Capítulo 4

Primeiro dia útil da semana e minha empolgação ia ao encontro do petróleo no subterrâneo, por resultância do período menstrual.

Vestia uniforme escolar preto e branco e arrastava os pés pelo asfalto, perdida nas batidas de músicas aleatórias. Faltavam mais ou menos vinte minutos até a escola e eu estava com disposição zero para fazê-lo em tempo recorde. Enquanto sabotava a sola dos meus sapatos, me perdia nas lembranças da sexta-feira.

Demorou um tempinho até eu perceber que um som de bozina se misturava com as batidas da música. Três passos depois parei, retirei um dos meus fones e me virei, dando logo de cara com o carro azul-escuro.

Ah Deus, Weben Shadrack!

Cada dia parecia retocar sua beleza,  era sempre como se o estivesse a ver pela primeira vez.  Retirou seu braço através da janela do carro, assenou para mim e em seguida fez um gesto que deu a perceber que eu devia entrar no carro. Assim feito, me deparei com um Weben estudante, vestia camisete de uma das melhores faculdades privadas de engenharia da capital.  Seu brinco minúsculo lhe dava um ar mais descolado e seu exalar exausto dava a perceber que o inicio do dia tinha sido cansativo.

— Tudo bem? — sorriu e seguiu pela estrada principal.

— Estou com preguiça e com calor. Fora isso, estou péssima!—soltou um riso e se aproximou de mim, dando rapidamente um beijo no meu pescoço e depois na bochecha.

— Preguiça e calor são as coisas menos péssimas que consegue sentir? — sorriu e manteve seus olhos na estrada.

— Com certeza.

— Segunda-feira! Ninguém nunca está pronto para esse dia.— olhou para mim pelo canto do olho e voltou a olhar para frente — Vou ti deixar na escola.

— Vão me ver, Weben!

— Você não deve explicações a ninguém. Para todo e qualquer caso, eu sou teu irmão mais velho.

Suspirei e coloquei o cinto de segurança. O caminho que devia durar 20 minutos à pé parecia levar muito mais tempo de carro, por conta do clima instalado repentinamente. Como se ele soubesse exactamente doque eu evitava falar e mesmo assim me pressionava por via do silencio.

Limpei a garganta, depositei suavemente minhas mãos minúsculas no meu colo e lentamente virei minha cabeça para encarar aquela escultura atenta à estrada.

— Weben, acho que a retrospectiva pode ser resumida em duas palavras. — engoli o golão de saliva.

— Quais?

— Eu amei. — não tirei os olhos dele enquanto aguardava por sua resposta.

Depois de alguns segundos de silêncio, um sorriso espalhou seus lábios perante minha confissão e meu coração pareceu parar por um minuto, incentivando as palavras do meu subconsciente: "Porque merda eu não continuei calada?"

Bem, não quero soar convencido, mas eu sei. —  a incredibilidade e surpresa fizeram meus lábios formarem um "O", definitivamente não era oque eu esperava ouvir — Mas estás bem? Ou melhor, a dor ainda se faz sentir?

— Não muito. — arrumei meus óculos e me preparei para sair do carro quando ele estacionou — Obrigado por ter me deixado aqui. — ofereci meu sorriso e olhei para seu rosto como se quisesse guardar aquela imagem no álbum mental que eu tinha.

— Não precisa agradecer, boneca. Nos falamos mais logo. — piscou para mim.

Saí e fechei a porta atrás de mim, senti os olhares dos meus colegas—tão discretos quanto o sol—me tirarem a capacidade de dar passos firmes.

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Fim da tarde

Enquanto ouvia Cleyton falar entusiasmado das aulas de timbila que passaria a ter, eu comia minhas pipocas de milho.

Era 20% do seu maior sonho. Para além de timbila², era também apaixonado por flauta e piano, mas seus tios não tinham condições para pagar escola de música para que ele frequentasse.

— Imaginemos, jovens. Eu a tocar em um concerto para milhares de pessoas. — falou colocando sua mão no meu ombro e indicando um horizonte que percebi que devia ser a multidão. 

Porquê não entrar na imaginação?

— Tu a tocares acordes e a colocares purpurina em melodias modestas...

— Acordes de timbila? — Tânia me interrompeu e fez Cleyton rir.

— Falhei, mas oky. Continuando,... — voltei a voz de poetisa — tu usarás dois...ah...paus?...para espancar a madeira com amor de quem teve seu coração roubado por ela; emitirás sons do paraíso adornado, sons de almas alegres e nostálgicas de todos ali presentes; emitirás, por via dela, retorno à vida de antepassados adormecidos, som de culturas dissolvidas em suaves soares de tal instrumento insólito; manipularás batimentos cardíacos e, para finalizar, duas daquelas moças sincronizadas cantarão lindamente, enfeitando o teu tocar destro. — segui seu olhar e ergui minha mão como se visse o mesmo que ele. Multidão num horizonte de nada.

— E vocês voltariam para a terra e notariam que agora poucos pagariam para ir ver um espetáculo cultural. — concluiu Tânia, nos livrando maldosamente de nosso voo imaginário.

Ambos a encaramos e percebemos onde queria chegar. Estava certa, por parte. Pois Cleyton não se importaria em ficar 24 horas assistindo um concerto do Xidiminguana, o problema era que poucos como ele apreciavam redondamente a nossa cultura. A maior parte era como eu que, curtia mais músicas internacionais e o máximo que cantava com frequência era o hino nacional.

 Percebendo oque fez, Tânia soltou um riso junto com um suspiro. Meu amigo roía suas unhas para disfarçar o incômodo que a verdade nas palavras dela causava.

— Mas você podia entrar para alguns grupos de Arte e cultura. Ouvi dizer que alguns deles apresentam seu trabalho no exterior. É graças a pessoas que nem você e graças aos músicas de velha guarda que as raízes da música Moçambicana ainda não foi tirada do nosso solo pela evolução. — Tânia disse e o silêncio tomou conta do ambiente.

Para quebrá-lo desviei do assunto e o incentivei a continuar com seu entusiasmo, sem tirar os pés do chão.

— Vai começar quando?

— Acho que próxima semana, as aulas serão nas manhãs. Dois dias por semana: terças e sextas.

— Ahm, ok!

— Quando aprender a tocar, eu e Evie nos comprometemos a gravar um vídeo teu. — Tânia disse e eu concordei.

 Nessa altura, Cleyton revelava um semblante bem melhor. Quando demos por nós, eram quase 18 horas, então decidimos começar a caminhar para casa.

O calor do dia dava lugar a uma noite fresca de Outubro. O céu estrelado nos remetia a vários pensamentos, dentre os quais o mais comum era nosso desempenho académico, visto que as últimas semanas de aula se faziam próximas. Então o caminho todo de volta para casa foi repleto de conversas e comentários à cerca do ano lectivo.

Enquanto uns se empolgavam com as férias, eu pensava em que desculpa inventaria para sair com Weben.

— Oque vão fazer nas férias?

— Seremos felizes. Bem, tentaremos. — respondeu Tânia antes de enfiar um punhado de pipocas na sua boca.


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Timbila

— plural de mbila, é um instrumento musical de origem xope, povo de provincia de Gaza, sul de Moçambique.

Xidiminguana-

Artista Moçambicano que destacou-se na música por conta de sua forma diferente de tocar guitarra. Com mais de 60 anos, ficou conhecido por contar histórias acompanhado de sua guitarra, para além de criar melodias incríveis. (É inacreditável! Ele fala e faz com que a guitarra responda)

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