1 mês depois.
RAELDois dias depois de tudo o que aconteceu recebi uma ligação do dono da padaria dizendo que fui demitido por justa causa. Pelo meu atraso e por não ter tido como justificar os dias de faltas.Minha situação financeira se tornou um poço de dívidas depois daquela covardia que fizeram comigo. Não conseguia trabalho de jeito nenhum.Única coisa que consegui foi vender bala no sinal, e mesmo assim era xingado e humilhado todos os dias.Tava foda sustentar a casa e a minha princesa, e tudo que eu conseguia de comida dava pra ela com a desculpa de que eu comeria depois, mas na verdade eu ficava dias sem comer, só pra não deixar a Rita com fome.Eu vivia pra ela, e por ela. Minha única razão de viver era ela.- Tu não cansa não, Rael?! Ser humilhado todo santo dia pra ganhar uns trocado que não dá nem pra um dia direito. Porra, tá na hora de tu ver um caminho mais fácil aí, na moral mesmo - Neguinho como sempre querendo entrar na minha mente.Passei pela barreira com ele me acompanhando.- Falar é fácil pô. Quero ver se fosse tu com uma filha pra criar, cara - olhei pra ele - Tu entra hoje, amanhã tu sai pra guerra e não sabe se vai voltar vivo pra ela no dia seguinte... Eu não vou conseguir conviver com isso. - desabafei.Ele negou com a cabeça e sorriu sem humor.- Tu acha que eu não tenho essa porra também? - olhei pra ele surpreso - É parceiro, todo dia eu saio de casa pensando em como minha mãe fica, no quanto ela chora e ora pela minha alma enquanto eu tô pelo morro trocando tiro com inimigo - respirou fundo - É foda demais, irmão. Mas eu tô aí, preciso do dinheiro da mesma forma que você. Tô aqui pela minha mãe. Tu devia fazer a mesmo, a Ritinha não merece sofrer por tu não tá presente - Neguinho não falou mais nada, ajeitou o fuzil no ombro e foi andando pra rua onde ficava a boca.Fiquei balançado com esse papo. Ele tava certo, a Rita tava meio triste por eu não estar sempre com ela. E com toda a minha preocupação em ter algo pra ela comer, eu esqueci do mais importante, a atenção.Assim que cheguei em casa deixei minha mochila em cima do sofá, tomei um banho frio, comi um pão dormido que tinha no armário, fechei tudo e sai novamente.Desci o morro e fui andando até a rua 20, que era três ruas antes da entrada do morro. Iria buscar a minha princesa na casa da Lis, e andando eu teria mais tempo pra pensar no que eu realmente queria e iria fazer.Dobrei a esquina e já conseguia ver a casa da Lis. A garota era minha irmã de criação e sempre me dava uma força cuidando da Rita, amava minha filha como se fosse dela e não foi atoa que convidei pra ser madrinha.Bati na porta e demorou uma cota pra ser aberta, achei até que a maluca tinha saído com a minha filha mais logo ouvi um "já vai".Assim que a porta foi aberta dei de cara com uma garota, era lindona mané. Cinturinha fina, maior bundona, meu número aí.Ela ficou me olhando com cara de boba, e eu sorri de lado esperando ela me convidar pra entrar.- Eu dava muito - falou e eu arquei a sombrancelha dando risada, e acredito que isso não era pra ter sido falado em voz alta.Depois de alguns segundos dela olhando pra minha barriga ficou toda vermelha ao perceber que tinha falado aquilo em voz alta.- Aí meu Deus, eu não queria... Me desculpa - ela ficou toda sem graça e colocou as mãos no rosto.- Raelisson, quando é que você vai aprender que camisa é pra vestir e não andar com ela no ombro? - a Lis chegou reclamando e colocou a Rita no chão que logo veio correndo pros meus braços.Abracei ela e a enchi de beijos.- Clara, pega a bolsinha dela pra mim lá no quarto por favor - Lis pediu para a garota que praticamente saiu correndo da sala.Ri negando com a cabeça e Lis me olhou desconfiada.- Eu não fiz nada - dei de ombros ainda rindo e entrei me sentando no sofá - Vou passar o dia aqui, falô? Preciso conversar contigo - fui sincero e ela assentiu indo procurar a amiga.RAELA Lis fez um prato pra mim e eu sentei a mesa com a Rita no colo. Comecei a comer e dividir o meu almoço com a minha princesa.— Rita, você já comeu! Deixa o almoço do teu pai, menina — reclamou com ela que fez um bico e cruzou os braços saindo do meu colo.— Você é chata, a Clarinha é mais legal que você — resmungou fazendo a Clara rir e foi para a sala puxando a mesma pela mão.A Lisiane negou com a cabeça e deixou um riso escapar, perdendo a pose de madrinha durona.A Lis me deu um copo de suco e eu tomei um gole logo em seguida.— Pode começar a falar — se encostou na pia e ficou me encarando.Levei uma colherada do meu almoço até a boca e encarei ela de volta.— Vou entrar pro tráfico — falei com a boca cheia. Ela me encarou confusa, terminei de mastigar e continuei — Cansei pô, vou falar com o Rico hoje mesmo — ela negou com a cabeça.— Tá falando sério? — perguntou incrédula — Você tem outras opções, Raelisson... — cruzou os braços e negou mais uma vez, agora chateada.— A
RAELPorra, cara, aquilo foi a gota d'água, papo reto mesmo.De todas as humilhações sofridas, essa foi a pior, pô. E o pior de tudo, foi na frente da minha princesa.Fiquei com o coração na mão quando ela me perguntou se a gente iria morar na rua, parceiro. A pergunta doeu pra caramba. Quase não consegui responder, papo de ter formado um nó na garganta nessa hora.— Eu vou dar um jeito, meu amor — apertei ela em meus braços, deixando minhas lágrimas molharem seu cabelo loiro.Ela agarrou o meu pescoço e deitou a cabeça no meu ombro, molhando toda a minha camisa com as suas lágrimas.Ajeitei ela no meu colo e levantei da calçada enxugando minhas lágrimas com as costas da mão que estava livre.O Sorriso estava esquina esperando o Rico, e enquanto ele não chegava eu fui juntando todas as minhas roupas e da Rita que estava no guarda-roupa que tinha sido largado no meio da rua.Coloquei tudo que pude dentro da minha única mochila, e as roupas que sobraram da Rita coloquei na bolsinha dela
RICOColoquei a Ritinha na minha cama e voltei para a sala onde o Rael tava me esperando.Eu não queria que ele entrasse nessa, porque uma vez dentro é papo de pesadelo pra poder sair. Mas o cara já passou por tanta coisa que tá se vendo sem opções e eu não tenho autoridade nenhuma pra julgar ou ficar contra ele. Um amigo de verdade não faria isso.E a única coisa que eu fiz foi respeitar a escolha dele e apoiar. Ele só tinha a mim, e eu a ele. E foi assim desde os quinze anos, quando a nossa mãe morreu ele se levou pro caminho certo, e eu fui certeiro no errado. Foi fácil até, ele era claro e ainda tinha algumas oportunidades, e eu que era negro não tive as mesmas chances que ele.Minha única formatura foi na boca da rua 22, enquanto ele ainda conseguiu concluir o ensino fundamental.Passamos um tempão separados, ele morando na casa de uma mulher aí no asfalto que pegou ele pra criar mesmo depois de adolescente, e eu na comunidade sendo criado pelo crime.Foi foda. Mas depois de uns
RAELNaquele mesmo dia eu tive que voltar na casa da Lis e engolir o meu orgulho. Deixei a Rita lá e voltei pro morro dizendo que viria buscar ela amanhã de tarde assim que tudo ficasse bem no por aqui.Dormi na casa do Rico, e muito antes de amanhecer eu já estava de pé no meio da rua assim como todos os soldados. O Rico, o Sorriso e o Neguinho também estavam lá.— O Paulista falou que os alemão vão invadir as quatro — o Talibã começou a explicar — Metade sobe pra linha — apontou pra uns dez soldados — E vocês vão pra barreira — apontou pro restante.Assim que ele se calou os fogos começaram a estourar e todos os soldados se espalharam pelas vielas.O Neguinho me entregou um colete camuflado, um Ak-47 e meteu o pé sem falar nada.— Saí dessa vivo e você tá dentro — Talibã falou e saiu seguido do Rico que me olhou preocupado mas não falou nada.O Sorriso já tinha ido com os outros soldados e fiquei alí sozinho. O medo já tava tomando conta de mim, e aquela pergunta fodida ficou ronda
3 meses depois.RAELNunca consegui me ver nesse meio. Trabalhei desde moleque pra ter o meu certinho e não me envolver, mas não teve jeito. A dificuldade e o bem estar da minha filha falaram mais alto eu e nem pensei duas vezes. Botei a cara, mesmo.E graças ao cara lá de cima eu saí ileso naquele dia. A famosa prova de fogo. Tu só tem o direito de portar um fuzil se passar por ela, aí sim tu tá dentro.Foi ralado, mas eu consegui.Com o dinheiro que tô recebendo do tráfico eu consegui pagar todas as minhas dívidas, comprar uma casa, e ainda matrícular a Rita em colégio particular aí. Era em período integral e dava muito bom pra mim, já que eu fazia plantão o dia todo, a noite eu tava em casa pra curtir a minha filhota.Passei o dia pelo morro com os crias sempre fazendo o meu melhor, e tava tudo suave. Morrão tava na paz e eu tava tranquilinho, me preocupando só com a hora de ir buscar a Rita na escola porque aí que era foda, parceiro. Sair do morro e voltar sem nenhum arranhão, era
RICOQuando a varijeira da Carla colocou o Rael pra fora da casa, eu pedi para a Aninha ficar de olho na Ritinha pra poder resolver os problemas do Rael. Depois que resolvemos tudo, eu brotei na janela dela e a gente fez um amor gostosinho. Mas depois desse dia, parceiro... Nunca mais vi ela, só a irmã e a velha fofoqueira.Bagulho desse tava estranho demais, nem pra escola eu via ela ir. E a única coisa que eu sentia era medo de ter perdido ela, e saudades. Muitas saudades.— O dindo tá com sorvete no nariz — a Ritinha me sujou me fazendo despertar dos meus pensamentos e ficou rindo, enquanto tomava o sorvete dela.Peguei a colher do meu sorvete e sujei a bochecha dela que me olhou com raiva fazendo um bico enorme.— Estamos quites agora — falei dando risada e ela passou a mão se sujando ainda mais.— Qual é, parece criança tu — Rael reclamou comigo e pegou um guardanapo pra limpar a Ritinha e eu continuei rindo. Eu não tinha maturidade nenhuma pra lidar com crianças.Imagina se eu
RICOO Sorriso estacionou o carro de qualquer jeito, desceu pra ver se não tinha nenhum verme e assim me chamou pra sair do carro.Peguei ela no colo fui andando rápido até a porta de entrada do hospital, e desesperado começo a gritar pedindo ajuda.Eles chegam com uma cadeira de rodas e a levam lá pra dentro ainda desacordada. Eu queria acompanhá-la, mas não deixaram, e eu fiquei boladão já.— Tu não pode entrar lá, caralho — o Sorriso me segurou me pela camisa e me empurrou em das cadeiras de espera — Ela vai ficar bem, parceiro. Relaxa aí — tentou me acalmar, mas eu tava nervoso demais. O medo era o mesmo, pô.Algumas horas se passaram o Sorriso tinha ido comprar alguma coisa pra matar aquela fome de maconheiro dele e o hospital já estava ficando vazio, apenas com as pessoas que estavam internadas.Vi um médico passar pelo corredor e fui logo na reta dele, queria notícias da Aninha. Eu não aguentava mais esperar, eu precisava saber de algo.— Coe, doutor! Como tá a minha mulher? —
RICOPorra, logo agora que eu tô constituindo uma família. Bagulho era meu sonho, e vem um médico fodido querendo me arrastar. Aí não dá, parceiro.Eu tava encurralado. O corredor não tinha saída, e eu tava armado, se eu avançasse os vermes iriam me pegar no vacilo. Dei meia volta e entrei em um quarto qualquer me escondendo atrás da porta.Nele havia uma mulher que ninava um bebê em seus braços, mas ela logo colocou ele no berço.— Talvez você ficando aqui tenha um futuro melhor ao que eu tenho pra te oferecer — falava enquanto se afastava do berço e andava de costas até a porta, e não me vendo saiu do quarto.Fiquei boladasso com isso, cara. Se não tem condições não fode porra! Por falta de irresponsabilidade, bagulho assim só sobra para as crianças.E alí com a minha revolta, ouvi os vermes conversarem e assim passarem direto para o final do corredor, provavelmente até o quarto da minha mulher procurando informações sobre mim. Fiquei com medo pela Aninha que era menor e não tinha