GustavoEstou esperando no pátio da escola, chutando uma pedrinha de um lado para o outro enquanto vejo os outros pais chegarem para buscar seus filhos. Todo mundo já foi embora, e eu começo a ficar preocupado. Será que esqueceram de mim?Minha mãe e meu pai não me trouxeram para a escola. Precisaram ir no médico. Tio Dan me trouxe e falou que estava tudo bem, então achei que meus pais iam me buscar, né?Mas ninguém veio ainda. Olho para os lados quando meus últimos amigos vão embora, é quando vejo o tio Daniel vindo em minha direção, com aquele sorriso grande que ele sempre tem. Ele acena para mim, e eu corro para ele.— E aí, carinha! — ele diz, bagunçando meu cabelo.— Oi, tio! Cadê a mamãe e o papai? — pergunto, meio desconfiado.Ele se abaixa na minha frente e coloca as mãos nos meus ombros.— Tenho uma supernovidade para você! — ele diz, fazendo uma cara misteriosa.Arqueio as sobrancelhas, curioso.— O que é?— Seus pais foram para o hospital porque sua irmãzinha vai nascer!Me
MayaraA brisa da tarde entra suave pela janela da sala, balançando as cortinas com um ritmo preguiçoso. O sol espalha um dourado quente pelos cantos da casa, iluminando os brinquedos espalhados, os desenhos coloridos colados na geladeira e os diversos porta-retratos nos móveis que contam parte de nossa história.Como faço sempre que me aproximo dos registros de nossas lembranças, observo cada fotografia com um sorriso no rosto e felicidade em meu coração. Acompanho o crescimento do meu filho. O desenvolver da minha filha. Fotos com Caíque, do nosso casamento, festas, encontros com amigos e familiares, diversos momentos felizes. Aqui está o refletido o passar do tempo para nossa família. E é lindo.O som da caneca no fogo, me avisa que o meu chá está pronto. Vou até lá e me sirvo da bebida. Sento no sofá com uma xícara de chá ainda quente entre as mãos. Posso ouvir as risadas vindo do quintal. Caíque está com as crianças lá fora, brincando de pega-pega com Gustavo e a pequena Isabela,
CaíqueAs manhãs aqui em casa são barulhentas, bagunçadas e incrivelmente vivas. O despertador raramente é necessário, porque Isabela é sempre a primeira a pular na nossa cama, rindo e fazendo bagunça, falando um monte de histórias e pedindo panquecas. Gustavo já se acostumou com a nova rotina, agora que é o irmão mais velho, acha que tem a missão de ajudar em tudo, nos afazeres diários e cuidados com a caçula. E eu, bom, eu acordo todos os dias pensando na sorte que tive por ter escolhido ficar. Na verdade, a sorte começou quando conheci a Mayara.Agora mesmo estamos na cozinha. Mayara veste uma roupa simples e um avental florido, cabelo preso em um coque alto malfeito com alguns fios bagunçados, sorriso largo no rosto. Com o braço ágil, ela mexe a massa na tigela enquanto canta baixinho uma música infantil, dessas que ela ouviu quando Isabela pediu para assistir na televisão enquanto dançava. Isabela está sentada no seu cadeirão, balançando as pernas e batendo as mãos na bandeja, ob
GustavoTem dias em que tudo parece meio em câmera lenta. Tipo hoje. O sol tá se pondo devagar lá fora, pintando o céu de laranja, e eu tô sentado na escada da varanda, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça cheia de coisa. A casa tá cheia do barulho de sempre — risada da minha irmã, panela batendo na cozinha, meu pai cantando desafinado alguma música antiga. É tudo muito normal. Mas, ao mesmo tempo… sei lá. Nada é só normal quando você presta atenção de verdade.— Gu, olha só! — a voz da Isadora corta meus pensamentos, aguda como sempre. Ela corre na minha direção com um copo na mão, metade cheio de alguma poção maluca feita com groselha, leite e, provavelmente, sabão.— Não me dá isso. Da última vez quase vomitei — digo, fazendo careta. Ela ri como se fosse a melhor piada do mundo.— É só groselha! Tá, talvez tenha um pouquinho de pimenta…Reviro os olhos, mas sorrio. A Isa tem sete anos, mas às vezes parece que ela veio com o dobro de energia e criatividade. Meu pai diz que ela pu
No passado…CaíqueO sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontr
CaíqueDestranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.— Olá, senhor.— Oi!— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelm
MayaraA cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.Minhas manhãs começam bem cedo.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem