Mayara
O meu dia já começa em meio a provações diárias. Na verdade, os últimos dias têm sido difíceis. Faz uma semana que não vejo o Caíque, uma semana que parece uma eternidade. Tento me convencer de que tudo está bem, que ele tem seus motivos e que eu não deveria me preocupar tanto. Afinal, ele já ficou sem entrar em contato outras vezes. Mas é impossível não sentir o vazio deixado por seu silêncio, ainda mais porque esta é a primeira vez que ele demora tanto para dar um sinal de vida. Ele simplesmente desapareceu. E o pior de tudo: sem me dar nenhuma explicação.
Ainda lembro da última vez que nos vimos. Ele estava dentro de um dos carros de sua família, passando pelo meu bairro. Nossa troca de olhares foi breve, mas intensa. Eu voltava da vendinha com algumas compras e, por sorte, segurava firme as sacolas, porque, no susto, poderia ter derrubado tudo no chão. Não sei para onde ele estava indo, nem o que estava pensando. Depois da discussão no café mais cedo, fui para a cozinha me recompor e para esperar a poeira baixar. Quando voltei, ele e os amigos já tinham ido embora. Depois disso, nenhuma mensagem, nenhuma ligação. E, por mais que tentasse me convencer de que ele estava ocupado, de que talvez fosse algo relacionado à família, as dúvidas me corroíam.
Quero entender o lado dele, mas a raiva também me consome. Como ele pode sumir assim, sem nem ao menos me avisar que está bem? Só sei que ele está vivo porque ouvi alguns clientes no café comentando que ele estava resfriado e, por isso, não foi à escola nem ao cursinho.
É como se a confiança que depositei nele tivesse se esfarelado, deixando apenas cacos de um relacionamento que eu mesma idealizei demais. Não parece certo. Não me parece justo.
Talvez, eu esteja exagerando. A sobrecarga na escola, trabalho, e em casa, devem estar me deixando dessa forma.
Mas deixo de me culpar quando pela manhã, ele entra na sala de aula acompanhado de várias meninas, que conversam animadas sobre alguma festa. Meu sangue ferve. Eu aqui, preocupada, e ele falando sobre festa?
Respiro fundo e o ignoro. Permaneço sentada de frente para a lousa, como sempre, e não olho para trás nenhuma vez para não vê-lo. No fim do dia, espero que ele saia e sigo para o nosso esconderijo. Quando chego, aperto as mãos em punho, tentando controlar meu nervosismo e o coração acelerado. Caíque já está lá, de cabeça baixa, como se soubesse que eu viria, mas não tivesse coragem de me enfrentar.
— O que aconteceu, Caíque? — pergunto de uma vez, tentando conter a raiva na minha voz. Mas, ao mesmo tempo, a angústia me sufoca.
Ele me olha, um pouco surpreso com minha atitude, e se levanta. Sua expressão está tensa, como se preparasse para dizer algo que sabia que eu não gostaria de ouvir.
— Eu… — hesita. Passa a mão pelos cabelos, encara o chão e, por fim, olha nos meus olhos. — Eu não queria te magoar, Mayara. Mas minha mãe está de olho em mim. Pegou meu celular, viu nossas últimas mensagens, que esqueci de apagar, e me pressionou para saber quem era você. Eu não soube o que fazer.
Então ele sumiu por causa da mãe dele? Em vez de ter coragem de falar comigo, preferiu se esconder atrás da pressão dela?
— Então, é por isso? Por que sua mãe pegou seu celular? — A raiva transborda agora. Meu tom de voz escapa do controle. — O que eu sou para você, Caíque? Custava me avisar que estava bem? Poderia ser um bilhete, um recado, qualquer coisa. Pensei que a gente tivesse algo, mas, aparentemente, estava enganada.
Ele tenta se aproximar, mas dou um passo para trás. Não quero que ele me alcance agora. Não depois de tudo isso. A sensação de traição está estampada no meu rosto, mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim ainda quer ouvir uma explicação. Quero que ele diga que é só uma fase, mas sei que não é. Ele não foi transparente.
— Mayara, não é isso… — insiste, com a voz suave, tentando alcançar meu olhar. — Eu só não queria te envolver mais nisso. Minha mãe está me pressionando de todas as formas. Eu sei que errei, mas preciso de tempo para organizar as coisas.
Respiro fundo, tentando conter as lágrimas que ameaçam cair. Como ele pode me pedir para aceitar uma situação em que nem sei onde fico no seu mundo?
— Tempo? — repito, com um sorriso amargo nos lábios. — O que você espera, Caíque? Que eu me contente com essas migalhas de explicação, enquanto você aparece rodeado de meninas e planejando festas? — Seguro a voz, que começa a embargar. — Eu sempre te apoiei, sempre disse que tudo isso ia passar. Mas, antes, você me incluía na sua vida de alguma forma. Agora, não mais.
Ele parece prestes a dizer algo, mas me viro e começo a caminhar para a saída. Estou tão cansada de me importar, de tentar entender alguém que não está disposto a me incluir na sua vida de verdade.
Saio primeiro do esconderijo, mas ele vem atrás, em completo silêncio. Caminhamos pela rua: eu à frente, ele um pouco atrás, empurrando a bicicleta. Mesmo que tente me acompanhar, sinto a distância entre nós crescer.
Quando passamos pelas ruas mais quietas, o vento frio me corta ainda mais. Quero estar sozinha, longe desse peso no peito. Então, uma lágrima cai, e eu a deixo escorrer. Não tento segurá-la como antes. Sei que não conseguiria. É como se aquele silêncio e toda essa distância tivessem se transformado em um mar de sentimentos que não podem mais ser contidos.
Em nenhum momento olho para trás. Sei que, se olhasse, veria o olhar dele, a culpa estampada em seu rosto. Mas estou cansada. Cansada de esperar por respostas que talvez nunca cheguem.
Continuo caminhando, deixando a tristeza me envolver, enquanto a distância entre nós aumenta.
CaíqueEstar de castigo aos dezessete anos me parece um absurdo, mas aqui estou eu, preso dentro de casa. Pelo menos é assim que me sinto, enjaulado, e a sensação é além das paredes que me cercam. Desde que minha mãe pegou meu celular e viu a minha última troca de mensagens com a Mayara, minha vida virou um inferno. Ela surtou, fez um interrogatório digno de filme policial e, no fim, decretou meu castigo: sem celular, sem internet, sem sair de casa e sem direito a discutir. Nenhuma mensagem, nenhum contato com o mundo lá fora.Minha mãe nem sequer quer olhar na minha cara depois dessa confusão. Todos estão me tratando com a mesma frieza.Foi um erro meu ter esquecido de apagar as mensagens da Mayara. Não que houvesse algo tão comprometedor, mas minha mãe tem essa mania de querer controlar tudo ao meu redor e quando pegou o celular e leu as mensagens, ficou furiosa. Disse que eu estava “me desviando”, que eu estava me envolvendo com pessoas que poderiam “atrapalhar meu futuro”. Como se
CaíqueEu a vejo antes que ela me veja. Está sentada em um banco da praça, no caminho entre a escola e o café onde trabalha, mexendo no celular, alheia ao mundo ao redor. O vento bagunça seus cabelos escuros, e um leve sorriso se forma em seus lábios quando lê algo na tela. Meu coração acelera. Cada vez que a encontro, é como se fosse a primeira vez.Respiro fundo e caminho até ela, tentando ignorar o nervosismo que sempre me invade em sua presença. Ela levanta o olhar ao perceber que me aproximo e, por um breve instante, seu rosto se ilumina. Mas logo a hesitação retorna. Esse misto de felicidade e receio nos acompanha desde que começamos a nos envolver.— Oi — digo, tentando soar casual, mas sei que minha voz entrega um pouco da ansiedade.— Oi — responde, a voz suave, mas carregada de cuidado.Sento-me ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa. Olho para frente, observando os poucos transeuntes que caminham pela praça, esperando que o silêncio se desfaça por si só. E se desfaz
MayaraA garota refletida no espelho não sou eu. Ou talvez seja, mas em uma versão que não reconheço. Vestindo um vestido azul-claro, de tecido leve e delicado, emprestado por uma colega de trabalho, pareço deslocada. Meu cabelo, preso em um coque frouxo, deixa minha nuca à mostra, e os brincos pequenos brilham sob a luz fraca do quarto.Calço a sandália de salto baixo, também emprestada, depois de muita insistência. Recusei a opção do salto alto porque, se precisar andar muito, seria inviável. Coloco um pequeno curativo nos dedos para evitar machucá-los mais, já que o sapato é um número menor que o meu. Mesmo me sentindo estranha, sou grata à minha colega por me emprestar tudo isso quando comentei que tinha recebido um convite de aniversário daquele lado da cidade.Respiro fundo. Encaro meu reflexo mais uma vez. É como se eu estivesse invadindo um mundo que não me pertence.Não sei por que aceitei esse convite. Quer dizer, eu sei. Porque é o Caíque. E, porque, apesar de todo o medo,
CaíqueEla se foi.Fico parado no jardim, olhando para o portão por onde Mayara acabou de sair. Meus pés querem ir atrás dela, mas meu corpo não se move de imediato. Meu peito sobe e desce rápido, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona. Mas não é cansaço o que sinto. É um peso enorme que se instala no meu peito, uma mistura sufocante de culpa, raiva e frustração.Dentro da casa, a música continua, as risadas ecoam pelo salão, os brindes seguem como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver a pessoa mais importante para mim ir embora, machucada por causa da minha família. Como se a humilhação que ela sofreu não tivesse sido real.Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e aperto as mãos em punhos. Eu sabia que isso poderia acontecer. Sabia que minha famíli
No passado…CaíqueO sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontr
CaíqueDestranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.— Olá, senhor.— Oi!— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelm
MayaraA cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.Minhas manhãs começam bem cedo.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem