MINHA REALIDADE
Morro do Cantagalo, Rj.RAELCresci em um lugar onde a violência batia na minha porta. Não importava a hora, sempre era a mesma coisa. Um assasinato por dívidas de drogas, violência física e sexual contra a mulheres e crianças, e como era rotina, operações todos os dias com quem deveria nos proteger, matando quem viam pela frente sem se importa em saber se era um inocente ou realmente um bandido. E foi assim, desse modo, que a minha mulher morreu junto ao nosso filho que ela esperava, me deixando sozinho com a minha pequena, minha Ritinha.— Papai, quando tu chegar a gente pode ir tomar sorvete? — Rita perguntou enquanto eu penteava seus longos cabelos loiros.— Claro, gatinha. Vamos sim — prendi seu cabelo pra cima — bora, a Lis ta esperando tu lá na casa dela - Falei e ela pulou da cama com um sorriso de orelha a orelha.Sorri.Saí do quarto, arrumei a mochila dela com o lanche e fechei a porta do quintal.Arrumei minha mochila também, peguei meu boné no armador e joguei as chaves de casa no pescoço.— Rita, pega aí uma camisa pro pai — pedi enquanto ajustava meu boné. Coloque-o na cabeça com a aba virada para trás.Peguei minhas havaianas e fui andando pra sala. Coloquei a mochila nas costas e fiquei esperando a Rita sair do quarto.— Aqui papai — esticou uma camisa azul marinho pra mim, peguei a mesma e joguei no ombro.Fechei a janela da sala e fui andando em direção a porta. A Rita já estava lá fora.— Fica aí, vou fechar a porta e a gente já vai — falei pra ela que estava na calçada e a mesma assentiu.Me virei alguns segundos para fechar a porta, mas logo senti a Rita vim pro meu lado e apertar o meu braço.— Qual foi, gatinha? — olhei para ela que olhava assustada pra rua.Levantei o meu olhar e vi o Rico atravessando a rua com o fuzil na bandoleira.— Coe, Ritinha. Teu padrinho é tão feio assim? — Rico falou em um tom brincalhão, mas logo parou de sorrir assim que olhou para mim.O cria era feio mesmo. Mas minha pequena tava com medo mesmo era do fuzil que à três anos atrás foi a ruína da minha família. Na época eu trabalhava e só voltava no fim da noite. A Renata estava grávida do nosso segundo filho, faltava poucos meses pra ele vim conhecer o paizão aqui, mas em uma invasão para pacificar a comunidade o amor da minha vida morreu junto do meu filho, enquanto carregava a Rita nos braços.Uma parte de mim morreu junto com eles naquele dia. Foi doloroso pra caralho, mas tive que seguir em frente. Eu ainda tinha a Rita para cuidar, e eu prometi pra mim mesmo que nunca deixaria ela passar dificuldade.— Pega, Neguinho — tirou o fuzil e entregou pro Neguinho que tinha acabado de chegar alí - Foi mal, princesa - Se desculpou e esticou os braços para ela.A Rita me olhou como se pedisse permissão e eu balancei a cabeça dizendo que sim.— Não faz mais isso — reclamou indo abraçar o Rico.— Faço nada, princesa — prometeu.Ele foi andando com ela no braço e eu segui atrás.— E aí, vai entrar pro movimento quando? — Neguinho perguntou caminhando do meu lado.Neguei com a cabeça.— Essa vida não é pra mim, parceiro — falei — Sou trabalhador e enquanto eu tiver saúde vou tá batalhando pra ter o meu, e tu devia fazer o mesmo — falei e ele riu dando um tapinha nas minhas costas.— Tu que sabe do teu, né não. Eu tô tranquilão — falou ajeitando a bandoleira.Neguei. Continuamos descendo a rua e acionaram o rádio do Neguinho, que logo atendeu o mesmo se afastando um pouco de mim.— Caralho, Rico! Os vermes tão lá na entrada dizendo que ninguém entra e nem saí — Neguinho correu pro lado dele.Porra!Andei até eles e peguei a Rita dos braços do Rico.— Qual foi, Rael? Vai pra onde, caralho? — perguntou.— Tô indo pro trabalho, se eu faltar vou ser demitido — falei alto e continuei andando. Mas, logo senti a mão do Rico no meu ombro.— Com a minha afilhada tu não vai pra lugar nenhum, parceiro — tomou a Rita dos meus braços — Tá doidão? Os cana vão fazer de tudo pra te fichar e pagar de benfeitor da pátria, o herói. E se isso acontecer a Rita vai pra um orfanato, se liga — empurrou meu ombro.Assenti.Tirei a chave de casa do meu pescoço e entreguei a Rita, dando um beijinho em suas mãos.— O pai volta mais tarde, falô? — ela assentiu cabisbaixa.O Rico negou com a cabeça, e foi voltando pra outra rua.O Neguinho me olhou — Vamos, corajoso. Te deixo perto da entrada — disse andando na frente.O acompanhei.Paramos uma rua antes. Eu continuei andando e ele ficou apenas observando.