Ricardo

A Acaia não é um dos melhores países do mundo. Não, eu gostava mesmo era do bom café produzido em Beréia, do arroz branco e de outras delícias que só encontramos bem feito quando pelas mãos de nossos conterrâneos.

Embora quisesse muito voltar à minha nação, e imaginava inúmeras formas de voltar para lá, nunca pensei que fosse com uma ligação de meu pai.

Pela primeira vez na vida eu estava fazendo algo de útil: estudando para não levar bomba no último semestre da faculdade. Estava com a cara nos livros há tantas horas que tinha certeza que meus olhos estavam inchados.

Eu estava querendo apenas uma desculpa para largar o material de estudo e me arrependi de pedir isso aos deuses assim que o pensamento terminou.

O telefone tocou. Jerrilly Djovig ligava para mim.

— Pai, eu não estou na balada — revirei os olhos ao atender o telefone, meu pai só me ligava para dar sermão, geralmente porque estava me divertindo em vez de estar estudando, mas isso geralmente acontecia nos finais de semana.

Ao contrário daquele dia, eram 9 horas da noite de quarta-feira, não que isso importasse para mim, mas até eu entendia que não deveria reprovar ou teria consequências gravíssimas.

— Não imaginei que estivesse, não hoje — respondeu ele com sua frieza habitual, que eu tinha impressão ser reservada especialmente para mim. — Caso contrário, não teria tirado 10 minutos de minha agenda para te ligar.

Revirei novamente os olhos e tive que resistir à vontade de desligar. Os livros estavam mais interessantes.

— Então em que posso ser útil? Se é que posso de alguma forma — perguntei com deboche.

— Sua mãe quer que você volte para Beréia. Ela quer que você se aproxime da...

— Um pouco tarde para um pedido desses, não? — perguntei irritado. — Até porque estou muito bem aqui na Acaia, papai.

— Filho, ela não tem culpa, nunca quis separar vocês. Foram as circunstâncias...

— Sim, as circunstâncias que me deixaram sem uma família. — Eu inspirei fundo para me acalmar. — Eu preciso desligar, tem alguém tocando a campainha.

Embora fosse uma mentira que alguém tivesse tocando a campainha, eu estava mesmo prestes a desligar, mas o escutei dizer antes, e forma rápida e desesperada:

— Passei todos os bens que estavam em meu nome para você. Se não vier por sua mãe, venha ao menos para receber o que é seu por direito.

Ele desligou. Eu hesitei. Pensei em ligar novamente, pedir uma explicação, mas... eu era o novo dono da Djovig Softwares. E se isso aconteceu quando Amanda tinha apenas 15 anos, só podia ser porque meus pais haviam endoidado de vez. Ou pelo menos meu pai havia.

Um calafrio percorreu minha espinha. Eu procurei pela internet, mas não haviam passagens aéreas compradas, não para aquele dia ou no seguinte, ou no seguinte.

Tentei ligar para minha mãe. Ela não atendeu. Mamãe nunca recusava minhas ligações. Nunca, nem mesmo se sua adorada filha estivesse chorando em seu colo ou se seu dedicado marido estivesse ao seu lado, reclamando que eu parecia uma garotinha mimada.

Arrumei uma mala pequena e fui para o aeroporto, peguei o avião da família e fui para casa sem saber o que esperar. Meu pai sempre foi um louco, frio, insensível, mas eu esperava um pouco de bom senso da parte de minha mãe, pelo menos.

Ela era uma mulher incrível e embora eu tenha passado um longo tempo, desde o início de minha adolescência, longe dela, era a mulher da minha vida.

...

Certamente eu esperava qualquer recepção ruim da parte de meu pai, menos a pessoa do advogado e conselheiro da empresa e da família, Augusto Balakas, um velho antipático e arrogante que odiava o que ele chamava de herdeiros, que era uma descrição genérica para quem fosse o próximo na linha de sucessão da sala principal do décimo segundo andar do edifício Hunfers, também conhecido como Djovfg Softwares.

