Merda. Mil vezes.
Pisco e resolvo que é melhor conter a língua do que tentar dar qualquer explicação sem sentido e mentirosa. Noah está na porta da minha casa me encarando como se eu tivesse sofrido um acidente, ou algo do tipo. Afinal, posso sentir uma solitária gota de sangue escorrer pelo pescoço e se encaixar no espaço da clavícula.
— O que faz aqui? – Pergunto franzindo as sobrancelhas sem direito algum de tal gesto. Não sou eu quem deve questionar. Ele me percorre de novo com os olhos profundos e sérios e os fixa em meu roto. Dessa vez, Noah finge pisca como eu e repuxa o canto da boca revelando as covinhas fofas.
— Você recebeu o cartão, certo? Eu disse oito horas. – O loiro responde e tenta espiar além de mim pela fresta que mantenho aberta, para dentro da minha sala bagunçada numa recente cena de luta. Me coloco a sua frente de modo a impedir seu campo de visão do interior da casa e forço um sorrio.
— Sim. A propósito, você não preci
Caminhamos para trás da casa, para o lago e para a floresta adentro. As mesmas árvores ao fundo da cozinha, onde duas noites atrás, Terence aparecera perfurado por um galho. As luzes das janelas estão acesas e posso vê-lo perambulando pelo cômoda e enchendo mais uma taça de vinho. Ótimo, um feérico bêbado e rabugento. O sangue dele ainda mancha a terra e desvio do local para que Noah não faça mais perguntas do que, obviamente, pretende mesmo depois de prometer não tocar no assunto. Minhas cicatrizes seguem dolorosas a ponto de eu precisar respirar fundo para lidar com o pulsar nas costas e agradeço pelos pinheiros altos e pelas nuvens e o céu escuro acima de nossas cabeças tampando quase toda a visibilidade que o loiro tem do meu rosto e das minhas expressões de dor. A escuridão nos guia pelas pedras cobertas de musgos, raízes fora da terra macia e folhas escorregadias pelo caminho. — Devo me preocupar? – Noah para abaixo de uma pedra grande, as mãos nos bol
— Vou. – Ele retruca e segue meu caminhar pelo gazebo. Ouvimos um ressoar longínquo de trovões e um raio solitário cair sobre os prédios a quilômetros daqui. Tento respirar como se fosse possível tirar todo o peso dos meus ombros, e as garras da culpa com apenas ar. Não é. — Um resposta por outra, que tal? Sim e não, para simplificar. – O mortal cruza os braços e fico surpresa que os músculos contraídos nunca atraíram minha atenção. Não são enormes como o de Terence, mas também, não são inexistentes. Uma porção boa para o corpo dele e agora que os notei, é torturante evitar olha-los. — Você primeiro. Penso. Pela primeira vez, penso se há algo, qualquer coisa, que eu realmente queira saber sobre ele, que seja importante ao nível de ser necessário saber. Afinal, humanos são todos iguais com poucas diferença entre si. Será que eu devo saber tais coisas? Não. Eu quero saber? Sim. Porém, tudo o que quero conhecer sobre esse garoto dificilmente será resp
Minha irmã sorri. Fria e cruel e selvagem. Ela e seu olhar, que mais parecem facas me perfurando fazem meu instinto de sobrevivência gritar. Fuja! Corra, agora! Mas, não o faço. Meu sangue esfria, gélido como pedras de gelo e as cicatrizes recebem calafrios até a base da coluna a cada pulsar e latejar, dolorosa e insuportável. — Bem, vejamos... Que hora mais inconveniente essa. – Duvessa diz em alto e bom som, a trovoada curvando-se a voz aveludada e sensual dela e a chuva forte recusando-se a tocá-la, como se estivesse envolta em uma redoma invisível. Ela analisa as unhas compridas e pontiagudas pintadas de preto e estala a língua dando de ombros. — O que posso fazer? Aprecio entradas dramáticas! Noah se afasta confuso entre o meu desespero e a presença inesperada. Pulo do parapeito abaixando a saia do vestido de uma maneira desajeitada e apressada demais, enquanto o mortal tenta fechar o botão da calça. Minha irmã solta uma
Desabo. Meus joelhos atingem com tudo o piso duro e estatelo as palmas no chão, afundando os dedos. Lágrimas embaçam meus olhos e tudo ao meu redor, a paisagem começa a girar, o ar me abandona no instante seguinte e meus pulmões gritam, implorando por oxigênio. Noah se abaixa a minha frente e sua boca se move em palavras perdidas ao vento em ecos confusos. Nem mesmo quando me toca o desespero alojado em mim se vai.Duvessa me encontrara e agora ela sabe sobre esse lugar, o meu lugar. Sabe sobre o mortal e que temos um vínculo, por mais minúsculo que seja e certamente o fará de seu novo fantoche para brincar e destruir, alguém que ela sabe que se machucar, me afetará. E o pior, sabe que Terence está aqui, que escapou do reino e se refugiou comigo.Tento inspirar e falho. Encaro minhas mãos trêmulas, as juntas brancas e frias. Fria. Estou fria. O calor me deixou em algum momento e todo meu corpo treme de frio e medo. Medo da minha própria irmã e de sua mente perversa e maligna.
Sobrevoamos a floresta, percorrendo o mesmo percurso dos carros em direção a cidade pela rodovia. Ninguém é capaz de nos ver sob os encantamentos feéricos de Terence e tampouco precisamos de um, por que as pessoas mal olham para o céu. A lua brilha, e as estrelas parece mais próximos de nós. Os braços dele me seguram firme, evitando qualquer queda fatal. Me esqueci de como é voar, da sensação do vento contra o rosto jogando os cabelos para trás, do frio na barriga e das borboletas no estômago. Libertador, para dizer o mínimo. Sinto falta das minhas asas e elas estão tão perto de mim agora, que posso sentir minha magia me chamando. Apesar, de estarem em mãos erradas. Conhecer lugares por terra é incrível, mas sobrevoa-los é esplendido e magnifico. As asas do feérico marcam presença, mesmo invisíveis. O calor flui delas, enormes e mais largas do que eu imaginava e me dou conta de que gostaria de vê-las se ele permitisse um dia. Raramente as fadas deixam suas asas a vis
Direciono o olhar para Terence, encostado na porta de braços cruzados e com os olhos pregados em mim. Preciso que vá conferir se Noah está bem. Mentalizo, porque dizer em voz alta me fará parecer que estou falando sozinha com a parede. Não vou deixar você aqui. O mortal está seguro. Ele responde e perfuro suas irizes douradas, elas se reviram para mim. Por favor. Vou ficar bem. Insisto. Não. É minha vez de revirar os olhos. Você é teimoso, sabia? Alfineto. E você fraca demais para se defender se sua irmã aparecer. Faço um gesto obsceno e discreto para o feérico. Fadinha mal educada! Mostro a língua e vou até a o balcão ilha, marrom de pedra negra e antiga. Apoio os cotovelos na pedra gelada e me inclino para o fogão. Dáhlia serve água fervente nas xícaras com um bule e há um saquinho de erva-doce em cada uma. No meu, leite e açúcar. Pego a que me estende e nos acomodamos nas banquetas. — Biscoitos? – Ela
Voamos em silêncio de volta para casa. Permito que o calor de Terence me aqueça enquanto percorremos o céu, passando pelas nuvens mais baixas, apesar de ele tentar evitar a maioria delas. A tempestade partira. Muitas tempestades. Entretendo, as que vem em forma de chuva gelada, a natureza se encarrega do controle, já as que vem da mistura de sentimentos dentro da minha cabeça se embolam tanto e brigam tanto em meu interior que as controlar é impossível. Quanto mais perto da casa chegamos, mais meu coração se aperta em angústia. A ansiedade me sufoca transbordando em sal, embaçando a vista. Escondo o rosto do peito do feérico e engulo as lagrimas que não caem. Ele deve sentir a camiseta de flanela molhada, porque aperta mais os braços a minha volta, a mão firme na lateral das costelas tece uma caricia discreta, mas que conforta. Terence pousa com maestria na frente dos degraus da entrada e sinto o farfalhar das asas ocultas ao pararem de bater. Respiro fundo
— Amara, o que... — Espere um segundo! – O interrompo, entro na dispensa e saio de lá com duas abóboras nas mãos. As coloco no balcão ilha e pego duas facas pequenas e afiadas no faqueiro perto da pia. Sento-me onde estava e entrego uma das facas ao feérico, que me encara confuso de testa franzida. — É uma tradição dos mortais. Eles celebram o Samhain como as bruxas, mas o chamam de halloween. – Puxo uma abóbora para mim e indico que ele faça igual com a outra. Ambas grandes e laranjas. — Só que é mais sobre doces e fantasias e menos sobre rituais e magia. Sim, eu sei. Hipócritas. — Totalmente. – Terence concorda e pega sua abóbora. — Vamos assassinar abóboras? — Não, bobinho! – Rio e arregaço as mangas do suéter. Bato com a faca na fruta. — Vamos esculpir rostos nelas! Um triangulo para o nariz, mas a boca e os olhos você pode fazer como quiser, dependendo se sua abóbora é alegre ou assustadora. — Os mortais são estranhos. – O feéri