Eu travei e olhei para o rumo do barulho. Com toda a agitação, nos esquecemos da mídia. As imagens do acidente estavam escancaradas e repórteres comentavam o tempo inteiro sobre o assunto.
— Droga! — resmungou Augusto e saiu com o celular na mão, provavelmente para fazer ligações e calar as fofocas e insinuações, pois prejudicariam a investigação tanta desinformação andando por aí.Deixei que ele cuidasse do assunto. Meu único dever ali seria convencer Amanda a vir comigo. O resto poderia ficar para depois.— Ah, querida. Eu sinto muito — a mulher pegou em sua mão e a sentou no sofá, depois pegou o controle da televisão e desligou o aparelho.— Vão me levar para um abrigo? — perguntou ela, com receio, olhando para mim.— Não — falei no calor da emoção. — Você vem comigo.Rita me olhou irritada e ia falar dos direitos de Amanda em decidir e blábláblá, mas a garota foi mais rápida.— E quem é você?Ela não me reconheceu, isso poderia ser bom. Pensei que em algum lugar no seu íntimo, ela se recusaria a ficar perto de mim, como um instinto de sobrevivência, mas não entendo como funciona a biologia dos humanos, muito menos a dos feiticeiros e agradeci por ela não ter me associado a um assassino, ainda.— Este é Ricardo Djovig, filho e herdeiro de Jerrilly Djovig — Rita falou quando eu me demorei demais a falar.Amanda me encarou e assentiu.— Sinto muito por sua perda, senhor Djovig.— Nós dois tivemos grandes perdas essa noite — respondi mais frio do que pretendia.“É dessa forma que quer conquistá-la? Parabéns, gênio, está no caminho certo”, minha parte racional disse para mim, me fazendo arrepender imediatamente.— Devo concordar — ela falou dando de ombros como se aquela fosse uma conversa casual, nem ao menos parecia uma filha tomada pelo luto da mãe, mas eu sabia que aquela era só uma casca.Rita deu um pigarro e Augusto chegou bem no momento. A mulher o apresentou como advogado da empresa e do meu pai e Amanda o olhou como se fosse uma barata.Me senti menos ofendido com isso e poderia até rir se não tivesse tão cansado e aquela mulher não tivesse tirado todo o meu humor, que já era pouco.— Bem, Amanda — ela continuou como se tivesse sido interrompida de propósito —, estamos aqui porque sabemos que você não tem nenhum parente que possa cuidar de você...Dei um grunhido involuntário junto com o lobo. Aquela mulher estava tentando acabar com qualquer chance que eu esperava ter em conseguir convencer a garota. Como assim Amanda não tinha ninguém para cuidar dela? E eu estava fazendo o que ali?“Foco, Ricardo. Conforto e segurança. Foco! Não faça nada que vá se arrepender depois.”— No entanto — a cortei —, sua mãe era alguém muito especial para mim. — Amanda me olhou com interesse e meu coração se apertou. — Como eu disse, te ofereço a minha casa. Venha comigo, não precisa ficar em um abrigo no qual irá demorar ou mesmo não irá se adaptar.Rita me fuzilou com os olhos. Augusto me observou e eu não soube dizer se era aprovação ou reprovação o que ele demostrou. Pensei em tirar os óculos escuros, criar um contato visual direto para lhe passar mais confiança, mas Amanda reagiu antes disso.— Você conheceu mesmo a minha mãe?— Ela trabalhava com meu pai desde muito tempo antes de mim e você nascermos. Eu... — senti minha voz falhar. — Eu gostava muito dela.— Querida, não se sinta pressionada — Rita pegou em sua mão —, mas entenda que você não pode ficar aqui, morando sozinha, mesmo com a herança de sua mãe, por mais valiosa que seja.— Posso contratar tutores — replicou Amanda. — Pela lei, posso ser emancipada em menos de um ano.Surpresa brilhou nos olhos de Rita, embora eu não estivesse nem um pouco admirado, Amanda era uma garota muito esperta e foi instruída por Regina e Jerrilly pessoalmente. A mulher ia responder, mas passei à sua frente com as palavras.— Também pode vir comigo e deixar sua herança intocada. Lhe darei tudo o que precisa, Amanda. Não será fácil judicialmente conseguir o que quer, mesmo sendo quem. Não sem um testamento.— Também podemos fornecer estudo de qualidade — Rita falou — embora o conforto não seja a mesma coisa. Como o senhor Djovig disse, um processo judicial como esse demoraria muito e de toda forma, você deveria ter um tutor legal para isso.— Então é isso? — ela perguntou na defensiva. — Devo escolher em ir com você ou com ele?“Muito obrigado pela consideração, Amanda.”— Você pelo menos tem a dádiva de escolher — Rita respondeu.Amanda andou alguns passos, refletindo. Olhou para mim e depois para Rita. Imaginei se estava visualizando os dois caminhos que a vida poderia lhe oferecer. Ela foi até o pé da escada, colocou a mão no corrimão e me perguntou:— Jura me dar a emancipação daqui a nove meses?— Eu juro — respondi a ela, ainda assustado e impressionado que tudo estivesse no caminho certo.Foi tudo o que foi preciso para que em silêncio ela subisse as escadas, alegando fazer uma mala, então eu pude respirar aliviado. Augusto, em um gesto de aprovação e orgulho, bateu em minhas costas duas vezes. Rita se levantou e observando a sala se voltou a mim, dizendo:— Ela é uma garota de sorte.— Você não parecia estar muito inclinada a me ajudar — falei com a frieza que vi meu pai falar quando queria mostrar que estava muito decepcionado ou revoltado com algo.— Meu trabalho é apresentar os fatos e deixar que os órfãos decidam, não me inclinar a ajudar ou prejudicar ninguém — Rita respondeu sem se intimidar.— Essa é uma batalha ganha, senhora Ecker — falou Augusto. — O pedido definitivo já foi feito, não há mais nada que se fazer.A mulher não respondeu.Eu me levantei. Olhei para os móveis, para os quadros de Amanda com a mãe, outros só dela, outros apenas da mulher mais velha. Aquela era uma casa cheia de quadros.Então eu percebi que embora minha mãe estivesse viva até um dia antes, eu a havia perdido treze anos atrás. Não pude deixar de derramar uma lágrima ao ver a alegria que morava naquela casa estampada naqueles quadros. Senti que o ar começou a me faltar, e que não suportaria ficar mais muito tempo ali, estava começando a ficar sufocado e ter noção de que eu estava dentro daquela casa apertou meu peito de forma que eu queria apenas sair dali.Amanda estava se demorando muito e eu levei isso como um sinal de mal presságio. Me agitei, e quando ela apareceu um minuto depois de meu estado de espírito se recuperar de seu estado deplorável, foi apenas para perguntar:— Qual abrigo é a minha segunda opção?— O quê? — perguntei desconfiado. Algo não estava certo.— Não há segunda opção, menina. — Augusto vociferou.— Ah, querida — a mulher novamente se aproximou novamente da garota e pegou em sua mão, puxando-a para se sentar. — Um orfanato não é lugar para uma menina como você estar. Lá as pessoas são cruéis e o bullyng é muito grande.— Vou para o orfanato, sou eu quem decido, não? — Amanda ergueu a sobrancelha e encarou Rita como se a mulher não passasse de uma pessoa insignificante que estava ali para acatar ordens. — Até onde sei, estão aqui para isso, para que eu decida. Podemos fazer isso de forma pacífica ou um advogado pode fazer, vocês decidem, de qualquer forma, não me importo de entrar em uma briga na justiça.Rita pela primeira vez ficou desconfortável. Amanda era uma garota de opnião forte, eu precisava admitir, mas isso não queria dizer que eu aceitasse sua decisão.— Não. — Tirei os óculos quando falei essa palavra.Amanda me encarou, provavelmente esperando alguma explicação, mas eu não tive um argumento sequer.— O senhor Djovig já entrou na justiça para conseguir sua guarda definitiva, garota — o homem falou com arrogância, o que eu tive certeza que não ajudou. — Mesmo que vá para um orfanato hoje, no máximo em duas semanas terá que se mudar.— Eu não vou para uma casa onde comparam minha mãe a uma prostituta! Conheço os meus direitos e sem eu querer, juiz nenhum dará a minha guarda a esse senhor.— Do que você está falando? — perguntei ainda tentando entender o que foi que aconteceu.