Caíque
Ela se foi.
Fico parado no jardim, olhando para o portão por onde Mayara acabou de sair. Meus pés querem ir atrás dela, mas meu corpo não se move de imediato. Meu peito sobe e desce rápido, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona. Mas não é cansaço o que sinto. É um peso enorme que se instala no meu peito, uma mistura sufocante de culpa, raiva e frustração.
Dentro da casa, a música continua, as risadas ecoam pelo salão, os brindes seguem como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver a pessoa mais importante para mim ir embora, machucada por causa da minha família. Como se a humilhação que ela sofreu não tivesse sido real.
Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e aperto as mãos em punhos. Eu sabia que isso poderia acontecer. Sabia que minha família não a aceitaria facilmente, que haveria olhares, cochichos, julgamentos. Mas parte de mim acreditava que, se ela estivesse ali, no meio deles, se pudessem conhecê-la, tudo seria diferente. Desde o momento em que Mayara entrou naquela casa, percebi a atenção. Me convenci de que era só curiosidade, que não havia maldade. Mas havia. E eu deixei acontecer.
Fui ingênuo.
A porta da casa se abre atrás de mim, e passos ecoam pelo piso de pedra. Não preciso me virar para saber quem é.
— O que foi, Caíque? — A voz da minha mãe chega até mim carregada de uma falsa preocupação.
Meu maxilar se contrai.
— Você sabe muito bem o que foi — digo, sem me virar.
Ela suspira, cruzando os braços.
— Não comece com isso.
Me viro devagar. Sinto o calor da raiva pulsando nas minhas têmporas.
— Não comece? — Dou uma risada seca, incrédula. — Não comece? — repito, minha voz carregada de ironia. — Vocês humilharam a Mayara. Fingiram aceitarem, que estavam sendo educados, e no fim trataram-na como se fosse uma esmola minha!
Minha mãe mantém a expressão serena, como se realmente não entendesse o motivo da minha revolta.
— Ninguém humilhou ninguém, Caíque. Apenas comentamos que ela é uma garota batalhadora, que…
— Que precisa da minha ajuda? — corto, minha voz afiada como uma lâmina. — Como se ela fosse um projeto de caridade? Como se eu tivesse feito um favor por trazê-la aqui?
Ela suspira novamente, um pouco mais impaciente dessa vez.
— Meu filho, o mundo funciona assim. Não é culpa minha se as pessoas enxergam as coisas dessa maneira.
Meu sangue ferve com tamanha falsidade.
— O mundo não, mãe. Você. Meu pai. Os seus amigos. Vocês decidiram que ela não pertence a esse lugar. Vocês decidiram que ela não é digna de estar aqui.
Ela não responde de imediato. Apenas me observa, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado.
— Agora você está exagerando — ela diz, ajeitando a pulseira no pulso. Um gesto pequeno, mas que me irrita profundamente, como se tudo o que eu estivesse sentindo não passasse de um incômodo irrelevante para ela.
Dou um passo à frente.
— Não, mãe. O que é exagero é vocês fingirem estarem tratando Mayara bem e, pelas costas, falarem dela. O que vocês falaram para os outros? Que ela é uma menina necessitada, que sou um bom garoto por estar ajudando? Essa festa e esse circo armado são um exagero! Isso sim é ridículo!
Ela franze o cenho, como se minha resposta fosse um desrespeito imperdoável.
— Você precisa entender, Caíque. Essa garota não é para você.
Minha respiração trava. A raiva me faz ver tudo ao redor com mais nitidez. As luzes quentes da festa, os convidados bem-vestidos, os garçons servindo taças de espumante. Esse ambiente, essa realidade, não aceita Mayara. Para eles, ela é uma intrusa.
Minha mãe continua:
— Pensa que acreditei que era só uma amiga? É claro que não é! — Ela sorri, desdenhosa. — Meu filho, entenda. Ela é diferente. Ela não faz parte da nossa realidade. Não quero que você se envolva de uma maneira que vá te prejudicar no futuro. Você tem um futuro incrível pela frente. Uma família estruturada. Um caminho já traçado. Não quero que você se envolva com alguém que possa te atrapalhar.
Dou um passo para trás, como se as palavras dela fossem um golpe físico.
— Atrapalhar? — minha voz sai mais baixa, quase um sussurro. — Amar alguém agora é um problema?
Ela me olha como se eu fosse uma criança ingênua.
— Você ainda é muito jovem para entender certas coisas.
— Não, mãe — minha voz sai firme. — Você que não entende.
Afasto-me e entro na casa. O calor sufocante do ambiente me atinge, mas ignoro tudo ao redor. Meus olhos percorrem o salão, procurando algum vestígio dela, alguma coisa que comprove que Mayara esteve aqui. Mas tudo já segue normalmente. Como se sua presença nunca tivesse existido.
Meus dedos deslizam pelo bolso da calça e puxo o celular que peguei de volta mais cedo. Minhas mãos tremem enquanto abro o chat com Mayara.
Digito: Onde você está?
A mensagem fica ali, parada na tela, sem resposta. Meus olhos ficam fixos no celular, esperando que os três pontinhos de digitação apareçam, esperando qualquer sinal de que ela ainda quer falar comigo.
Mas nada acontece.
— Caíque, podemos conversar? — meu pai me chama.
Me obrigo a desviar atenção do celular e encará-lo.
— Se for para me dizer que ela não pertence a essa família, já sei a resposta — digo, cruzando os braços.
Ele suspira, passando a mão pelo cabelo já levemente grisalho.
— Ninguém disse isso. Mas você precisa entender que sua vida está traçada para coisas maiores.
Solto um riso incrédulo.
— Coisas maiores? Vocês falam como se ela fosse pequena. Como se o amor que sinto por ela fosse insignificante.
— Não é sobre amor, Caíque. É sobre escolhas certas. Você precisa estar com alguém que te ajude a crescer, não alguém que pode te arrastar para dificuldades.
Meus olhos queimam.
— Sabe o que é mais engraçado? Eu achava que vocês me amavam o suficiente para aceitar minha felicidade, para confiarem no que me faz bem. Mas, no fim, tudo o que importa para vocês é aparência. Status.
Meu pai fica em silêncio. Ele sabe que tenho razão. Mas, mesmo assim, não diz nada.
Olho para a porta novamente. Decido o que tenho que fazer e sigo até ela.
— Caíque! — Meu pai insiste. Paro por um segundo, apenas o suficiente para ouvir suas palavras. — Não faça uma besteira.
Besteira?
Engulo em seco.
Mayara sempre soube que não seria aceita. Ela tentou me avisar. Mas eu insisti. Achei que conseguiria mudar alguma coisa.
Mas eu estava errado.
Saio pela porta e começo a correr. O ar frio da noite me acerta em cheio, mas não me importo. Preciso encontrá-la.
Preciso dizer que, para mim, ela nunca foi e nunca será invisível.
No passado…CaíqueO sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontr
CaíqueDestranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.— Olá, senhor.— Oi!— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelm
MayaraA cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.Minhas manhãs começam bem cedo.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem
MayaraO meu dia já começa em meio a provações diárias. Na verdade, os últimos dias têm sido difíceis. Faz uma semana que não vejo o Caíque, uma semana que parece uma eternidade. Tento me convencer de que tudo está bem, que ele tem seus motivos e que eu não deveria me preocupar tanto. Afinal, ele já ficou sem entrar em contato outras vezes. Mas é impossível não sentir o vazio deixado por seu silêncio, ainda mais porque esta é a primeira vez que ele demora tanto para dar um sinal de vida. Ele simplesmente desapareceu. E o pior de tudo: sem me dar nenhuma explicação.Ainda lembro da última vez que nos vimos. Ele estava dentro de um dos carros de sua família, passando pelo meu bairro. Nossa troca de olhares foi breve, mas intensa. Eu voltava da vendinha com algumas compras e, por sorte, segurava firme as sacolas, porque, no susto, poderia ter derrubado tudo no chão. Não sei para onde ele estava indo, nem o que estava pensando. Depois da discussão no café mais cedo, fui para a cozinha me
CaíqueEstar de castigo aos dezessete anos me parece um absurdo, mas aqui estou eu, preso dentro de casa. Pelo menos é assim que me sinto, enjaulado, e a sensação é além das paredes que me cercam. Desde que minha mãe pegou meu celular e viu a minha última troca de mensagens com a Mayara, minha vida virou um inferno. Ela surtou, fez um interrogatório digno de filme policial e, no fim, decretou meu castigo: sem celular, sem internet, sem sair de casa e sem direito a discutir. Nenhuma mensagem, nenhum contato com o mundo lá fora.Minha mãe nem sequer quer olhar na minha cara depois dessa confusão. Todos estão me tratando com a mesma frieza.Foi um erro meu ter esquecido de apagar as mensagens da Mayara. Não que houvesse algo tão comprometedor, mas minha mãe tem essa mania de querer controlar tudo ao meu redor e quando pegou o celular e leu as mensagens, ficou furiosa. Disse que eu estava “me desviando”, que eu estava me envolvendo com pessoas que poderiam “atrapalhar meu futuro”. Como se
CaíqueEu a vejo antes que ela me veja. Está sentada em um banco da praça, no caminho entre a escola e o café onde trabalha, mexendo no celular, alheia ao mundo ao redor. O vento bagunça seus cabelos escuros, e um leve sorriso se forma em seus lábios quando lê algo na tela. Meu coração acelera. Cada vez que a encontro, é como se fosse a primeira vez.Respiro fundo e caminho até ela, tentando ignorar o nervosismo que sempre me invade em sua presença. Ela levanta o olhar ao perceber que me aproximo e, por um breve instante, seu rosto se ilumina. Mas logo a hesitação retorna. Esse misto de felicidade e receio nos acompanha desde que começamos a nos envolver.— Oi — digo, tentando soar casual, mas sei que minha voz entrega um pouco da ansiedade.— Oi — responde, a voz suave, mas carregada de cuidado.Sento-me ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa. Olho para frente, observando os poucos transeuntes que caminham pela praça, esperando que o silêncio se desfaça por si só. E se desfaz
MayaraA garota refletida no espelho não sou eu. Ou talvez seja, mas em uma versão que não reconheço. Vestindo um vestido azul-claro, de tecido leve e delicado, emprestado por uma colega de trabalho, pareço deslocada. Meu cabelo, preso em um coque frouxo, deixa minha nuca à mostra, e os brincos pequenos brilham sob a luz fraca do quarto.Calço a sandália de salto baixo, também emprestada, depois de muita insistência. Recusei a opção do salto alto porque, se precisar andar muito, seria inviável. Coloco um pequeno curativo nos dedos para evitar machucá-los mais, já que o sapato é um número menor que o meu. Mesmo me sentindo estranha, sou grata à minha colega por me emprestar tudo isso quando comentei que tinha recebido um convite de aniversário daquele lado da cidade.Respiro fundo. Encaro meu reflexo mais uma vez. É como se eu estivesse invadindo um mundo que não me pertence.Não sei por que aceitei esse convite. Quer dizer, eu sei. Porque é o Caíque. E, porque, apesar de todo o medo,