— Encosta, cidadão — um policial me parou, ergui meus braços em forma de rendição e ele puxou minha mochila jogando a mesma no chão. Mandou eu virar de costas e para não piorar a situação, assim fiz. Vi o Neguinho, de longe negar com a cabeça e sair andando.— Aqui, Teixeira! Olha só, maconha pra dar e vender — ouvi um deles dizer com sarcasmo.— São todos uns vagabundos mesmo. Favelado do caralho! — acertou um chute nas minhas pernas, que fez cair de joelhos em espera dos outros golpes.Eu não devia nada.Eu não tinha nada, cara.RAELEles me acusaram, me humilharam e me agrediram sem motivo. E se eu reagisse, seria pior, parcero. Me deixei ser tratado como bicho por aqueles filhos da puta.Aquela manhã foi a mais ralada da minha vida. Horrível, cara. Me esculacharam bonito, e depois me largaram no pé do morro, em uma rua entre o asfalto e a favela. Eu tava todo fodido, braço quebrado e os caralho.Todos que passavam ali faziam pouco-caso e nem me direcionavam o olhar, passavam rente. Papo de não ter amor ao próximo, tá ligado.Me arastei até a calçada de uma casa e caí por lá, o sol tava dando moca, calor tava foda e sem ao menos perceber eu apaguei.RICO- Dindo, o meu papai vai voltar né? - perguntou enquanto rabiscava alguns papéis.Fiquei calado. Eu nem sabia o que dizer. Eu não tinha o que dizer nessa porra.Respirei fundo, passei a mão pelo meu rosto e me sentei no sofá que tinha alí na salinha.Eu tava nervosão, parcero. Se ele rodasse eu não teria condições e nem estrutura pra criar a Ritinha. Maior
RAELAcordei com uma luz forte que tomava todo o quarto, e as paredes brancas deixavam tudo ainda mais claro.Tudo doía, cara. Meu corpo, meu rosto tava inchadasso, conseguia nem abrir os olhos direito e o braço que mesmo quebrado eu sentia menos, agora tá doendo pra caralho.Ouvi uma gritaria alí fora, e logo a porta foi aberta.— Tu é foda em — Sorriso falou e eu virei a cabeça com dificuldade vendo ele me encarar, risonho como sempre.Me apoiei no braço bom e me sentei na cama. Grunhir sentindo minhas costas doerem.— A Rita tá com a Aninha, e o Rico tá vendo um médico aí pra tu — falou, antes mesmo que eu perguntasse.Assenti sentindo um fisgada no pescoço, coloquei rápido a mão alí me desequilibrando e caindo deitado na cama novamente.— Ai caralho! — resmunguei de dor. Respirei fundo olhando pro teto de gesso.— Tá mal em, corajoso — Neguinho entrou no quarto — Só os covardes pegaram você aí, parceiro. Melhor forma é tu largar essa vida de moleque certinho, papo de visão — comen
RICO— Não quero você cuidando de filha de bandido e muito menos de conversinha com esses desviados, tá me ouvindo Ana Luz? — ouvi a mãe dela gritar assim que cheguei na porta da casa da dela.O foda é te julgarem sem nem ao menos te conhecerem, igual a velha tá fazendo agora com o Rael. Tu pode não ser aquilo, mas se anda com alguém que faz tu leva o nome pro resto da vida.— Mãe, eu apenas fiz um favor. Como diz o ditado, faça o bem sem olhar a quem — Aninha respondeu, seu tom de voz parecia cansado. Papo de quem ouvia comentários preconceituosos todos os dias.— Meu papai não é bandido — a Ritinha falou seguida de uma risada abafada da parte da Aninha.— Mostra essa língua de novo pra ver se eu não corto ela fora — ameaçou a minha afilhada e essa foi a minha deixa para bater na porta.Esperei um pouco e logo a Aninha abriu a porta, ela tinha um sorriso doce em seus lábios.— Dindo, a velha falou que ia cortar minha língua fora — a Ritinha veio na minha direção segurando a língua e
1 mês depois.RAELDois dias depois de tudo o que aconteceu recebi uma ligação do dono da padaria dizendo que fui demitido por justa causa. Pelo meu atraso e por não ter tido como justificar os dias de faltas.Minha situação financeira se tornou um poço de dívidas depois daquela covardia que fizeram comigo. Não conseguia trabalho de jeito nenhum.Única coisa que consegui foi vender bala no sinal, e mesmo assim era xingado e humilhado todos os dias.Tava foda sustentar a casa e a minha princesa, e tudo que eu conseguia de comida dava pra ela com a desculpa de que eu comeria depois, mas na verdade eu ficava dias sem comer, só pra não deixar a Rita com fome.Eu vivia pra ela, e por ela. Minha única razão de viver era ela.- Tu não cansa não, Rael?! Ser humilhado todo santo dia pra ganhar uns trocado que não dá nem pra um dia direito. Porra, tá na hora de tu ver um caminho mais fácil aí, na moral mesmo - Neguinho como sempre querendo entrar na minha mente.Passei pela barreira com ele me
RAELA Lis fez um prato pra mim e eu sentei a mesa com a Rita no colo. Comecei a comer e dividir o meu almoço com a minha princesa.— Rita, você já comeu! Deixa o almoço do teu pai, menina — reclamou com ela que fez um bico e cruzou os braços saindo do meu colo.— Você é chata, a Clarinha é mais legal que você — resmungou fazendo a Clara rir e foi para a sala puxando a mesma pela mão.A Lisiane negou com a cabeça e deixou um riso escapar, perdendo a pose de madrinha durona.A Lis me deu um copo de suco e eu tomei um gole logo em seguida.— Pode começar a falar — se encostou na pia e ficou me encarando.Levei uma colherada do meu almoço até a boca e encarei ela de volta.— Vou entrar pro tráfico — falei com a boca cheia. Ela me encarou confusa, terminei de mastigar e continuei — Cansei pô, vou falar com o Rico hoje mesmo — ela negou com a cabeça.— Tá falando sério? — perguntou incrédula — Você tem outras opções, Raelisson... — cruzou os braços e negou mais uma vez, agora chateada.— A
RAELPorra, cara, aquilo foi a gota d'água, papo reto mesmo.De todas as humilhações sofridas, essa foi a pior, pô. E o pior de tudo, foi na frente da minha princesa.Fiquei com o coração na mão quando ela me perguntou se a gente iria morar na rua, parceiro. A pergunta doeu pra caramba. Quase não consegui responder, papo de ter formado um nó na garganta nessa hora.— Eu vou dar um jeito, meu amor — apertei ela em meus braços, deixando minhas lágrimas molharem seu cabelo loiro.Ela agarrou o meu pescoço e deitou a cabeça no meu ombro, molhando toda a minha camisa com as suas lágrimas.Ajeitei ela no meu colo e levantei da calçada enxugando minhas lágrimas com as costas da mão que estava livre.O Sorriso estava esquina esperando o Rico, e enquanto ele não chegava eu fui juntando todas as minhas roupas e da Rita que estava no guarda-roupa que tinha sido largado no meio da rua.Coloquei tudo que pude dentro da minha única mochila, e as roupas que sobraram da Rita coloquei na bolsinha dela
RICOColoquei a Ritinha na minha cama e voltei para a sala onde o Rael tava me esperando.Eu não queria que ele entrasse nessa, porque uma vez dentro é papo de pesadelo pra poder sair. Mas o cara já passou por tanta coisa que tá se vendo sem opções e eu não tenho autoridade nenhuma pra julgar ou ficar contra ele. Um amigo de verdade não faria isso.E a única coisa que eu fiz foi respeitar a escolha dele e apoiar. Ele só tinha a mim, e eu a ele. E foi assim desde os quinze anos, quando a nossa mãe morreu ele se levou pro caminho certo, e eu fui certeiro no errado. Foi fácil até, ele era claro e ainda tinha algumas oportunidades, e eu que era negro não tive as mesmas chances que ele.Minha única formatura foi na boca da rua 22, enquanto ele ainda conseguiu concluir o ensino fundamental.Passamos um tempão separados, ele morando na casa de uma mulher aí no asfalto que pegou ele pra criar mesmo depois de adolescente, e eu na comunidade sendo criado pelo crime.Foi foda. Mas depois de uns
RAELNaquele mesmo dia eu tive que voltar na casa da Lis e engolir o meu orgulho. Deixei a Rita lá e voltei pro morro dizendo que viria buscar ela amanhã de tarde assim que tudo ficasse bem no por aqui.Dormi na casa do Rico, e muito antes de amanhecer eu já estava de pé no meio da rua assim como todos os soldados. O Rico, o Sorriso e o Neguinho também estavam lá.— O Paulista falou que os alemão vão invadir as quatro — o Talibã começou a explicar — Metade sobe pra linha — apontou pra uns dez soldados — E vocês vão pra barreira — apontou pro restante.Assim que ele se calou os fogos começaram a estourar e todos os soldados se espalharam pelas vielas.O Neguinho me entregou um colete camuflado, um Ak-47 e meteu o pé sem falar nada.— Saí dessa vivo e você tá dentro — Talibã falou e saiu seguido do Rico que me olhou preocupado mas não falou nada.O Sorriso já tinha ido com os outros soldados e fiquei alí sozinho. O medo já tava tomando conta de mim, e aquela pergunta fodida ficou ronda