No passado…
Caíque
O sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.
Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.
À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.
Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontram num silêncio que diz mais do que qualquer palavra poderia expressar.
— Mayara, eu… — inicio, hesitante, com a voz carregada de emoção. O que poderia dizer? Qual desculpa seria aceitável dessa vez para não entrar em contato? Ela acreditaria que eu estava de castigo sem acesso ao meu celular por não ser o primeiro lugar em uma competição composta por filhos de magnatas?
Ela sorri, um sorriso tímido, mas repleto de significado e esperança.
— Eu sabia que você viria.
Mayara se lança em meus braços e eu a abraço com força. O tempo parece desacelerar durante nosso abraço. Nesse breve instante em que a tenho em meus braços e a giro no ar, o ambiente se transforma; o mundo complicado em que vivemos é deixado do lado de fora. Ali, naquele recanto esquecido, conseguimos ser nós mesmos, sem influências ou críticas. Naquele cubículo, encontramos o conforto e a segurança para nos encontrar discretamente e viver um amor que, embora seja considerado proibido, sabemos ser intenso e verdadeiro.
Coloco-a no chão e noto que ela tenta conter o riso, refletindo o meu sorriso discreto. Pego os fios escuros de seus longos cabelos que estão por todo o lado e os jogo para trás. Com delicadeza, seguro seu rosto delicado entre as minhas mãos e tiro um tempo para observá-la na penumbra. Mesmo com o semblante marcado pelo cansaço de sua rotina, ela é linda: os longos cílios que emolduram seus olhos escuros e redondos, as sobrancelhas bem definidas, o nariz esculpido, as bochechas salientes e os lábios convidativos.
Aproximo-me e, suavemente, roço meus lábios contra os dela, enquanto ela fecha os olhos devagar. Com um suspiro, beijo-a, tentando transmitir toda a saudade que senti dela, de nós. Ela retribui com a mesma intensidade em um beijo urgente.
— Parabéns para nós. — sussurro.
— Parabéns! Um ano! — ela diz, envolvendo seus braços finos em minha cintura e me abraçando apertado.
— É, um ano. — Beijo sua testa. — Sinto muito por ter sido um ano difícil para nós… — começo a me desculpar, mas ela me interrompe.
— Logo tudo isso passa. Em alguns meses, vamos nos formar no ensino médio, meu aniversário se aproxima e poderemos ir embora. — Concordo. — Não desista dos nossos planos.
— Não vou desistir de nós. Não desista também. — Ela sorri e, com um brilho nos olhos, acena. — Trouxe algo para você.
— O que é?
Abro minha mochila e retiro uma caixa com trufas de chocolate.
— Aqui está. Não consegui te trazer algo maior, pois chamaria atenção. — Estendo a caixa para ela que aceita.
— Está perfeito! — Mayara me dá um beijo rápido. — Eu não consegui te trazer nada. Você sabe, ainda não recebi o pagamento do café… — Refere-se ao serviço meio período em que trabalha. Ela está com pagamento atrasado e mesmo que não estivesse, sei que todo o valor já está comprometido com os gastos de sua casa.
— Não se preocupe com isso. Estar com você é o melhor presente que eu poderia receber. — Digo, enquanto a aconchego em meus braços de novo.
Sento na poltrona e a coloco em meu colo. Em meio a trocas de carinho, conversamos em sussurros, confidenciando nossos sonhos, medos e repassamos os planos traçados ao longo deste ano. Em cada palavra trocada, a nossa cumplicidade cresce, sendo fortalecida pela certeza de que, naquele lugar escondido, somos livres para ser exatamente quem queremos.
Aqui, com minha namorada, encontro uma rara sensação de liberdade. Só com ela posso ser eu mesmo, sem julgamentos; com ela, tudo fica mais leve, mesmo quando o mundo é difícil.
Os minutos se transformam em preciosos instantes de intimidade, nos quais, por um breve período, nos permitimos curtir o momento e esquecemos todas as barreiras e dificuldades. Mas o tempo insiste em correr como sempre acontece quando estamos juntos.
— Nossa, preciso ir! — Confere as horas na tela do meu celular quando ele se ilumina com uma notificação de mensagem da minha mãe.
— Eu também. Não vou conseguir ir ao café hoje, tenho cursinho.
— Tudo bem, eu entendo. — Ela se levanta do meu colo e pega sua mochila do chão.
— Mas amanhã, trago alguns materiais do cursinho para você. Falei para minha mãe que ia doar para um colega de sala.
— Obrigada! Vou estudar um pouco mais por dia antes de dormir. — Recebo mais um abraço. — Agora e preciso mesmo ir. Até amanhã!
— Até! Eu e amo.
— Eu te amo também.
Mayara coloca mais um chocolate na boca e me dá um beijo rápido, nos despedimos com promessas de nos encontrarmos no dia seguinte e ela sai primeiro. Enquanto aguardo um tempo para sair, respondo à mensagem da minha mãe com a mentira de que estou a caminho de casa.
Após seus passos se afastarem, eu também saio dali e caminho devagar para dar tempo de não nos encontrarmos. Sem olhar para trás, deixo nosso refúgio para trás, saindo pela porta do prédio escolar e retornando ao mundo frio e sufocante que me aguardava lá fora – um mundo repleto de olhares atentos e expectativas irreais da minha família.
CaíqueDestranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.— Olá, senhor.— Oi!— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelm
MayaraA cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.Minhas manhãs começam bem cedo.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem
MayaraO meu dia já começa em meio a provações diárias. Na verdade, os últimos dias têm sido difíceis. Faz uma semana que não vejo o Caíque, uma semana que parece uma eternidade. Tento me convencer de que tudo está bem, que ele tem seus motivos e que eu não deveria me preocupar tanto. Afinal, ele já ficou sem entrar em contato outras vezes. Mas é impossível não sentir o vazio deixado por seu silêncio, ainda mais porque esta é a primeira vez que ele demora tanto para dar um sinal de vida. Ele simplesmente desapareceu. E o pior de tudo: sem me dar nenhuma explicação.Ainda lembro da última vez que nos vimos. Ele estava dentro de um dos carros de sua família, passando pelo meu bairro. Nossa troca de olhares foi breve, mas intensa. Eu voltava da vendinha com algumas compras e, por sorte, segurava firme as sacolas, porque, no susto, poderia ter derrubado tudo no chão. Não sei para onde ele estava indo, nem o que estava pensando. Depois da discussão no café mais cedo, fui para a cozinha me
CaíqueEstar de castigo aos dezessete anos me parece um absurdo, mas aqui estou eu, preso dentro de casa. Pelo menos é assim que me sinto, enjaulado, e a sensação é além das paredes que me cercam. Desde que minha mãe pegou meu celular e viu a minha última troca de mensagens com a Mayara, minha vida virou um inferno. Ela surtou, fez um interrogatório digno de filme policial e, no fim, decretou meu castigo: sem celular, sem internet, sem sair de casa e sem direito a discutir. Nenhuma mensagem, nenhum contato com o mundo lá fora.Minha mãe nem sequer quer olhar na minha cara depois dessa confusão. Todos estão me tratando com a mesma frieza.Foi um erro meu ter esquecido de apagar as mensagens da Mayara. Não que houvesse algo tão comprometedor, mas minha mãe tem essa mania de querer controlar tudo ao meu redor e quando pegou o celular e leu as mensagens, ficou furiosa. Disse que eu estava “me desviando”, que eu estava me envolvendo com pessoas que poderiam “atrapalhar meu futuro”. Como se
CaíqueEu a vejo antes que ela me veja. Está sentada em um banco da praça, no caminho entre a escola e o café onde trabalha, mexendo no celular, alheia ao mundo ao redor. O vento bagunça seus cabelos escuros, e um leve sorriso se forma em seus lábios quando lê algo na tela. Meu coração acelera. Cada vez que a encontro, é como se fosse a primeira vez.Respiro fundo e caminho até ela, tentando ignorar o nervosismo que sempre me invade em sua presença. Ela levanta o olhar ao perceber que me aproximo e, por um breve instante, seu rosto se ilumina. Mas logo a hesitação retorna. Esse misto de felicidade e receio nos acompanha desde que começamos a nos envolver.— Oi — digo, tentando soar casual, mas sei que minha voz entrega um pouco da ansiedade.— Oi — responde, a voz suave, mas carregada de cuidado.Sento-me ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa. Olho para frente, observando os poucos transeuntes que caminham pela praça, esperando que o silêncio se desfaça por si só. E se desfaz
MayaraA garota refletida no espelho não sou eu. Ou talvez seja, mas em uma versão que não reconheço. Vestindo um vestido azul-claro, de tecido leve e delicado, emprestado por uma colega de trabalho, pareço deslocada. Meu cabelo, preso em um coque frouxo, deixa minha nuca à mostra, e os brincos pequenos brilham sob a luz fraca do quarto.Calço a sandália de salto baixo, também emprestada, depois de muita insistência. Recusei a opção do salto alto porque, se precisar andar muito, seria inviável. Coloco um pequeno curativo nos dedos para evitar machucá-los mais, já que o sapato é um número menor que o meu. Mesmo me sentindo estranha, sou grata à minha colega por me emprestar tudo isso quando comentei que tinha recebido um convite de aniversário daquele lado da cidade.Respiro fundo. Encaro meu reflexo mais uma vez. É como se eu estivesse invadindo um mundo que não me pertence.Não sei por que aceitei esse convite. Quer dizer, eu sei. Porque é o Caíque. E, porque, apesar de todo o medo,
CaíqueEla se foi.Fico parado no jardim, olhando para o portão por onde Mayara acabou de sair. Meus pés querem ir atrás dela, mas meu corpo não se move de imediato. Meu peito sobe e desce rápido, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona. Mas não é cansaço o que sinto. É um peso enorme que se instala no meu peito, uma mistura sufocante de culpa, raiva e frustração.Dentro da casa, a música continua, as risadas ecoam pelo salão, os brindes seguem como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver a pessoa mais importante para mim ir embora, machucada por causa da minha família. Como se a humilhação que ela sofreu não tivesse sido real.Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e aperto as mãos em punhos. Eu sabia que isso poderia acontecer. Sabia que minha famíli