RAEL
A Lis fez um prato pra mim e eu sentei a mesa com a Rita no colo. Comecei a comer e dividir o meu almoço com a minha princesa.— Rita, você já comeu! Deixa o almoço do teu pai, menina — reclamou com ela que fez um bico e cruzou os braços saindo do meu colo.— Você é chata, a Clarinha é mais legal que você — resmungou fazendo a Clara rir e foi para a sala puxando a mesma pela mão.A Lisiane negou com a cabeça e deixou um riso escapar, perdendo a pose de madrinha durona.A Lis me deu um copo de suco e eu tomei um gole logo em seguida.— Pode começar a falar — se encostou na pia e ficou me encarando.Levei uma colherada do meu almoço até a boca e encarei ela de volta.— Vou entrar pro tráfico — falei com a boca cheia. Ela me encarou confusa, terminei de mastigar e continuei — Cansei pô, vou falar com o Rico hoje mesmo — ela negou com a cabeça.— Tá falando sério? — perguntou incrédula — Você tem outras opções, Raelisson... — cruzou os braços e negou mais uma vez, agora chateada.— Ah, é? Me fala aí então, pô, me fala. Te faço uma lista de todas as opções que eu já tentei num mês só, cara — larguei a colher e cruzei o braços serinho.— Todas não, Raelisson. Sabe que tu pode voltar a estudar né, cara? — comentou e se virou pra lavar a louça que tinha suja na pia.— Sei mesmo. Mas não tenho cabeça pra isso mais não pô, e muito menos dinheiro pra material. Tu sabe que eu tive uma dificuldade do caralho com os estudos, nem dá — falei bolado já. Bagulho de escola nunca foi pra mim, pô. Eu odiava.— Dá sim, cara. É só um ano, eu te dou o material — neguei.— Não dá, tô te falando. Quem vai cuidar da Maria Rita enquanto eu fico me ferrando na porra de uma escola, é tu? — perguntei rindo sem humor e ela ficou calada, porque sabia que não tinha condições em me ajudar a criar porque tinha a faculdade — Tá vendo, uma coisa é tu tá ai de fora só vendo. Queria ver se tu tivesse de dentro, pra ver eu sendo humilhado todo dia — deixei o prato de lado, nem comer eu queria mais. Perdi a fome maneiro depois disso.Levantei bolado e já fui saindo pra sala, peguei a Rita dos braços da garota, e a ela me olhou sem entender.— Rael não fica assim, eu só quero o seu bem, cara. Não faz isso! —Lis falou e eu a encarei por alguns segundos.Neguei com a cabeça, abri a porta e meti o pé boladasso.— O que foi papai? — segurou o meu rosto com as mãozinhas dela e encostou sua testa na minha.Sorri com uma vontade imensa de chorar, pô.— Nada não, minha princesa — beijei seu nariz e ela riu empurrando o meu rosto.Fui andando até passar as três ruas e chegar no pé do morro.Coloquei a Rita no chão e andei até a entrada, o Sorriso e Grego estavam lá fazendo a ronda.— Fala aí — Sorriso me cumprimentou com um toque e o Grego apenas com um aceno de cabeça. E ele depois de entregar o fuzil pro Grego colocou a Rita no braço, que estava reclamando pra caramba que iria subir a pé.Minha filha é folgada pra caralho, mané. Sem condições, puxou a mãe porque a mim não foi.O Sorriso subiu comigo e no caminho acionou um cria pra ficar no lugar dele.Depois de umas cinco ruas, a terceira era a minha. Enrolamos a esquina e assim que entramos na rua eu vi uma movimentação estranha e todos os móveis da minha casa estavam na calçada.— Qual foi, dona Carla? Me explica isso aí — cheguei puto já.— A explicação é que você não me pegou os três meses de aluguel, Rael. Te dei o tempo que você me pediu, mas eu não vi dinheiro nenhum chegar nas minhas mãos. Agora tu vai se virar pra arrumar outro lugar pra morar em, na minha casa tu não fica mais — começou a falar alto pra caralho e eu senti vergonha daquilo, pô.Humilhação do porra.— Não fala assim com o meu papai — minha filha já tava com voz de choro, e o Sorriso olhava pra gente sem saber o que fazer.Todos assistiam aquilo como se fosse um show. Ninguém fazia nada.Olhei para todos os móveis, sentei na calçada e não consegui mais segurar. Chorei, chorei pra caralho.Aquilo alí foi a gota d'água, parceiro.Só ouvi o Sorriso passar um rádio pro Rico e me desliguei do mundo. A Rita veio pros meus braços e chorou junto comigo, mesmo não entendendo nem a metade das paradas que estavam acontecendo.RAELPorra, cara, aquilo foi a gota d'água, papo reto mesmo.De todas as humilhações sofridas, essa foi a pior, pô. E o pior de tudo, foi na frente da minha princesa.Fiquei com o coração na mão quando ela me perguntou se a gente iria morar na rua, parceiro. A pergunta doeu pra caramba. Quase não consegui responder, papo de ter formado um nó na garganta nessa hora.— Eu vou dar um jeito, meu amor — apertei ela em meus braços, deixando minhas lágrimas molharem seu cabelo loiro.Ela agarrou o meu pescoço e deitou a cabeça no meu ombro, molhando toda a minha camisa com as suas lágrimas.Ajeitei ela no meu colo e levantei da calçada enxugando minhas lágrimas com as costas da mão que estava livre.O Sorriso estava esquina esperando o Rico, e enquanto ele não chegava eu fui juntando todas as minhas roupas e da Rita que estava no guarda-roupa que tinha sido largado no meio da rua.Coloquei tudo que pude dentro da minha única mochila, e as roupas que sobraram da Rita coloquei na bolsinha dela
RICOColoquei a Ritinha na minha cama e voltei para a sala onde o Rael tava me esperando.Eu não queria que ele entrasse nessa, porque uma vez dentro é papo de pesadelo pra poder sair. Mas o cara já passou por tanta coisa que tá se vendo sem opções e eu não tenho autoridade nenhuma pra julgar ou ficar contra ele. Um amigo de verdade não faria isso.E a única coisa que eu fiz foi respeitar a escolha dele e apoiar. Ele só tinha a mim, e eu a ele. E foi assim desde os quinze anos, quando a nossa mãe morreu ele se levou pro caminho certo, e eu fui certeiro no errado. Foi fácil até, ele era claro e ainda tinha algumas oportunidades, e eu que era negro não tive as mesmas chances que ele.Minha única formatura foi na boca da rua 22, enquanto ele ainda conseguiu concluir o ensino fundamental.Passamos um tempão separados, ele morando na casa de uma mulher aí no asfalto que pegou ele pra criar mesmo depois de adolescente, e eu na comunidade sendo criado pelo crime.Foi foda. Mas depois de uns
RAELNaquele mesmo dia eu tive que voltar na casa da Lis e engolir o meu orgulho. Deixei a Rita lá e voltei pro morro dizendo que viria buscar ela amanhã de tarde assim que tudo ficasse bem no por aqui.Dormi na casa do Rico, e muito antes de amanhecer eu já estava de pé no meio da rua assim como todos os soldados. O Rico, o Sorriso e o Neguinho também estavam lá.— O Paulista falou que os alemão vão invadir as quatro — o Talibã começou a explicar — Metade sobe pra linha — apontou pra uns dez soldados — E vocês vão pra barreira — apontou pro restante.Assim que ele se calou os fogos começaram a estourar e todos os soldados se espalharam pelas vielas.O Neguinho me entregou um colete camuflado, um Ak-47 e meteu o pé sem falar nada.— Saí dessa vivo e você tá dentro — Talibã falou e saiu seguido do Rico que me olhou preocupado mas não falou nada.O Sorriso já tinha ido com os outros soldados e fiquei alí sozinho. O medo já tava tomando conta de mim, e aquela pergunta fodida ficou ronda
3 meses depois.RAELNunca consegui me ver nesse meio. Trabalhei desde moleque pra ter o meu certinho e não me envolver, mas não teve jeito. A dificuldade e o bem estar da minha filha falaram mais alto eu e nem pensei duas vezes. Botei a cara, mesmo.E graças ao cara lá de cima eu saí ileso naquele dia. A famosa prova de fogo. Tu só tem o direito de portar um fuzil se passar por ela, aí sim tu tá dentro.Foi ralado, mas eu consegui.Com o dinheiro que tô recebendo do tráfico eu consegui pagar todas as minhas dívidas, comprar uma casa, e ainda matrícular a Rita em colégio particular aí. Era em período integral e dava muito bom pra mim, já que eu fazia plantão o dia todo, a noite eu tava em casa pra curtir a minha filhota.Passei o dia pelo morro com os crias sempre fazendo o meu melhor, e tava tudo suave. Morrão tava na paz e eu tava tranquilinho, me preocupando só com a hora de ir buscar a Rita na escola porque aí que era foda, parceiro. Sair do morro e voltar sem nenhum arranhão, era
RICOQuando a varijeira da Carla colocou o Rael pra fora da casa, eu pedi para a Aninha ficar de olho na Ritinha pra poder resolver os problemas do Rael. Depois que resolvemos tudo, eu brotei na janela dela e a gente fez um amor gostosinho. Mas depois desse dia, parceiro... Nunca mais vi ela, só a irmã e a velha fofoqueira.Bagulho desse tava estranho demais, nem pra escola eu via ela ir. E a única coisa que eu sentia era medo de ter perdido ela, e saudades. Muitas saudades.— O dindo tá com sorvete no nariz — a Ritinha me sujou me fazendo despertar dos meus pensamentos e ficou rindo, enquanto tomava o sorvete dela.Peguei a colher do meu sorvete e sujei a bochecha dela que me olhou com raiva fazendo um bico enorme.— Estamos quites agora — falei dando risada e ela passou a mão se sujando ainda mais.— Qual é, parece criança tu — Rael reclamou comigo e pegou um guardanapo pra limpar a Ritinha e eu continuei rindo. Eu não tinha maturidade nenhuma pra lidar com crianças.Imagina se eu
RICOO Sorriso estacionou o carro de qualquer jeito, desceu pra ver se não tinha nenhum verme e assim me chamou pra sair do carro.Peguei ela no colo fui andando rápido até a porta de entrada do hospital, e desesperado começo a gritar pedindo ajuda.Eles chegam com uma cadeira de rodas e a levam lá pra dentro ainda desacordada. Eu queria acompanhá-la, mas não deixaram, e eu fiquei boladão já.— Tu não pode entrar lá, caralho — o Sorriso me segurou me pela camisa e me empurrou em das cadeiras de espera — Ela vai ficar bem, parceiro. Relaxa aí — tentou me acalmar, mas eu tava nervoso demais. O medo era o mesmo, pô.Algumas horas se passaram o Sorriso tinha ido comprar alguma coisa pra matar aquela fome de maconheiro dele e o hospital já estava ficando vazio, apenas com as pessoas que estavam internadas.Vi um médico passar pelo corredor e fui logo na reta dele, queria notícias da Aninha. Eu não aguentava mais esperar, eu precisava saber de algo.— Coe, doutor! Como tá a minha mulher? —
RICOPorra, logo agora que eu tô constituindo uma família. Bagulho era meu sonho, e vem um médico fodido querendo me arrastar. Aí não dá, parceiro.Eu tava encurralado. O corredor não tinha saída, e eu tava armado, se eu avançasse os vermes iriam me pegar no vacilo. Dei meia volta e entrei em um quarto qualquer me escondendo atrás da porta.Nele havia uma mulher que ninava um bebê em seus braços, mas ela logo colocou ele no berço.— Talvez você ficando aqui tenha um futuro melhor ao que eu tenho pra te oferecer — falava enquanto se afastava do berço e andava de costas até a porta, e não me vendo saiu do quarto.Fiquei boladasso com isso, cara. Se não tem condições não fode porra! Por falta de irresponsabilidade, bagulho assim só sobra para as crianças.E alí com a minha revolta, ouvi os vermes conversarem e assim passarem direto para o final do corredor, provavelmente até o quarto da minha mulher procurando informações sobre mim. Fiquei com medo pela Aninha que era menor e não tinha
RICOAcordei desnorteado, com uma zonzeira na cabeça. O sono ainda não tinha me deixado, meu celular não parava de tocar e eu quase deixei o moleque cair no chão.O segurei pela camisa com uma mão e ajeitei ele em cima de mim, peguei o celular no bolso da bermuda. Ele ainda dormia, então atendi o celular.— Porra, cadê você? Estamos te esperando atrás do hospital, parceiro — Sorriso falou um pouco alto e todo afobado.— Calma aí, irmãozinho — me ajeitei na cadeira — Pra quê essa afobação, a Aninha tá bem? — Perguntei com receio e levantei da cadeira ajeitando o moleque no braço.— A Aninha tá bem, caralho! Tô preocupadão com tu, pô — Falou suspirando — o Teixeira tá aí procurando a ninfeta dele. A garota teve um filho dele, mas abandonou o cria e saiu vazada — disse e eu logo liguei os pontos. O garoto ter a mesmo sobrenome nome que aquele verme não era nem de longe coincidência — pensei, ao lembrar da ficha.— Então ele não tá atrás de mim?! — dei risada.— Pelo menos hoje não. Mas s