Mayara
A cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.
Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.
Minhas manhãs começam bem cedo. Preciso acordar antes do sol nascer, me arrumar e sair de casa a fim de chegar à escola a tempo. Eu me alimento nos horários dos lanches porque isso faz diferença para mim, e não posso perder as refeições gratuitas. Após a rotina estudantil, sigo diretamente para o trabalho. Faço de tudo um pouco, desde atendimentos até ajuda na limpeza. Fico lá até o fim da tarde e, quando saio, vou andando para casa. Cuido do jantar, realizo alguma tarefa doméstica, tomo banho e estudo algumas horas antes de dormir. Todos os dias sigo essa rotina e, mesmo cansada, lembro-me de que todo o esforço valerá a pena.
Hoje, não seria diferente. Chego no café e prendo os cabelos em um coque, coloco avental e touca. Vou para trás do balcão e, com mãos ágeis, começo a preparar os pedidos do primeiro cliente. Repito o passo a passo e agradeço quando recebo moedas de gorjeta, que coloco no bolso do avental. Esse dinheiro extra eu me permito esconder para o meu futuro, já que todo o meu salário fica para as contas de casa. Sei que podem me achar mesquinha, mas moro com meus pais e minha avó. Nossa pequena e humilde casa está sempre cheia de parentes e me incomoda o fato de todos se acharem no direito de usar o que é do outro sem pedir. Não tenho nada que seja só meu. A falta de condição é gritante, mas a falta de colaboração da minha família também pesa.
Sei que não posso contar com eles para os estudos que quero fazer no futuro e que só estou estudando do outro lado da cidade porque consegui uma bolsa, graças à boa nota que tive em uma prova do programa de incentivo. Entendo que, por falta de oportunidades, a esperança da maioria dos nossos foi minada, mas quero tentar algo diferente, nem que, para isso, eu tenha que mentir que não recebo gorjetas para guardar essa pequena parte para o meu futuro.
A porta de vidro se abre, e um grupo de jovens animados passam por ela. Entre eles, está Caíque. Nos vimos rapidamente mais cedo, mas, mesmo assim, quando seu olhar cruza o meu, sinto meu interior se aquecer. Disfarçadamente, ele pisca um olho para mim, e eu me seguro para não sorrir.
Se meus familiares soubessem que namoro alguém do outro lado, ouviria muitas reclamações. Eles não aprovariam, assim como a família dele também não me aceitaria.
Volto ao atendimento quando minha colega de trabalho sinaliza que podemos trocar de lugar por um tempo. Vou atender as poucas mesas, e ela fica no balcão. A tranquilidade do ambiente é interrompida quando distraída, alcanço no bolso o avental, o meu bloquinho e caneta. Uma mão masculina segura meu braço, fazendo-me parar no lugar.
— Oi, moça. Acho que você não me ouviu chamar.
Fico sem resposta, ainda mais ao perceber que ele sempre vem aqui e, em todas às vezes, puxa assunto. Deve ter idade próxima à minha. Não entendo suas ações, mas não gosto do fato de ele pegar meu braço sem autorização. Tento puxá-lo, mas ele não me solta de imediato, como se não entendesse o que quero.
— Me solta — sussurro, e ele afasta a mão com pressa.
— Desculpa. — Ele sorri.
Desde o momento em que ele pegou meu braço, minhas pernas fraquejaram e senti o mesmo desespero de algumas noites atrás, quando um homem bem mais velho tentou me agarrar enquanto eu voltava para casa. É como se eu revivesse tudo aquilo, mas ao contrário do chute que dei no homem para conseguir correr, eu travo.
Antes que eu pudesse reagir e responder, Caíque se levanta e sai de perto dos amigos, vindo ao meu encontro.
— O que está acontecendo aqui? — pergunta, colocando a mão no ombro do outro.
A tensão no ar é palpável. Por alguns segundos, o tempo parece parar, e todos os olhares se fixam na situação.
— Nada, estou conversando com ela — responde o homem, surpreso.
— Você está confortável? — Caíque me questiona, e eu nego devagar.
— Ótimo, agora você já sabe que ela não está confortável. A conversa acabou. — Caíque retruca.
O outro, tenta falar, mas a postura inabalável de Caíque não dá espaço. O clima começa a pesar, e os dois discutem, mas eu não consigo raciocinar muito bem. Nesse momento, o gerente do café, percebendo a gravidade da situação, intervém com a autoridade necessária:
— Lamento, mas preciso pedir que você se retire. — O jovem se levanta e retruca, indignado. — Não quero saber suas intenções, rapaz. Apenas saia.
O homem de meia-idade conduz o outro até a porta. Quando retorna, se vira para o Caíque e aponta o dedo. — E se você continuar, sairá também.
Olho ao redor e não gosto da atenção que estou recebendo, então me apresso em me distanciar e sigo para a cozinha.
