Herança maldita: o lobo e a feiticeira
Herança maldita: o lobo e a feiticeira
Por: Ana maitê
Amanda

Era um final de tarde estranho, mais ainda do que o normal, porque estava acinzentado como se cinzas de fogo sujassem o ar, ao contrário do arroxeado-marrom que sempre estava presente naquela hora.

Eu estava com minha amiga Ghenos na praia à espera de minha mãe, que estava mais de meia hora atrasada. Poderia ter considerado o fato como mal presságio, não fosse o chefe dela, Jerrilly Djovig, que raramente a deixava sair em seu horário normal de trabalho. Ainda assim, algo me dizia que não foi apenas trabalho que havia a atrasado.

Eu conhecia o chefe dela o suficiente para ter uma relação de amor e ódio por aquele homem.

Amor, porque havia algo nele, desde que eu era bem pequena, que me dizia que ele estava sempre por perto não apenas por causa do trabalho de minha mãe e no quesito figura masculina, era o mais perto de um tio para mim.

E ódio porque minha amada mãe era uma profissional excelente, tudo o que eu havia aprendido no mundo da tecnologia, eu devia a ela, e mesmo assim preferia continuar trabalhando para aquele homem e raramente chegava para o jantar.

Eu insisti a ela que poderia trabalhar para outra empresa, e cada vez que ela recebia uma proposta – certa vez recebendo o dobro de seu atual salário – recusava, dizendo que sua vida estava ligada à Djovig Softwares e que um dia eu reconheceria todo o trabalho e esforço dela, que estava fazendo tudo aquilo por mim e pelo meu futuro.

Eu simplesmente não conseguia entender o significado de suas palavras, por mais que tentasse. E mesmo assim, já com 15 anos, simplesmente esperava para ver quando minha vida, com uma mãe carinhosa e superprotetora, mas ausente, mudaria.

Eu amava a minha mãe, ela era a única família que eu tinha. Ela também era filha única, filha de mãe solteira, que deu tudo o que tinha para que ela conseguisse estudar e ir à faculdade e conseguir um emprego digno. Não conheci a minha avó, mas acredito que deve ter sido uma grande mulher.

Voltando àquele final de tarde, eu já havia ligado três vezes para ela, mandado 15 mensagens e ligado duas vezes no escritório. A atendente me garantiu nas duas vezes que ela havia saído há mais e duas horas e não havia deixado recado.

Decidi ligar então diretamente para o senhor Djovig. Ele não atendeu e por algum motivo eu não gostei nada, já que nunca, jamais recusava uma ligação minha, ainda que estivesse na mais importante das reuniões.

Então, para não prejudicar minha mãe em seu local de trabalho, pedi a Ghenos que ligasse para o escritório, dessa vez procurando por ele. Não era nada comum que eu fizesse isso, mas eu sentia que precisava.

— Boa tarde — disse ela ainda nervosa —, gostaria de falar com o senhor Jerrilly Djovig. Sou Ghenos Archer... Tudo bem... Não, não, volto a ligar. Obrigada.

— O que aconteceu? — perguntei apreensiva.

— Ele não está na empresa. Saiu há mais de duas horas e só volta amanhã. Desculpe, Manda, mas acho melhor pegarmos um ônibus. As linhas de energia vão hibernar em uma hora e não podemos ficar aqui.

Assenti e fomos ao ponto, realmente não era nada bom duas garotas sozinhas num final de tarde na praia. Se os fiscais nos pegassem ali, nossas famílias pagariam uma multa um tanto pesada, coisa que para minha amiga, renderia pelo menos uma semana de castigo.

Eu senti um aperto estranho quando ela contou que o chefe de minha mãe havia saído, foi como se as coisas tentassem se encaixar forçadamente em minha cabeça, mas não soubessem como. Tentei ligar para minha mãe novamente e como não atendeu, tentei ligar para Jerrilly novamente. Não obtive nenhum resultado, o que me deixou cada vez mais apreensiva.

