada vez mais frequente.— Seu pai perdeu todo nosso dinheir
GUTEMBERGPassei o dedo pela página do livro uma última vez, decorando a frase final e refletindo sobre ela um segundo antes de dizer adeus a história.Se alguém me perguntar, eu não curto livros. Uma mentira que inventei e reinventei várias vezes para apagar a memória de uma mãe altruísta e amável que não existe mais.Para os sites de fofoca, sou o herdeiro despojado e aventureiro. Para os membros e irmãos da facção que faço parte, sou a sombra, a lâmina,o Fantasma. A maioria não sabe de onde vim e qual minha real função, mas todos buscam por mim.Mas no meu quarto, eu sou amante de romances contemporâneos. Tudo começou com biografias, depois livros de aventura e mistério, então, de alguma forma, esbarrei nos romances.Descanso a cabeça no travesseiro e resgato meu celular entre os lençóis, assim que o aparelho ilumina, o nome de Meia-noite aparece. Ele quer que eu volte para a Colina e lide com seu novo mascote, Aaron Taylor. Digito um não enorme, porque eu não sou uma m*****a babá
DAVINAA praça estava deserta. Nem mesmo o som de uma brisa ousava romper o silêncio. As luzes amareladas dos postes projetavam sombras longas e inquietas, distorcendo o contorno dos bancos e das árvores esparsas. Meu coração batia como uma tempestade abafada. Olhei para ele com ódio. Fantasma. Esse apelido me vinha à mente com tanta naturalidade quanto o desprezo que eu sentia. Se Gutemberg tinha sumido com minha irmã, então agora eu sumiria com a paz dele.Me agachei, apertando o caco de vidro que tinha achado no chão mais cedo. Só um golpe no espelho retrovisor... só isso, eu repetia na cabeça. A ideia de destruir alguma coisa dele acendia uma fúria sombria que eu tentava controlar.Mas antes que pudesse agir, ouvi o som familiar da porta de um carro se abrindo. Ele desceu devagar, como quem já esperava por algo. Sua silhueta se destacou contra a luz do poste, alta e tranquila. Ele parecia sempre estar em controle, sempre um passo à frente, como se eu fosse a garota rebelde que ele
DAVINAO ambiente estava escuro e meus olhos demoraram para identificar onde eu estava, apenas com uma leve penumbra vinda da janela aberta, por onde a luz dos relâmpagos iluminava ocasionalmente o espaço, é que identifiquei o quarto de Timmy. A decoração simples, sem muita identidade, tendo apenas um banner na parede de algum filme de terror estranho, é diferente do seu quarto infantil, que era decorado por paredes com corações e desenhos infantis, já que ele dividia o espaço com sua irmã caçula. Olhei para o relógio na mesinha ao lado da cama, percebendo que dormi apenas por quarenta minutos.A camisa que ele me deu estava enrolada na minha cintura, eu também estava usando uma de suas cuecas,uma aquisição que eu mesma me ofereci de uma de suas gavetas. Puxei o tecido macio de sua camisa até o nariz e o cheiro dele me invadiu. Era uma sensação reconfortante, mas também perigosa. Eu me olhei no espelho do quarto por um momento, os cabelos ainda úmidos caindo nos ombros, e suspirei. O b