— Do jornal Bagsie. Vou processar todo mundo por causa dessa calúnia — Amanda estendeu o celular, ainda tão calma quanto antes, embora eu pudesse ver a fúria em seus olhos azuis.Peguei o aparelho e então compreendi. Chamei Augusto, que ao ver o que aconteceu, me lançou um olhar de “causa perdida” e então sem alternativas, o acompanhei sem falar mais nenhuma palavra. Eu não estava abandonando a guerra, mas aquele era um caso que eu deveria resolver antes de ir atrás de Amanda novamente.Minha vida tinha ficado de ponta cabeça. Eu não sabia mais quem era ou o que iria fazer... Não tinha mais nada e nem ninguém, até aquela mulher bater à minha porta e o filho de Jerrilly Djovig me fazer uma proposta.No começo estranhei, é claro. Não vi um motivo aparente para Ricardo Djovig, o herdeiro e filho intocável de Jerrilly vir atrás de mim. No entanto, ficar com ele seria melhor que um orfanato. Tudo o que só precisava ser uma boa aluna, me manter longe dele o maior tempo possível para não atrair sua atenção a mim durante nove meses.Então eu seria livre.Voltaria para casa, investiria em alguma empresa até terminar o ensino médio e entraria na mesma como acionista depois disso... bem longe da Djovig Softwares de preferência.Não seria tão difícil assim, não fosse eu estar com a mala arrumada e ir ao quarto de minha mãe pegar a caixa que ela deixou ali com alguma razão, como se soubesse que algo iria acontecer. Quando coloquei a mão no objeto, meu telefone começou a tocar. E
Quando o choque passou, uma raiva súbita me alcançou. Tantos anos se dedicando à empresa e era assim que ela terminava? Como a vadia do chefe? Nem minha mãe, nem Jerrilly mereciam isso.Me levantei decidida e desci as escadas. Quando cheguei na base, apenas informei ao herdeiro Djovig que iria ao abrigo. Não sabia se ele estava ciente das notícias, mas aquele print me fez ver que eu estava seguindo o mesmo caminho de minha mãe e eu definitivamente não queria isso para minha vida.Vi o empresário filho e o advogado tentarem argumentar sobre não estar em minhas mãos decidir, mas a minha raiva era cega, e com fundamentos, minhas fotos nos quadros concordando comigo. Eu não iria discutir com eles aquele assunto. Ricardo ainda tentava entender, então lhe mostrei o motivo de minha raiva, entregando a ele o meu celular, ato no qual me arrependi na hora. Fiquei com medo de que não me devolvesse, um medo bobo e irracional, dadas as circunstâncias, mas ele me devolveu e sem falar uma palavra,
Embora tenha recebido todos os bens que estavam em nome de meu pai, a única coisa que recebi de minha mãe foi uma minúscula caixa com uma chave dentro. Justo, mas pensei que eu teria o direito pelo menos de algo que fosse um pouco mais sentimental para ela. O lobo uivou em concordância.Era natural que deixasse toda a sua fortuna – e não era pouca – para a filha mais nova, que por sinal, não queria nem saber de mim, ainda que eu fosse sua única família. Justo também, nunca fiz parte da vida dela de verdade e não passava de um estranho, mas isso não quer dizer que eu concordava, era minha responsabilidade protegê-la agora que eu era sua única família.Dadas as condições, apenas me preparei para receber a minha parte na empresa e fui ao enterro de meu pai. Teria que escolher entre esse e o enterro de minha mãe, e como eu não queria incomodar mais, fiquei ao lado do falecido.Mandei um carro para Amanda e deixei tudo providenciado para o sepultamento de nossos pais – ou melhor, do meu p
Era manhã de sexta-feira, eu já havia deixado o dia inteiro planejado. Nada de empresa, nem de ligações profissionais. Na verdade, o único que poderia me encontrar era o karma do Augusto, que no fim das contas, não era tão ruim quanto aparentava. Era um pé no saco, mas útil. Não foi à toa que permaneceu sendo o braço direito de meu pai – e ocasionalmente de minha mãe – por tantos anos e agora continuava sua jornada me acompanhando. Liguei para o orfanato no dia anterior, pedindo a autorização para sair com Amanda, e a diretora, já ciente do caso, apenas me disse que dependeria mais da jovem do que dela mesmo. E era por esse motivo que eu me demorava no carro, as chaves pendendo do chaveiro pendurado em meu dedo, agarrado ao volante, enquanto eu esperava que o comprimido tomado fizesse algum efeito em minha ansiedade e me impedisse de fazer besteira.“Fazer besteira é seu dom natural, Ricardo. Apenas tente não ser um completo idiota.”Meus pensamentos mais atrapalhavam do que ajudavam
— Oh, isso realmente é animador — esbocei um sorriso.— Estou bem, obrigada — ela enfim respondeu a minha pergunta. — Venha comigo.— Não há de que agradecer — falei enquanto a acompanhava. — Nunca vou deixar que a insultem em minha frente. Sei que ela nunca foi amante do... meu pai. Você também não deveria acreditar nas mentiras que a mídia cria para ganhar audiência. — Não pode me culpar, você faria o mesmo no meu lugar.— Eu já fiz, afinal foi da minha família que falaram — Amanda arqueou uma sobrancelha diante da afirmação. — Quando eu nasci, sua mãe já trabalhava com o meu pai, então eu a considero da mesma forma que ele a considerou — expliquei.Amanda ponderou minhas palavras por um tempo. Ela sabia que tinha muitos anos que a mãe trabalhava na empresa, mas creio que não imaginava que fosse tanto tempo assim.“Se ela soubesse dos segredos que a mãe escondia, talvez começasse a ficar preocupada agora.”— E a sua mãe? — Amanda perguntou tentando trocar o assunto.— Ela saiu de c
Amanda ficou por um tempo calada, pensativa enquanto se dirigia à última cama. — Esse é o meu canto. Como pode ver, nada muito luxuoso, senhor empresário. Sente-se.Eu me sentei. A cama não era dura, mas também não era das mais confortáveis. O quarto era grande, tinha amplas janelas, mas precisava de uma reforma. Uma que eu sinceramente não estava a fim de custear de forma alguma. E foi essa percepção que fez com que eu começasse a falar novamente.— Pode mudar essa condição aceitando minha oferta.— Gosto de como você é direto. — Ela jogou o paletó para mim, foi até a cômoda e pegou um novo sutiã e uma blusa em uma de suas gavetas. — Como pode ver, não há muita privacidade aqui, então não fique retraído, nem se gabe.E virando de costas, retirou o sutiã, colocou o outro e vestiu a blusa. É claro que não passou nenhuma maldade em minha cabeça, mas ela poderia ao menos ter avisado antes, para não me deixar tão desconcertado.— Você já viu uma mulher nua antes, não é? Está vermelho com
Era um final de tarde estranho, mais ainda do que o normal, porque estava acinzentado como se cinzas de fogo sujassem o ar, ao contrário do arroxeado-marrom que sempre estava presente naquela hora. Eu estava com minha amiga Ghenos na praia à espera de minha mãe, que estava mais de meia hora atrasada. Poderia ter considerado o fato como mal presságio, não fosse o chefe dela, Jerrilly Djovig, que raramente a deixava sair em seu horário normal de trabalho. Ainda assim, algo me dizia que não foi apenas trabalho que havia a atrasado.Eu conhecia o chefe dela o suficiente para ter uma relação de amor e ódio por aquele homem. Amor, porque havia algo nele, desde que eu era bem pequena, que me dizia que ele estava sempre por perto não apenas por causa do trabalho de minha mãe e no quesito figura masculina, era o mais perto de um tio para mim. E ódio porque minha amada mãe era uma profissional excelente, tudo o que eu havia aprendido no mundo da tecnologia, eu devia a ela, e mesmo assim pref
A Acaia não é um dos melhores países do mundo. Não, eu gostava mesmo era do bom café produzido em Beréia, do arroz branco e de outras delícias que só encontramos bem feito quando pelas mãos de nossos conterrâneos.Embora quisesse muito voltar à minha nação, e imaginava inúmeras formas de voltar para lá, nunca pensei que fosse com uma ligação de meu pai.Pela primeira vez na vida eu estava fazendo algo de útil: estudando para não levar bomba no último semestre da faculdade. Estava com a cara nos livros há tantas horas que tinha certeza que meus olhos estavam inchados. Eu estava querendo apenas uma desculpa para largar o material de estudo e me arrependi de pedir isso aos deuses assim que o pensamento terminou.O telefone tocou. Jerrilly Djovig ligava para mim. — Pai, eu não estou na balada — revirei os olhos ao atender o telefone, meu pai só me ligava para dar sermão, geralmente porque estava me divertindo em vez de estar estudando, mas isso geralmente acontecia nos finais de semana.