Mayara
A garota refletida no espelho não sou eu. Ou talvez seja, mas em uma versão que não reconheço. Vestindo um vestido azul-claro, de tecido leve e delicado, emprestado por uma colega de trabalho, pareço deslocada. Meu cabelo, preso em um coque frouxo, deixa minha nuca à mostra, e os brincos pequenos brilham sob a luz fraca do quarto.
Calço a sandália de salto baixo, também emprestada, depois de muita insistência. Recusei a opção do salto alto porque, se precisar andar muito, seria inviável. Coloco um pequeno curativo nos dedos para evitar machucá-los mais, já que o sapato é um número menor que o meu. Mesmo me sentindo estranha, sou grata à minha colega por me emprestar tudo isso quando comentei que tinha recebido um convite de aniversário daquele lado da cidade.
Respiro fundo. Encaro meu reflexo mais uma vez. É como se eu estivesse invadindo um mundo que não me pertence.
Não sei por que aceitei esse convite. Quer dizer, eu sei. Porque é o Caíque. E, porque, apesar de todo o medo, apesar de todas as razões que gritam para eu ficar longe do seu mundo, parte de mim deseja estar ao lado dele sem me esconder. Pelo menos por uma noite.
Pego minha bolsa e saio de casa sem alarde. Minha mãe, uma versão mais velha de mim, me observa do sofá, o olhar cansado e resignado. Ela não pergunta para onde vou, mas sei que se preocupa. Avisei dias antes que tinha recebido um convite de aniversário de um colega da minha sala e que não sabia a que horas a festa acabaria. Ela concordou, mas quer me avisar de algo, me impedir, me proteger. Mas não diz nada. Apenas assente com a cabeça, e nesse gesto, entendo quase tudo o que está nas entrelinhas.
Minha mãe está desconfiada desde dois dias atrás, quando cheguei com um pequeno bolo de aniversário. Disse que ganhei no trabalho e trouxe para comermos juntos depois do jantar. Mas a verdade é que Caíque enviou um entregador com o presente dentro de uma caixa. Fiquei emocionada. Foi a primeira vez que ganhei um bolo de aniversário. Tirei uma foto para guardar a recordação e, mesmo com a câmera ruim do meu celular antigo, é a foto mais significativa que tenho.
Isso porque não tenho nenhuma com o Caíque. Achei melhor não arriscar e alguém ver.
Mesmo com os sinais, ninguém me questionou e, por isso, não falei nada. Deixo essas preocupações para o futuro e saio de casa. Caminho até o ponto de ônibus, munida de parte das moedas que ganho de gorjeta. Aguardo ao lado de outras pessoas a chegada do ônibus. Vou conseguir pegar o último horário para ir à festa, mas depois não haverá mais nenhum. Tudo bem. Deixo para pensar em como voltar mais tarde.
No caminho, o nervosismo aperta meu estômago. Minha respiração está acelerada e minhas mãos estão geladas quando desço do ônibus. Sigo para o endereço que Caíque me passou. Ainda a uma certa distância, vejo que sua casa é uma mansão, muito maior do que qualquer lugar que já vi. As luzes brilham do lado de dentro, e o som abafado de risadas e música se espalha pela rua.
Caíque me espera no portão, elegante em seu traje social. Ele sorri ao me ver e, por um instante, todo o receio se esvai.
— Você está linda — ele diz baixinho, puxando-me pela mão e me envolvendo em um abraço.
Sorrio, mas não consigo responder. Minha garganta está seca.
Ele encaixa minha mão na curva de seu braço e me guia para o interior da casa. Imediatamente, me sinto deslocada de novo. Há muita gente, muitos rostos que não conheço. Pessoas bem-vestidas, sorrindo, conversando, segurando taças de bebida. O cheiro de perfume caro e comida refinada preenche o ar.
Então, os olhos caem sobre nós. Não de forma ostensiva, mas curiosa.
— Vem — ele sussurra, puxando-me até onde seus pais estão.
Seu pai é alto e tem uma expressão severa, mas parece cordial. Sua mãe, elegante em um vestido vinho, me analisa por um momento antes de forçar um sorriso.
— Mãe, pai, essa é a Mayara — Caíque diz, firme. — Minha amiga.
A palavra “amiga” pesa na minha pele, mas me forço a manter a postura e sorrir com simpatia.
— Ah, que bom conhecê-la, Mayara — sua mãe diz, com uma doçura ensaiada na voz. Seu pai apenas assente com a cabeça, mas não parece incomodado.
— É um prazer conhecê-los.
— Você estuda com o Caíque? — ele pergunta.
— Sim — respondo, tentando não soar tensa.
— E com o Gabriel também? — A mãe dele toma a frente. Concordo. — Ah, sim. Ele foi convidado também, mas Caíque me disse que ele tinha compromisso. Aí chamou outra pessoa. — Ela encara Caíque e depois se volta para mim, deixando claro que eu não era a primeira opção de convite. — E trabalha também, não é? No café perto da escola?
Sinto o rubor subir pelo meu pescoço. Não sei se ela está apenas sendo educada ou se há algo por trás da pergunta.
— Sim, trabalho lá.
— Que menina batalhadora — ela comenta, trocando um olhar com o marido.
Há um instante de silêncio. Então, Caíque segura minha mão por um segundo e me puxa para longe.
— Desculpa — ele murmura no meu ouvido. — Estão só curiosos.
Assinto, mas algo dentro de mim se inquieta.
A festa segue, e Caíque faz questão de ficar ao meu lado. Ele me apresenta aos seus irmãos e a alguns amigos, e logo estamos na pista de dança improvisada. Ele segura minha cintura, me conduz com delicadeza. Meus pés seguem os seus, e, por alguns minutos, esqueço onde estou. Esqueço do medo. Só há nós dois, rindo, girando, sentindo a música.
Mas a ilusão não dura muito.
Com o tempo, percebo que a atenção das pessoas ao nosso redor muda. Primeiro, sou incluída em algumas conversas, mas, aos poucos, me torno invisível.
A mãe de Caíque passa por nós e toca o ombro de um convidado, murmurando algo. O homem ri. Em seguida, percebo cochichos, olhares discretos.
— Quem é ela? — uma mulher pergunta a outra, do outro lado da sala.
— Uma amiga do Caíque — responde alguém. Mas há algo mais na voz. Um tom de desdém.
— Ele sempre foi generoso — outro homem comenta, e há uma risada abafada.
Eu entendo.
Não sou uma convidada. Não sou bem-vinda.
Sou a menina “necessitada” que Caíque trouxe por pena. A garota simples que está aproveitando uma noite em um lugar onde não pertence.
Minha respiração falha. Meu peito aperta.
— May? — Caíque percebe minha expressão e segura minha mão.
— Acho que preciso de um pouco de ar — digo, forçando um sorriso.
Saio, ignorando os olhares. No jardim, respiro fundo, tentando acalmar o tremor em minhas mãos.
Caíque chega logo atrás.
— O que houve?
Olho para ele. Quero dizer tantas coisas, mas as palavras ficam presas.
— Você não percebeu? — minha voz sai mais amarga do que eu gostaria.
Ele franze a testa, confuso.
— Do que você está falando?
Solto um riso curto, sem humor.
— Eles acham que sou um projeto de caridade seu.
A expressão dele se fecha.
— Isso não é verdade.
— Mas é assim que eles me tratam!
Vejo o arrependimento nos olhos dele. Mas também vejo algo mais.
Dúvida.
— Vou embora.
— Mayara…
— Por favor, não insista.
Viro-me e saio pelo portão, sentindo o peso daquela noite nos ombros.
Porque talvez nunca sejamos aceitos de verdade.
CaíqueEla se foi.Fico parado no jardim, olhando para o portão por onde Mayara acabou de sair. Meus pés querem ir atrás dela, mas meu corpo não se move de imediato. Meu peito sobe e desce rápido, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona. Mas não é cansaço o que sinto. É um peso enorme que se instala no meu peito, uma mistura sufocante de culpa, raiva e frustração.Dentro da casa, a música continua, as risadas ecoam pelo salão, os brindes seguem como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver a pessoa mais importante para mim ir embora, machucada por causa da minha família. Como se a humilhação que ela sofreu não tivesse sido real.Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e aperto as mãos em punhos. Eu sabia que isso poderia acontecer. Sabia que minha famíli
No passado…CaíqueO sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontr
CaíqueDestranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.— Olá, senhor.— Oi!— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelm
MayaraA cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.Minhas manhãs começam bem cedo.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem
MayaraO meu dia já começa em meio a provações diárias. Na verdade, os últimos dias têm sido difíceis. Faz uma semana que não vejo o Caíque, uma semana que parece uma eternidade. Tento me convencer de que tudo está bem, que ele tem seus motivos e que eu não deveria me preocupar tanto. Afinal, ele já ficou sem entrar em contato outras vezes. Mas é impossível não sentir o vazio deixado por seu silêncio, ainda mais porque esta é a primeira vez que ele demora tanto para dar um sinal de vida. Ele simplesmente desapareceu. E o pior de tudo: sem me dar nenhuma explicação.Ainda lembro da última vez que nos vimos. Ele estava dentro de um dos carros de sua família, passando pelo meu bairro. Nossa troca de olhares foi breve, mas intensa. Eu voltava da vendinha com algumas compras e, por sorte, segurava firme as sacolas, porque, no susto, poderia ter derrubado tudo no chão. Não sei para onde ele estava indo, nem o que estava pensando. Depois da discussão no café mais cedo, fui para a cozinha me
CaíqueEstar de castigo aos dezessete anos me parece um absurdo, mas aqui estou eu, preso dentro de casa. Pelo menos é assim que me sinto, enjaulado, e a sensação é além das paredes que me cercam. Desde que minha mãe pegou meu celular e viu a minha última troca de mensagens com a Mayara, minha vida virou um inferno. Ela surtou, fez um interrogatório digno de filme policial e, no fim, decretou meu castigo: sem celular, sem internet, sem sair de casa e sem direito a discutir. Nenhuma mensagem, nenhum contato com o mundo lá fora.Minha mãe nem sequer quer olhar na minha cara depois dessa confusão. Todos estão me tratando com a mesma frieza.Foi um erro meu ter esquecido de apagar as mensagens da Mayara. Não que houvesse algo tão comprometedor, mas minha mãe tem essa mania de querer controlar tudo ao meu redor e quando pegou o celular e leu as mensagens, ficou furiosa. Disse que eu estava “me desviando”, que eu estava me envolvendo com pessoas que poderiam “atrapalhar meu futuro”. Como se
CaíqueEu a vejo antes que ela me veja. Está sentada em um banco da praça, no caminho entre a escola e o café onde trabalha, mexendo no celular, alheia ao mundo ao redor. O vento bagunça seus cabelos escuros, e um leve sorriso se forma em seus lábios quando lê algo na tela. Meu coração acelera. Cada vez que a encontro, é como se fosse a primeira vez.Respiro fundo e caminho até ela, tentando ignorar o nervosismo que sempre me invade em sua presença. Ela levanta o olhar ao perceber que me aproximo e, por um breve instante, seu rosto se ilumina. Mas logo a hesitação retorna. Esse misto de felicidade e receio nos acompanha desde que começamos a nos envolver.— Oi — digo, tentando soar casual, mas sei que minha voz entrega um pouco da ansiedade.— Oi — responde, a voz suave, mas carregada de cuidado.Sento-me ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa. Olho para frente, observando os poucos transeuntes que caminham pela praça, esperando que o silêncio se desfaça por si só. E se desfaz