RICO
— Não quero você cuidando de filha de bandido e muito menos de conversinha com esses desviados, tá me ouvindo Ana Luz? — ouvi a mãe dela gritar assim que cheguei na porta da casa da dela.O foda é te julgarem sem nem ao menos te conhecerem, igual a velha tá fazendo agora com o Rael. Tu pode não ser aquilo, mas se anda com alguém que faz tu leva o nome pro resto da vida.— Mãe, eu apenas fiz um favor. Como diz o ditado, faça o bem sem olhar a quem — Aninha respondeu, seu tom de voz parecia cansado. Papo de quem ouvia comentários preconceituosos todos os dias.— Meu papai não é bandido — a Ritinha falou seguida de uma risada abafada da parte da Aninha.— Mostra essa língua de novo pra ver se eu não corto ela fora — ameaçou a minha afilhada e essa foi a minha deixa para bater na porta.Esperei um pouco e logo a Aninha abriu a porta, ela tinha um sorriso doce em seus lábios.— Dindo, a velha falou que ia cortar minha língua fora — a Ritinha veio na minha direção segurando a língua e eu dei risada.Neguei com a cabeça e peguei ela no braço.— Se ela cortar a tua eu corto a dela pô, pra aprender a não falar o que não sabe e pelo menos ter respeito a vida e a escolha dos outros — falei alto pra a velha escutar e beijei a testa da minha pequena, logo direcionei o meu olhar para a Aninha que estava sem graça pelo o que a mãe falou — É, eu ouvi tudo.— Desculpa por isso — ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e sorriu sem graça.Neguei.— Bora dar uma volta aí, quero pensar no seu caso — falei.Ela olhou pra dentro de casa e depois pra mim, sua expressão era de indecisão.— Eu não sei... — começou.— Vai, tia! Eu vou ficar triste se você não for — a Ritinha fez bico e eu ri. Minha pequena era foda.Ela deu um sorriso derretido e olhou mais uma vez pra dentro de casa, calçou o chinelo e fechou a porta devagar só pra a velha não ouvir ela saindo.A Ritinha foi pros braços da Aninha e fomos descendo a rua até a sorveteria da tia Nita.Sol tava castigando maneiro, um sorvete agora ia ser da hora mesmo.Sentamos e eu falei que podia pedir o que quisessem. A Ritinha pediu um sorvete completo, com tudo que tinha direito. Mas, a Aninha pediu um simples, dizendo que não queria abusar.Eu não quis insistir, achava isso chato pra caralho então deixei.— Olha dindo, uma cereja — falou e antes que eu pudesse falar alguma coisa ela colocou a cereja na minha boca.— Qual foi, Ritinha! Gosta não? — perguntei mastigando e ela negou com a cabeça levando uma colherada de sorvete até a boca.— Vai com calma, Rita. Assim você vai ficar com dor de cabeça — Aninha avisou e a Ritinha pegou leve.Me ajeitei na cadeira ficando um pouco mais perto da Aninha. Ela me olhou e sorriu, coloquei uma mecha de seu cabelo atrás da orelha e sussurrei em seu ouvido.— Tu é linda demais — falei baixinho.Segurei o seu queixo trazendo o rosto dela pra perto do meu, e quando nossos lábios estavam a poucos centímetros um do outro a Ritinha me puxou falando que queria outro sorvete.— Porra, Maria Rita! — resmunguei pegando a minha carteira e a Aninha riu, rosto dela tava todo vermelhinho, cara.Ela era linda demais, parceiro.1 mês depois.RAELDois dias depois de tudo o que aconteceu recebi uma ligação do dono da padaria dizendo que fui demitido por justa causa. Pelo meu atraso e por não ter tido como justificar os dias de faltas.Minha situação financeira se tornou um poço de dívidas depois daquela covardia que fizeram comigo. Não conseguia trabalho de jeito nenhum.Única coisa que consegui foi vender bala no sinal, e mesmo assim era xingado e humilhado todos os dias.Tava foda sustentar a casa e a minha princesa, e tudo que eu conseguia de comida dava pra ela com a desculpa de que eu comeria depois, mas na verdade eu ficava dias sem comer, só pra não deixar a Rita com fome.Eu vivia pra ela, e por ela. Minha única razão de viver era ela.- Tu não cansa não, Rael?! Ser humilhado todo santo dia pra ganhar uns trocado que não dá nem pra um dia direito. Porra, tá na hora de tu ver um caminho mais fácil aí, na moral mesmo - Neguinho como sempre querendo entrar na minha mente.Passei pela barreira com ele me
RAELA Lis fez um prato pra mim e eu sentei a mesa com a Rita no colo. Comecei a comer e dividir o meu almoço com a minha princesa.— Rita, você já comeu! Deixa o almoço do teu pai, menina — reclamou com ela que fez um bico e cruzou os braços saindo do meu colo.— Você é chata, a Clarinha é mais legal que você — resmungou fazendo a Clara rir e foi para a sala puxando a mesma pela mão.A Lisiane negou com a cabeça e deixou um riso escapar, perdendo a pose de madrinha durona.A Lis me deu um copo de suco e eu tomei um gole logo em seguida.— Pode começar a falar — se encostou na pia e ficou me encarando.Levei uma colherada do meu almoço até a boca e encarei ela de volta.— Vou entrar pro tráfico — falei com a boca cheia. Ela me encarou confusa, terminei de mastigar e continuei — Cansei pô, vou falar com o Rico hoje mesmo — ela negou com a cabeça.— Tá falando sério? — perguntou incrédula — Você tem outras opções, Raelisson... — cruzou os braços e negou mais uma vez, agora chateada.— A
RAELPorra, cara, aquilo foi a gota d'água, papo reto mesmo.De todas as humilhações sofridas, essa foi a pior, pô. E o pior de tudo, foi na frente da minha princesa.Fiquei com o coração na mão quando ela me perguntou se a gente iria morar na rua, parceiro. A pergunta doeu pra caramba. Quase não consegui responder, papo de ter formado um nó na garganta nessa hora.— Eu vou dar um jeito, meu amor — apertei ela em meus braços, deixando minhas lágrimas molharem seu cabelo loiro.Ela agarrou o meu pescoço e deitou a cabeça no meu ombro, molhando toda a minha camisa com as suas lágrimas.Ajeitei ela no meu colo e levantei da calçada enxugando minhas lágrimas com as costas da mão que estava livre.O Sorriso estava esquina esperando o Rico, e enquanto ele não chegava eu fui juntando todas as minhas roupas e da Rita que estava no guarda-roupa que tinha sido largado no meio da rua.Coloquei tudo que pude dentro da minha única mochila, e as roupas que sobraram da Rita coloquei na bolsinha dela
RICOColoquei a Ritinha na minha cama e voltei para a sala onde o Rael tava me esperando.Eu não queria que ele entrasse nessa, porque uma vez dentro é papo de pesadelo pra poder sair. Mas o cara já passou por tanta coisa que tá se vendo sem opções e eu não tenho autoridade nenhuma pra julgar ou ficar contra ele. Um amigo de verdade não faria isso.E a única coisa que eu fiz foi respeitar a escolha dele e apoiar. Ele só tinha a mim, e eu a ele. E foi assim desde os quinze anos, quando a nossa mãe morreu ele se levou pro caminho certo, e eu fui certeiro no errado. Foi fácil até, ele era claro e ainda tinha algumas oportunidades, e eu que era negro não tive as mesmas chances que ele.Minha única formatura foi na boca da rua 22, enquanto ele ainda conseguiu concluir o ensino fundamental.Passamos um tempão separados, ele morando na casa de uma mulher aí no asfalto que pegou ele pra criar mesmo depois de adolescente, e eu na comunidade sendo criado pelo crime.Foi foda. Mas depois de uns
RAELNaquele mesmo dia eu tive que voltar na casa da Lis e engolir o meu orgulho. Deixei a Rita lá e voltei pro morro dizendo que viria buscar ela amanhã de tarde assim que tudo ficasse bem no por aqui.Dormi na casa do Rico, e muito antes de amanhecer eu já estava de pé no meio da rua assim como todos os soldados. O Rico, o Sorriso e o Neguinho também estavam lá.— O Paulista falou que os alemão vão invadir as quatro — o Talibã começou a explicar — Metade sobe pra linha — apontou pra uns dez soldados — E vocês vão pra barreira — apontou pro restante.Assim que ele se calou os fogos começaram a estourar e todos os soldados se espalharam pelas vielas.O Neguinho me entregou um colete camuflado, um Ak-47 e meteu o pé sem falar nada.— Saí dessa vivo e você tá dentro — Talibã falou e saiu seguido do Rico que me olhou preocupado mas não falou nada.O Sorriso já tinha ido com os outros soldados e fiquei alí sozinho. O medo já tava tomando conta de mim, e aquela pergunta fodida ficou ronda
3 meses depois.RAELNunca consegui me ver nesse meio. Trabalhei desde moleque pra ter o meu certinho e não me envolver, mas não teve jeito. A dificuldade e o bem estar da minha filha falaram mais alto eu e nem pensei duas vezes. Botei a cara, mesmo.E graças ao cara lá de cima eu saí ileso naquele dia. A famosa prova de fogo. Tu só tem o direito de portar um fuzil se passar por ela, aí sim tu tá dentro.Foi ralado, mas eu consegui.Com o dinheiro que tô recebendo do tráfico eu consegui pagar todas as minhas dívidas, comprar uma casa, e ainda matrícular a Rita em colégio particular aí. Era em período integral e dava muito bom pra mim, já que eu fazia plantão o dia todo, a noite eu tava em casa pra curtir a minha filhota.Passei o dia pelo morro com os crias sempre fazendo o meu melhor, e tava tudo suave. Morrão tava na paz e eu tava tranquilinho, me preocupando só com a hora de ir buscar a Rita na escola porque aí que era foda, parceiro. Sair do morro e voltar sem nenhum arranhão, era
RICOQuando a varijeira da Carla colocou o Rael pra fora da casa, eu pedi para a Aninha ficar de olho na Ritinha pra poder resolver os problemas do Rael. Depois que resolvemos tudo, eu brotei na janela dela e a gente fez um amor gostosinho. Mas depois desse dia, parceiro... Nunca mais vi ela, só a irmã e a velha fofoqueira.Bagulho desse tava estranho demais, nem pra escola eu via ela ir. E a única coisa que eu sentia era medo de ter perdido ela, e saudades. Muitas saudades.— O dindo tá com sorvete no nariz — a Ritinha me sujou me fazendo despertar dos meus pensamentos e ficou rindo, enquanto tomava o sorvete dela.Peguei a colher do meu sorvete e sujei a bochecha dela que me olhou com raiva fazendo um bico enorme.— Estamos quites agora — falei dando risada e ela passou a mão se sujando ainda mais.— Qual é, parece criança tu — Rael reclamou comigo e pegou um guardanapo pra limpar a Ritinha e eu continuei rindo. Eu não tinha maturidade nenhuma pra lidar com crianças.Imagina se eu
RICOO Sorriso estacionou o carro de qualquer jeito, desceu pra ver se não tinha nenhum verme e assim me chamou pra sair do carro.Peguei ela no colo fui andando rápido até a porta de entrada do hospital, e desesperado começo a gritar pedindo ajuda.Eles chegam com uma cadeira de rodas e a levam lá pra dentro ainda desacordada. Eu queria acompanhá-la, mas não deixaram, e eu fiquei boladão já.— Tu não pode entrar lá, caralho — o Sorriso me segurou me pela camisa e me empurrou em das cadeiras de espera — Ela vai ficar bem, parceiro. Relaxa aí — tentou me acalmar, mas eu tava nervoso demais. O medo era o mesmo, pô.Algumas horas se passaram o Sorriso tinha ido comprar alguma coisa pra matar aquela fome de maconheiro dele e o hospital já estava ficando vazio, apenas com as pessoas que estavam internadas.Vi um médico passar pelo corredor e fui logo na reta dele, queria notícias da Aninha. Eu não aguentava mais esperar, eu precisava saber de algo.— Coe, doutor! Como tá a minha mulher? —