Pegamos o ônibus e fomos para casa. Ghenos morava perto de mim, então me acompanhou e continuou descendo a rua quando me preparei para entrar.

Peguei a chave dentro de minha bolsa, mas um frio me percorreu na espinha e o molho caiu de minhas mãos, que por algum motivo inconsciente, tremiam. Afastando o pânico repentino, enfiei a mesma na fechadura digital e fui correndo para meu quarto, o abri e fui até uma gaveta na escrivaninha e tirei de lá um vidrinho com comprimidos para ansiedade. Tomei um.

Respirando fundo, levantei a cabeça e me olhei no espelho. Meus olhos azuis se destacavam por seus filetes dourados e tinham uma beleza única. Eu não gostava do meu cabelo, porque para mim parecia cor de sujeira, mas minha mãe dizia que isso eu havia puxado ao meu pai.

Eu nunca tinha visto ninguém com aquele tom estranho de cabelo, não tão igual o meu, que era de um castanho cor de barro, tão estranho que dependendo da iluminação parecia tijolo, mas um pouco com mais aparência de sujo. Era por esse motivo que eu o mantinha sempre amarrado.

Minha boca estava ressecada pelo sal do mar, e parecia naquele momento que eu estava definhando aos poucos, sem entender bem o motivo. Por um momento achei que minha imagem houvesse piscado para mim de forma estranha, ainda que eu olhasse fixamente para ela. Recuei. Já estava bem nervosa para ter minhas paranoias habituais me perturbando.

Embora o pânico estivesse se dissipando, aquela sensação ruim não passava. Fui à cozinha, abri a geladeira, enchi um copo com água gelada e tomei. Fui ao quarto de minha mãe., tudo estava da mesma forma, o guarda-roupas impecavelmente organizado, a cama arrumada, a escrivaninha...

A escrivaninha estava vazia naquela manhã. E naquele momento havia um único objeto sobre ela. Uma caixa.

Fui até o objeto, que estava trancado com um pequeno cadeado codificado. A chave não estava lá. Eu tinha muito respeito por minha mãe e não bisbilhotaria suas coisas. Me senti mal por estar ali.

Voltei para o meu quarto, tomei um banho. Vesti um moletom surrado e preparei uma macarronada para o jantar, mas ela não apareceu. Eu também não comi. Pensei em ligar a televisão, mas a sensação de pânico ameaçava a voltar novamente. Eu desisti.

Eu não saí da sala. Adormeci ali à sua espera, acordando assustada diversas vezes, até que meu sono se foi de vez.

3 horas da manhã e ela ainda não retornara minhas ligações ou mensagens. Nem sequer havia visualizado nenhuma delas.

Resolvi ligar a televisão. Algum filme idiota passava e não conseguiu prender a minha atenção. Passei de um canal a outro e só parei quando meu telefone tocou uma notificação.

A bateria estava quase chegando ao fim. Subi para meu quarto procurando o carregador. Quando enfim o encontrei, decidi não descer. Se minha mãe entrasse em contato, eu queria estar por perto.

O dia amanheceu. Fui ao banheiro, escovei os dentes e lavei o rosto. Não me troquei, não iria à escola enquanto ela não voltasse. Tirei o celular do carregador, coloquei o aparelho no bolso e desci. Eu nem sequer me lembrava que havia deixado a televisão ligada.

Vi a imagem antes de ouvir do que se tratava. Era um monte de ferragens retorcidas do que um dia havia sido um carro. Um acidente horrível.

A sensação de pânico voltou e eu quis correr, mas me obriguei a continuar seguindo em frente, meu coração quase saindo pela boca. Com as mãos trêmulas, agarrei o controle e aumentei o volume.

— O acidente ocorreu na tarde de ontem e ao que tudo indica foi uma falha na mecânica... — a repórter falava, mas meus olhos se fixaram na imagem e na legenda abaixo.

“Empresário e assistente morrem em acidente na rodovia 341”

Ali estava a explicação de porquê mesmo que minha mãe houvesse saído cedo do trabalho, não havia voltado.

E ela não voltaria.

Ela estava morta.

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