— Sabia que a coisa estava ruim, — falei quando cheguei ao último degrau da escada do avião à guisa de cumprimento —, mas isso é péssimo.

— Muito pior do que imagina, rapaz — ele bateu duas vezes em minhas costas. — Vamos!

Sem alternativas eu o segui. Entramos no carro, Augusto falando do péssimo humor do meu pai nos últimos dias, de como ele havia deixado a empresa e dos desafios que eu precisaria enfrentar para mantê-la.

Ele nunca foi tão cordial comigo, mas bem, eu não era seu chefe até então, apenas o ser que ele se referia como “herdeiro” com muito desdém.

— Esse não é o caminho de minha casa — constatei ao ver o caminho que seguíamos.

— Não, não é.

Só então eu percebi que tudo o que ele havia dito era porque havia algo muito maior acontecendo. Respirei fundo, contei lentamente até 10 e perguntei:

— O que aconteceu?

— Seu pai sofreu um acidente na tarde de ontem. Saiu aparentemente nervoso do escritório depois de uma ligação. Pediu para Brenda falar com sua mãe minutos antes e estava com Regina a caminho do interior quando aconteceu. Eu sinto muito, Ricardo.

— Nenhum sobrevivente? — perguntei, tentando manter a frieza que meu pai tanto me ensinou a ter, segundo ele, chorar significava demostrar fraqueza e dada a responsabilidade que estaria sobre mim dali por diante, mas estava difícil administrar as emoções.

Eu e a droga da minha sensibilidade irritante de uma garotinha de dois anos.

— Ambos chegaram com vida ao hospital. Regina morreu após dar entrada. Seu pai, quando saí, ainda respirava. Sinto informar, mas as chances dele estão abaixo de zero. Terá sorte se chegar e o encontrar com vida. Sinto muito, Ricardo, de verdade, sei como está se sentindo.

Augusto novamente bateu duas vezes em minhas costas e seguimos o restante do caminho calados. Tentei segurar as lágrimas, mas não consegui. Tudo bem que eu tinha problemas com meu velho, mas não era para acabar tudo assim. Eu ainda o amava e amava minha mãe e queria que um dia, ainda que fosse distante, que todos voltássemos a ser uma família, como era no início.

Quando chegamos ao hospital, corri para a recepção, me identifiquei e andei o mais rápido que pude sem correr ou perder a compostura. Entrei no quarto dele, vários fios juntos a seu corpo, seu estado era deplorável. Não consegui conter o soluço de desespero.

— Papai! — chamei em meio a lágrimas. — Me perdoe. Por favor, faço o que o senhor quiser, mas fala comigo.

— Filho — ele abriu os olhos e sua voz estava fraca, se esvaindo.

Fiz menção de arregaçar a manga de minha camisa, soltar o lobo escondido ali e assim tentar, com magia, dar um tempo de vida maior a ele, mas sua mão, embora trêmula e fraca me impediu. Olhei para ele e vi lágrimas brotando de seus olhos, era a primeira vez que vi meu pai chorar e aquilo me quebrou em mil pedacinhos.

— Papai, me perdoa — me ajoelhei em seu leito e beijei sua mão.

— Filho, eu... eu te amo. Não... não... não há nada... que... te... perdoar.

— Papai, você tem que resistir. O que será de mim sem você?

— Sua mãe... ela...

— Não fale, papai, por favor.

— Foi uma cilada. — Vi uma lágrima cair de seu olho, e nela senti toda a emoção que meu velho sentia. — Eu que...quero... ficar...

— Não, papai! Não diga isso, sou seu filho. — Eu apertei sua mão. — Preciso de você. Por favor. Não me abandone agora, por favor!

— Procure... a garota. Cuide de...dela com a su-sua vida. O jogo... não acabou.

O bip da máquina soou um som interminável no mesmo instante que a mão dele soltou a minha. Eu me agarrei a ele e chorei. Senti mãos me tirando de lá, vários médicos entrando apressados com uma máquina de choque. Minha visão estava embaçada, meu desespero era evidente, eu parecia uma criança desamparada.

Um médico saiu do quarto. Olhou para mim com olhos cansados e suspirou. Eu sabia o que ia dizer antes mesmo de ele abrir a boca.

— Fizemos tudo o que era possível, mas infelizmente não conseguimos salvá-lo.

Meu mundo desabou. Me senti ser arrastado, algo perfurando meu braço e a inconsciência me levando para longe da dor e do caos que se formava dentro de mim, mas em nenhum momento estava totalmente consciente do que estava acontecendo ao meu redor.

Acordei com Augusto ao meu lado.

Aparentemente ainda não havia amanhecido. Ele mexia no celular e parou ao ver que eu estava acordado.

— Como você está? — perguntou com o cenho franzido. Não dava para perceber se era preocupação ou avaliação para jogar algo muito ruim em cima de mim.

— Péssimo, mas vou sobreviver.

— Sei que pode não ser a hora, mas... — como eu disse, observação para jogar algo muito ruim. — Ele lhe disse algo vital antes de partir?

Eu não me lembrava. Minha cabeça girava e doía, o lobo em meu braço urrava e meu coração se apertava, meu pai havia me deixado. E minha mãe...

— Ele falou sobre minha mãe. Disse que foi uma cilada. — me lembrei de suas palavras.

Augusto cerrou os olhos. Olhou para o celular e me encarou, aguardando.

— Você disse que ele havia pedido a Brenda para ligar para ela e saiu momentos depois, um tanto nervoso. Tem que haver alguma relação com o acidente.

— Os celulares já estão com o responsável de uma equipe. Darei instruções para que ajam o mais rápido possível.

— Preciso ver a garota. — falei por fim, mudando de assunto. — Tem que me tirar daqui.

— O que vai fazer em relação a ela?

— Alguém usou minha mãe como isca para eliminar meu pai. Não acha que farão o mesmo comigo e com ela?

— Talvez. Vou falar com o médico e saímos em seguida. — Ele abriu a porta e parou. — Mas você tem certeza que vai fazer isso? As coisas não precisam continuar como estão. As regras podem ser mudadas como na atualização de um jogo.

— Eu não sei o que fazer, Augusto. Nem sei como ela vai reagir ao me ver, ou como eu vou reagir quando encontrá-la. Estou mais perdido que cego em tiroteio.

— As alianças de seus pais não estavam com eles. Eu sinto muito. Sei que será uma batalha difícil, mas vamos dar um jeito nisso.

Assenti, pensando no que iria fazer. Como eu chegaria em uma garota que nunca me viu e falar que a vida toda dela foi uma mentira, que sua mãe tinha segredos um tanto obscuros com meu pai e que ela precisava vir comigo para seu próprio bem?

Seria praticamente impossível ela acreditar e junto com a dor do luto, me afastaria ainda mais de sua vida, acabando com qualquer chance de conseguir um acordo pacificamente. O lobo rugiu em concordância.

Augusto saiu e eu fiquei deitado ali naquela sala vazia de hospital. Estava completamente sozinho no mundo, a não ser por Amanda. Ela nem ao menos devia saber da morte da mãe ainda e nunca conheceu o pai... Se bem que acho que foi melhor assim. Ela estava completamente sozinha também.

Pensei se daríamos uma boa dupla de solitários. Eu havia recebido todos os bens de meu pai ainda em vida. Era como se ele soubesse que algo estava prestes a acontecer. Será que minha mãe também pressentia? Será que havia deixado tudo preparado para sua partida também?

Eu precisava ver a garota. Honrar o pedido de minha mãe de me aproximar dela e o comando de meu pai em protegê-la com a minha vida, mesmo que isso custasse caro com o tempo. “Os fins justificam os meios”, minha mãe sempre dizia.

“O jogo tem que continuar”, foram as últimas palavras de meu pai, e eu não abandonaria o seu legado. Descobriria quem estava por trás de toda aquela tragédia, e os culpados iriam pagar caro por todo o meu sofrimento.

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