Tenho vontade de chorar. Cansaço, vulnerabilidade, chateação. Sou um emaranhado de sentimentos prontos a transbordar pelos meus olhos, mas respiro fundo e seguro tudo. Tenho que voltar ao trabalho.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem
MayaraO meu dia já começa em meio a provações diárias. Na verdade, os últimos dias têm sido difíceis. Faz uma semana que não vejo o Caíque, uma semana que parece uma eternidade. Tento me convencer de que tudo está bem, que ele tem seus motivos e que eu não deveria me preocupar tanto. Afinal, ele já ficou sem entrar em contato outras vezes. Mas é impossível não sentir o vazio deixado por seu silêncio, ainda mais porque esta é a primeira vez que ele demora tanto para dar um sinal de vida. Ele simplesmente desapareceu. E o pior de tudo: sem me dar nenhuma explicação.Ainda lembro da última vez que nos vimos. Ele estava dentro de um dos carros de sua família, passando pelo meu bairro. Nossa troca de olhares foi breve, mas intensa. Eu voltava da vendinha com algumas compras e, por sorte, segurava firme as sacolas, porque, no susto, poderia ter derrubado tudo no chão. Não sei para onde ele estava indo, nem o que estava pensando. Depois da discussão no café mais cedo, fui para a cozinha me
CaíqueEstar de castigo aos dezessete anos me parece um absurdo, mas aqui estou eu, preso dentro de casa. Pelo menos é assim que me sinto, enjaulado, e a sensação é além das paredes que me cercam. Desde que minha mãe pegou meu celular e viu a minha última troca de mensagens com a Mayara, minha vida virou um inferno. Ela surtou, fez um interrogatório digno de filme policial e, no fim, decretou meu castigo: sem celular, sem internet, sem sair de casa e sem direito a discutir. Nenhuma mensagem, nenhum contato com o mundo lá fora.Minha mãe nem sequer quer olhar na minha cara depois dessa confusão. Todos estão me tratando com a mesma frieza.Foi um erro meu ter esquecido de apagar as mensagens da Mayara. Não que houvesse algo tão comprometedor, mas minha mãe tem essa mania de querer controlar tudo ao meu redor e quando pegou o celular e leu as mensagens, ficou furiosa. Disse que eu estava “me desviando”, que eu estava me envolvendo com pessoas que poderiam “atrapalhar meu futuro”. Como se
CaíqueEu a vejo antes que ela me veja. Está sentada em um banco da praça, no caminho entre a escola e o café onde trabalha, mexendo no celular, alheia ao mundo ao redor. O vento bagunça seus cabelos escuros, e um leve sorriso se forma em seus lábios quando lê algo na tela. Meu coração acelera. Cada vez que a encontro, é como se fosse a primeira vez.Respiro fundo e caminho até ela, tentando ignorar o nervosismo que sempre me invade em sua presença. Ela levanta o olhar ao perceber que me aproximo e, por um breve instante, seu rosto se ilumina. Mas logo a hesitação retorna. Esse misto de felicidade e receio nos acompanha desde que começamos a nos envolver.— Oi — digo, tentando soar casual, mas sei que minha voz entrega um pouco da ansiedade.— Oi — responde, a voz suave, mas carregada de cuidado.Sento-me ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa. Olho para frente, observando os poucos transeuntes que caminham pela praça, esperando que o silêncio se desfaça por si só. E se desfaz
MayaraA garota refletida no espelho não sou eu. Ou talvez seja, mas em uma versão que não reconheço. Vestindo um vestido azul-claro, de tecido leve e delicado, emprestado por uma colega de trabalho, pareço deslocada. Meu cabelo, preso em um coque frouxo, deixa minha nuca à mostra, e os brincos pequenos brilham sob a luz fraca do quarto.Calço a sandália de salto baixo, também emprestada, depois de muita insistência. Recusei a opção do salto alto porque, se precisar andar muito, seria inviável. Coloco um pequeno curativo nos dedos para evitar machucá-los mais, já que o sapato é um número menor que o meu. Mesmo me sentindo estranha, sou grata à minha colega por me emprestar tudo isso quando comentei que tinha recebido um convite de aniversário daquele lado da cidade.Respiro fundo. Encaro meu reflexo mais uma vez. É como se eu estivesse invadindo um mundo que não me pertence.Não sei por que aceitei esse convite. Quer dizer, eu sei. Porque é o Caíque. E, porque, apesar de todo o medo,
CaíqueEla se foi.Fico parado no jardim, olhando para o portão por onde Mayara acabou de sair. Meus pés querem ir atrás dela, mas meu corpo não se move de imediato. Meu peito sobe e desce rápido, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona. Mas não é cansaço o que sinto. É um peso enorme que se instala no meu peito, uma mistura sufocante de culpa, raiva e frustração.Dentro da casa, a música continua, as risadas ecoam pelo salão, os brindes seguem como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver a pessoa mais importante para mim ir embora, machucada por causa da minha família. Como se a humilhação que ela sofreu não tivesse sido real.Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e aperto as mãos em punhos. Eu sabia que isso poderia acontecer. Sabia que minha famíli
No passado…CaíqueO sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontr
CaíqueDestranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.— Olá, senhor.— Oi!— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelm