Caíque
Estar de castigo aos dezessete anos me parece um absurdo, mas aqui estou eu, preso dentro de casa. Pelo menos é assim que me sinto, enjaulado, e a sensação é além das paredes que me cercam. Desde que minha mãe pegou meu celular e viu a minha última troca de mensagens com a Mayara, minha vida virou um inferno. Ela surtou, fez um interrogatório digno de filme policial e, no fim, decretou meu castigo: sem celular, sem internet, sem sair de casa e sem direito a discutir. Nenhuma mensagem, nenhum contato com o mundo lá fora.
Minha mãe nem sequer quer olhar na minha cara depois dessa confusão. Todos estão me tratando com a mesma frieza.
Foi um erro meu ter esquecido de apagar as mensagens da Mayara. Não que houvesse algo tão comprometedor, mas minha mãe tem essa mania de querer controlar tudo ao meu redor e quando pegou o celular e leu as mensagens, ficou furiosa. Disse que eu estava “me desviando”, que eu estava me envolvendo com pessoas que poderiam “atrapalhar meu futuro”. Como se ela soubesse alguma coisa sobre mim.
Ela não me deixou explicar. Só gritou, confiscou o celular e decretou o castigo com a desculpa de:
— Você precisa focar nos estudos, Caíque. E eu não quero mais esse tipo de amizade para você.
“Esse tipo de amizade”.
A frase ainda ecoa na minha mente. Mayara não é um problema, estar com ela é a solução. Mas minha mãe a vê como um obstáculo, como algo que pode me desviar do caminho que ela mesma traçou para mim. Um caminho que eu nunca escolhi.
Nos primeiros dias, tentei argumentar e até mentir. Disse que ela era só uma amiga, que não tinha nada de mais. Mas minha mãe não é burra. Ela leu as mensagens, sentiu o tom nas entrelinhas, viu além das palavras escritas. E, pior, deixou claro que não aprovava nenhuma aprovação com alguém de fora do nosso meio. Segundo ela, eu devia focar nos estudos, na família, no meu futuro. Como se eu não tivesse o direito de decidir nada sobre minha própria vida.
E o que mais me irrita nisso tudo é a hipocrisia. Meus pais vivem falando sobre fazer parte da família, mas quando se trata de me ouvir, de entender o que quero, não existe diálogo. Só regras, ordens e expectativas.
Para piorar, fiquei gripado. Por dias, não tive forças para sair da cama e ir à escola ou ao cursinho.
Quando melhorei e voltei para a minha rotina, me arrependi assim que Mayara me ignorou pela manhã. A escola pareceu pior sem meu celular para me distrair entre as aulas e o acúmulo de atividades perdidas, me desanimaram. E, cada vez que vejo Mayara de longe, com aquele olhar que mistura raiva e decepção, sinto um aperto no peito. Eu queria falar com ela, explicar tudo. Mas como, se estou sendo vigiado o tempo todo?
Quando o sinal tocou, arrisquei e fui para o nosso esconderijo. Mayara também foi. Ela estava chateada comigo, e com razão. Não quis me ouvir, e achei melhor só respeitar sua vontade. Acompanhei-a até o trabalho e, mesmo à distância, sabia que ela chorava. Por minha culpa.
Eu me sentia ainda pior.
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— Mesmo que você não ande merecendo, vamos fazer uma festa para o seu aniversário — minha mãe anuncia assim que apareço na cozinha para tomar o café da manhã.
Não adianta ir contra seus planos. Será um daqueles eventos onde todo mundo da família aparece: primos distantes, tios que mal conheço, parceiros de negócios dos meus pais. Ela fala como se fosse algo incrível, mas eu sei que é só uma desculpa para exibir a casa e nossos bens para a grande elite e mostrar para todo mundo como somos a “família perfeita”.
— Quero você bem arrumado, e nada de ficar de cara fechada — ela continua enquanto desdobra seu guardanapo de tecido e o leva ao colo. — E, claro, sem celular.
Reviro os olhos. Como se eu precisasse desse lembrete.
Enquanto ela fala sobre os detalhes da festa, uma ideia surge na minha mente.
— Mãe — começo calmo, tentando parecer casual. — Posso levar alguém na festa?
Ela para de falar e me lança um olhar desconfiado.
— Quem?
Dou de ombros, tentando parecer despreocupado.
— Sei lá, algum amigo da escola.
— Não sei se é uma boa ideia. Você não tem muitos amigos que frequentam nossa casa e tem saído pouco. Melhor interagir com a família.
— Justamente por isso — retruco. — Não vejo meus poucos amigos há dias. Nem que seja só um. É o meu aniversário.
Ela suspira, pensativa com a minha cartada final. Sei que estou forçando a barra, mas preciso tentar. Se puder trazer alguém, talvez consiga falar com Mayara e convidá-la. É o meu aniversário de dezoito anos, estou bem perto de pôr os nossos planos em jogo. Quem sabe, se eles conhecessem ela, vissem o quão inteligente, linda e educada ela é, mudariam de ideia?
Seria mais fácil se eles aceitassem, não é? Posso ser sonhador nesse quesito, mas do jeito que estou, não dá mais. Estou exausto. Se não der certo como desejo, ao menos um recado eu vou dar: eu escolho com quem fico.
— Tudo bem — ela cede, por fim. — Mas quero saber exatamente quem é. Nada de surpresas.
Forço um sorriso.
— Beleza.
— Já sabe quem vai trazer?
Engulo em seco.
— Sim.
Ela arqueia a sobrancelha.
— E quem é?
Se eu disser Mayara, ela vai surtar.
— Gabriel — solto o primeiro nome que me vem à cabeça.
Ela suspira, parecendo aliviada.
— Ah, o Gabriel é um bom menino e de boa família. Tudo bem, pode convidá-lo. Talvez eu chame os pais dele também.
Forço um sorriso.
Agora só preciso conversar com Mayara. Quem sabe, agora, ela queira me ouvir. Também preciso convencê-la a vir à festa. E torcer para que a noite não vire outro desastre.
CaíqueEu a vejo antes que ela me veja. Está sentada em um banco da praça, no caminho entre a escola e o café onde trabalha, mexendo no celular, alheia ao mundo ao redor. O vento bagunça seus cabelos escuros, e um leve sorriso se forma em seus lábios quando lê algo na tela. Meu coração acelera. Cada vez que a encontro, é como se fosse a primeira vez.Respiro fundo e caminho até ela, tentando ignorar o nervosismo que sempre me invade em sua presença. Ela levanta o olhar ao perceber que me aproximo e, por um breve instante, seu rosto se ilumina. Mas logo a hesitação retorna. Esse misto de felicidade e receio nos acompanha desde que começamos a nos envolver.— Oi — digo, tentando soar casual, mas sei que minha voz entrega um pouco da ansiedade.— Oi — responde, a voz suave, mas carregada de cuidado.Sento-me ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa. Olho para frente, observando os poucos transeuntes que caminham pela praça, esperando que o silêncio se desfaça por si só. E se desfaz
MayaraA garota refletida no espelho não sou eu. Ou talvez seja, mas em uma versão que não reconheço. Vestindo um vestido azul-claro, de tecido leve e delicado, emprestado por uma colega de trabalho, pareço deslocada. Meu cabelo, preso em um coque frouxo, deixa minha nuca à mostra, e os brincos pequenos brilham sob a luz fraca do quarto.Calço a sandália de salto baixo, também emprestada, depois de muita insistência. Recusei a opção do salto alto porque, se precisar andar muito, seria inviável. Coloco um pequeno curativo nos dedos para evitar machucá-los mais, já que o sapato é um número menor que o meu. Mesmo me sentindo estranha, sou grata à minha colega por me emprestar tudo isso quando comentei que tinha recebido um convite de aniversário daquele lado da cidade.Respiro fundo. Encaro meu reflexo mais uma vez. É como se eu estivesse invadindo um mundo que não me pertence.Não sei por que aceitei esse convite. Quer dizer, eu sei. Porque é o Caíque. E, porque, apesar de todo o medo,
CaíqueEla se foi.Fico parado no jardim, olhando para o portão por onde Mayara acabou de sair. Meus pés querem ir atrás dela, mas meu corpo não se move de imediato. Meu peito sobe e desce rápido, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona. Mas não é cansaço o que sinto. É um peso enorme que se instala no meu peito, uma mistura sufocante de culpa, raiva e frustração.Dentro da casa, a música continua, as risadas ecoam pelo salão, os brindes seguem como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver a pessoa mais importante para mim ir embora, machucada por causa da minha família. Como se a humilhação que ela sofreu não tivesse sido real.Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e aperto as mãos em punhos. Eu sabia que isso poderia acontecer. Sabia que minha famíli
No passado…CaíqueO sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontr
CaíqueDestranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.— Olá, senhor.— Oi!— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelm
MayaraA cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.Minhas manhãs começam bem cedo.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem
MayaraO meu dia já começa em meio a provações diárias. Na verdade, os últimos dias têm sido difíceis. Faz uma semana que não vejo o Caíque, uma semana que parece uma eternidade. Tento me convencer de que tudo está bem, que ele tem seus motivos e que eu não deveria me preocupar tanto. Afinal, ele já ficou sem entrar em contato outras vezes. Mas é impossível não sentir o vazio deixado por seu silêncio, ainda mais porque esta é a primeira vez que ele demora tanto para dar um sinal de vida. Ele simplesmente desapareceu. E o pior de tudo: sem me dar nenhuma explicação.Ainda lembro da última vez que nos vimos. Ele estava dentro de um dos carros de sua família, passando pelo meu bairro. Nossa troca de olhares foi breve, mas intensa. Eu voltava da vendinha com algumas compras e, por sorte, segurava firme as sacolas, porque, no susto, poderia ter derrubado tudo no chão. Não sei para onde ele estava indo, nem o que estava pensando. Depois da discussão no café mais cedo, fui para a cozinha me