Era um final de tarde estranho, mais ainda do que o normal, porque estava acinzentado como se cinzas de fogo sujassem o ar, ao contrário do arroxeado-marrom que sempre estava presente naquela hora.
Eu estava com minha amiga Ghenos na praia à espera de minha mãe, que estava mais de meia hora atrasada. Poderia ter considerado o fato como mal presságio, não fosse o chefe dela, Jerrilly Djovig, que raramente a deixava sair em seu horário normal de trabalho. Ainda assim, algo me dizia que não foi apenas trabalho que havia a atrasado.Eu conhecia o chefe dela o suficiente para ter uma relação de amor e ódio por aquele homem. Amor, porque havia algo nele, desde que eu era bem pequena, que me dizia que ele estava sempre por perto não apenas por causa do trabalho de minha mãe e no quesito figura masculina, era o mais perto de um tio para mim. E ódio porque minha amada mãe era uma profissional excelente, tudo o que eu havia aprendido no mundo da tecnologia, eu devia a ela, e mesmo assim preferia continuar trabalhando para aquele homem e raramente chegava para o jantar.Eu insisti a ela que poderia trabalhar para outra empresa, e cada vez que ela recebia uma proposta – certa vez recebendo o dobro de seu atual salário – recusava, dizendo que sua vida estava ligada à Djovig Softwares e que um dia eu reconheceria todo o trabalho e esforço dela, que estava fazendo tudo aquilo por mim e pelo meu futuro.Eu simplesmente não conseguia entender o significado de suas palavras, por mais que tentasse. E mesmo assim, já com 15 anos, simplesmente esperava para ver quando minha vida, com uma mãe carinhosa e superprotetora, mas ausente, mudaria.Eu amava a minha mãe, ela era a única família que eu tinha. Ela também era filha única, filha de mãe solteira, que deu tudo o que tinha para que ela conseguisse estudar e ir à faculdade e conseguir um emprego digno. Não conheci a minha avó, mas acredito que deve ter sido uma grande mulher.Voltando àquele final de tarde, eu já havia ligado três vezes para ela, mandado 15 mensagens e ligado duas vezes no escritório. A atendente me garantiu nas duas vezes que ela havia saído há mais e duas horas e não havia deixado recado.Decidi ligar então diretamente para o senhor Djovig. Ele não atendeu e por algum motivo eu não gostei nada, já que nunca, jamais recusava uma ligação minha, ainda que estivesse na mais importante das reuniões.Então, para não prejudicar minha mãe em seu local de trabalho, pedi a Ghenos que ligasse para o escritório, dessa vez procurando por ele. Não era nada comum que eu fizesse isso, mas eu sentia que precisava.— Boa tarde — disse ela ainda nervosa —, gostaria de falar com o senhor Jerrilly Djovig. Sou Ghenos Archer... Tudo bem... Não, não, volto a ligar. Obrigada.— O que aconteceu? — perguntei apreensiva.— Ele não está na empresa. Saiu há mais de duas horas e só volta amanhã. Desculpe, Manda, mas acho melhor pegarmos um ônibus. As linhas de energia vão hibernar em uma hora e não podemos ficar aqui.Assenti e fomos ao ponto, realmente não era nada bom duas garotas sozinhas num final de tarde na praia. Se os fiscais nos pegassem ali, nossas famílias pagariam uma multa um tanto pesada, coisa que para minha amiga, renderia pelo menos uma semana de castigo. Eu senti um aperto estranho quando ela contou que o chefe de minha mãe havia saído, foi como se as coisas tentassem se encaixar forçadamente em minha cabeça, mas não soubessem como. Tentei ligar para minha mãe novamente e como não atendeu, tentei ligar para Jerrilly novamente. Não obtive nenhum resultado, o que me deixou cada vez mais apreensiva.Pegamos o ônibus e fomos para casa. Ghenos morava perto de mim, então me acompanhou e continuou descendo a rua quando me preparei para entrar.Peguei a chave dentro de minha bolsa, mas um frio me percorreu na espinha e o molho caiu de minhas mãos, que por algum motivo inconsciente, tremiam. Afastando o pânico repentino, enfiei a mesma na fechadura digital e fui correndo para meu quarto, o abri e fui até uma gaveta na escrivaninha e tirei de lá um vidrinho com comprimidos para ansiedade. Tomei um.Respirando fundo, levantei a cabeça e me olhei no espelho. Meus olhos azuis se destacavam por seus filetes dourados e tinham uma beleza única. Eu não gostava do meu cabelo, porque para mim parecia cor de sujeira, mas minha mãe dizia que isso eu havia puxado ao meu pai.Eu nunca tinha visto ninguém com aquele tom estranho de cabelo, não tão igual o meu, que era de um castanho cor de barro, tão estranho que dependendo da iluminação parecia tijolo, mas um pouco com mais aparência de sujo. Era por esse motivo que eu o mantinha sempre amarrado.Minha boca estava ressecada pelo sal do mar, e parecia naquele momento que eu estava definhando aos poucos, sem entender bem o motivo. Por um momento achei que minha imagem houvesse piscado para mim de forma estranha, ainda que eu olhasse fixamente para ela. Recuei. Já estava bem nervosa para ter minhas paranoias habituais me perturbando.Embora o pânico estivesse se dissipando, aquela sensação ruim não passava. Fui à cozinha, abri a geladeira, enchi um copo com água gelada e tomei. Fui ao quarto de minha mãe., tudo estava da mesma forma, o guarda-roupas impecavelmente organizado, a cama arrumada, a escrivaninha...A escrivaninha estava vazia naquela manhã. E naquele momento havia um único objeto sobre ela. Uma caixa.Fui até o objeto, que estava trancado com um pequeno cadeado codificado. A chave não estava lá. Eu tinha muito respeito por minha mãe e não bisbilhotaria suas coisas. Me senti mal por estar ali.Voltei para o meu quarto, tomei um banho. Vesti um moletom surrado e preparei uma macarronada para o jantar, mas ela não apareceu. Eu também não comi. Pensei em ligar a televisão, mas a sensação de pânico ameaçava a voltar novamente. Eu desisti.Eu não saí da sala. Adormeci ali à sua espera, acordando assustada diversas vezes, até que meu sono se foi de vez.3 horas da manhã e ela ainda não retornara minhas ligações ou mensagens. Nem sequer havia visualizado nenhuma delas.Resolvi ligar a televisão. Algum filme idiota passava e não conseguiu prender a minha atenção. Passei de um canal a outro e só parei quando meu telefone tocou uma notificação.A bateria estava quase chegando ao fim. Subi para meu quarto procurando o carregador. Quando enfim o encontrei, decidi não descer. Se minha mãe entrasse em contato, eu queria estar por perto.O dia amanheceu. Fui ao banheiro, escovei os dentes e lavei o rosto. Não me troquei, não iria à escola enquanto ela não voltasse. Tirei o celular do carregador, coloquei o aparelho no bolso e desci. Eu nem sequer me lembrava que havia deixado a televisão ligada.Vi a imagem antes de ouvir do que se tratava. Era um monte de ferragens retorcidas do que um dia havia sido um carro. Um acidente horrível.A sensação de pânico voltou e eu quis correr, mas me obriguei a continuar seguindo em frente, meu coração quase saindo pela boca. Com as mãos trêmulas, agarrei o controle e aumentei o volume.— O acidente ocorreu na tarde de ontem e ao que tudo indica foi uma falha na mecânica... — a repórter falava, mas meus olhos se fixaram na imagem e na legenda abaixo.“Empresário e assistente morrem em acidente na rodovia 341”Ali estava a explicação de porquê mesmo que minha mãe houvesse saído cedo do trabalho, não havia voltado.E ela não voltaria.Ela estava morta.A Acaia não é um dos melhores países do mundo. Não, eu gostava mesmo era do bom café produzido em Beréia, do arroz branco e de outras delícias que só encontramos bem feito quando pelas mãos de nossos conterrâneos.Embora quisesse muito voltar à minha nação, e imaginava inúmeras formas de voltar para lá, nunca pensei que fosse com uma ligação de meu pai.Pela primeira vez na vida eu estava fazendo algo de útil: estudando para não levar bomba no último semestre da faculdade. Estava com a cara nos livros há tantas horas que tinha certeza que meus olhos estavam inchados. Eu estava querendo apenas uma desculpa para largar o material de estudo e me arrependi de pedir isso aos deuses assim que o pensamento terminou.O telefone tocou. Jerrilly Djovig ligava para mim. — Pai, eu não estou na balada — revirei os olhos ao atender o telefone, meu pai só me ligava para dar sermão, geralmente porque estava me divertindo em vez de estar estudando, mas isso geralmente acontecia nos finais de semana.
A assistente social foi ao quarto. Pediu informações sobre Amanda e o seu endereço. Eu não estava disposto a fornecer nenhum dos dois. Augusto entrou, falando sobre minha alta e sobre o que deveríamos fazer, mas parou assim que viu a mulher.— E quem é você? — ele perguntou com sua habitual carranca.— Rita Ecker, assistente social. — Ela lhe esticou a mão e ele a pegou. — Eu estava falando com o senhor Djovig, preciso dos dados e endereço da filha da assistente do seu patrão, mas ele insiste em se recusar a me fornecer.— Meu cliente tem suas razões para fazer isso, senhora. — Ele lhe entregou um envelope. — Jerrilly Djovig e Regina Wentz assinaram um seguro, onde diz que se acontecer qualquer coisa a ela, a custódia da filha, caso menor de idade e de todos os seus bens, ficam com Jerrrilly até que a garota complete 18 anos. Como ele não está disponível, a obrigação fica para seu herdeiro. Ele está agindo de acordo com a lei.A mulher observou os documentos e pareceu não gostar muit
Eu travei e olhei para o rumo do barulho. Com toda a agitação, nos esquecemos da mídia. As imagens do acidente estavam escancaradas e repórteres comentavam o tempo inteiro sobre o assunto.— Droga! — resmungou Augusto e saiu com o celular na mão, provavelmente para fazer ligações e calar as fofocas e insinuações, pois prejudicariam a investigação tanta desinformação andando por aí.Deixei que ele cuidasse do assunto. Meu único dever ali seria convencer Amanda a vir comigo. O resto poderia ficar para depois.— Ah, querida. Eu sinto muito — a mulher pegou em sua mão e a sentou no sofá, depois pegou o controle da televisão e desligou o aparelho.— Vão me levar para um abrigo? — perguntou ela, com receio, olhando para mim.— Não — falei no calor da emoção. — Você vem comigo.Rita me olhou irritada e ia falar dos direitos de Amanda em decidir e blábláblá, mas a garota foi mais rápida.— E quem é você?Ela não me reconheceu, isso poderia ser bom. Pensei que em algum lugar no seu íntimo, ela
Minha vida tinha ficado de ponta cabeça. Eu não sabia mais quem era ou o que iria fazer... Não tinha mais nada e nem ninguém, até aquela mulher bater à minha porta e o filho de Jerrilly Djovig me fazer uma proposta.No começo estranhei, é claro. Não vi um motivo aparente para Ricardo Djovig, o herdeiro e filho intocável de Jerrilly vir atrás de mim. No entanto, ficar com ele seria melhor que um orfanato. Tudo o que só precisava ser uma boa aluna, me manter longe dele o maior tempo possível para não atrair sua atenção a mim durante nove meses.Então eu seria livre.Voltaria para casa, investiria em alguma empresa até terminar o ensino médio e entraria na mesma como acionista depois disso... bem longe da Djovig Softwares de preferência.Não seria tão difícil assim, não fosse eu estar com a mala arrumada e ir ao quarto de minha mãe pegar a caixa que ela deixou ali com alguma razão, como se soubesse que algo iria acontecer. Quando coloquei a mão no objeto, meu telefone começou a tocar. E
Quando o choque passou, uma raiva súbita me alcançou. Tantos anos se dedicando à empresa e era assim que ela terminava? Como a vadia do chefe? Nem minha mãe, nem Jerrilly mereciam isso.Me levantei decidida e desci as escadas. Quando cheguei na base, apenas informei ao herdeiro Djovig que iria ao abrigo. Não sabia se ele estava ciente das notícias, mas aquele print me fez ver que eu estava seguindo o mesmo caminho de minha mãe e eu definitivamente não queria isso para minha vida.Vi o empresário filho e o advogado tentarem argumentar sobre não estar em minhas mãos decidir, mas a minha raiva era cega, e com fundamentos, minhas fotos nos quadros concordando comigo. Eu não iria discutir com eles aquele assunto. Ricardo ainda tentava entender, então lhe mostrei o motivo de minha raiva, entregando a ele o meu celular, ato no qual me arrependi na hora. Fiquei com medo de que não me devolvesse, um medo bobo e irracional, dadas as circunstâncias, mas ele me devolveu e sem falar uma palavra,
Embora tenha recebido todos os bens que estavam em nome de meu pai, a única coisa que recebi de minha mãe foi uma minúscula caixa com uma chave dentro. Justo, mas pensei que eu teria o direito pelo menos de algo que fosse um pouco mais sentimental para ela. O lobo uivou em concordância.Era natural que deixasse toda a sua fortuna – e não era pouca – para a filha mais nova, que por sinal, não queria nem saber de mim, ainda que eu fosse sua única família. Justo também, nunca fiz parte da vida dela de verdade e não passava de um estranho, mas isso não quer dizer que eu concordava, era minha responsabilidade protegê-la agora que eu era sua única família.Dadas as condições, apenas me preparei para receber a minha parte na empresa e fui ao enterro de meu pai. Teria que escolher entre esse e o enterro de minha mãe, e como eu não queria incomodar mais, fiquei ao lado do falecido.Mandei um carro para Amanda e deixei tudo providenciado para o sepultamento de nossos pais – ou melhor, do meu p
Era manhã de sexta-feira, eu já havia deixado o dia inteiro planejado. Nada de empresa, nem de ligações profissionais. Na verdade, o único que poderia me encontrar era o karma do Augusto, que no fim das contas, não era tão ruim quanto aparentava. Era um pé no saco, mas útil. Não foi à toa que permaneceu sendo o braço direito de meu pai – e ocasionalmente de minha mãe – por tantos anos e agora continuava sua jornada me acompanhando. Liguei para o orfanato no dia anterior, pedindo a autorização para sair com Amanda, e a diretora, já ciente do caso, apenas me disse que dependeria mais da jovem do que dela mesmo. E era por esse motivo que eu me demorava no carro, as chaves pendendo do chaveiro pendurado em meu dedo, agarrado ao volante, enquanto eu esperava que o comprimido tomado fizesse algum efeito em minha ansiedade e me impedisse de fazer besteira.“Fazer besteira é seu dom natural, Ricardo. Apenas tente não ser um completo idiota.”Meus pensamentos mais atrapalhavam do que ajudavam
— Oh, isso realmente é animador — esbocei um sorriso.— Estou bem, obrigada — ela enfim respondeu a minha pergunta. — Venha comigo.— Não há de que agradecer — falei enquanto a acompanhava. — Nunca vou deixar que a insultem em minha frente. Sei que ela nunca foi amante do... meu pai. Você também não deveria acreditar nas mentiras que a mídia cria para ganhar audiência. — Não pode me culpar, você faria o mesmo no meu lugar.— Eu já fiz, afinal foi da minha família que falaram — Amanda arqueou uma sobrancelha diante da afirmação. — Quando eu nasci, sua mãe já trabalhava com o meu pai, então eu a considero da mesma forma que ele a considerou — expliquei.Amanda ponderou minhas palavras por um tempo. Ela sabia que tinha muitos anos que a mãe trabalhava na empresa, mas creio que não imaginava que fosse tanto tempo assim.“Se ela soubesse dos segredos que a mãe escondia, talvez começasse a ficar preocupada agora.”— E a sua mãe? — Amanda perguntou tentando trocar o assunto.— Ela saiu de c