Caíque
Destranco a bicicleta que está sozinha no pátio. Com o grande espaço agora vazio, sinto como se estivesse preso em um tipo de lembrete cruel de que, fora daquele santuário, sou apenas mais um cara sozinho.
Balanço a cabeça negativamente, tentando não pensar nisso, e me apresso em subir na bicicleta e pedalar o mais rápido que consigo até chegar em casa. Esforço-me além dos meus limites e ao chegar, deixo a bicicleta de qualquer jeito na entrada e subo correndo pelas escadas para me arrumar e ir para o cursinho. Vou chegar um pouco atrasado, mas não vou perder a aula.
Com uma velocidade admirável, saio correndo devidamente vestido, passo pela cozinha e pego uma fruta. Continuo correndo e, estando do lado de fora, penso se consigo pedalar tão rápido quanto vim. Mudo de ideia assim que vejo um dos motoristas se aproximar do carro e abrir a porta do banco de trás, dando um sinal discreto para eu entrar.
— Olá, senhor.
— Oi!
— Sua mãe falou que você chegaria atrasado e que provavelmente precisaria de alguém aqui — ele conta, quando estou prestes a tomar meu assento.
— Ela acertou dessa vez. — Dou o braço a torcer.
Eu me acomodo, e não demoramos para estar na estrada. Consigo descansar um pouco pelo trajeto e, quando chego, me preparo para passar as próximas horas sentado, estudando incessantemente.
— Estarei esperando o senhor quando sair. — O motorista avisa quando desço.
— Ok. Obrigado.
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No fim do dia, retorno para casa. Exausto, mas com o coração ainda agitado pelo encontro de mais cedo com Mayara. Desço do carro, agradeço o trabalho do motorista, desejo boa noite e ao me afastar controlo a vontade de assobiar e caminhar com passos dançantes. Minha mãe reprovaria minha ação como inadequada e me atacaria com perguntas.
Passo pela entrada, e a mudança na atmosfera é perceptível. A própria frieza impessoal é quem me recepciona. Minha mãe, com o olhar firme e a voz contida, me analisa de cima a baixo, como se estivesse procurando algum problema para consertar.
— Onde você estava?
— No curso.
— Agora eu sei. Digo, quando saiu da escola. Por que se atrasou? — Questiona sobre minha ausência e tento disfarçar o sorriso que insiste em aparecer ao recordar o real motivo. Mas sei que cada palavra dita por ela carrega a pressão de um mundo que não aceita o que sinto ou o que quero.
— Eu…
— Anda, Caíque. Por que você demorou tanto? — indaga minha mãe, sem tanta paciência, enquanto meu pai, meus dois irmãos e minha irmã se aproximam e, em silêncio, seguem para a cozinha, trocando olhares de reprovação.
— Eu… Eu tive um imprevisto.
— Qual imprevisto?
— A bicicleta estava com o pneu murcho — falo a primeira coisa que me vem à mente.
— Ela parecia ótima quando tirei do meio do meu caminho para entrar — o tom de reprovação está ali.
— Foi difícil para chegar em uma bicicletaria e pedir para encher, mas deu certo. Esqueci no meio do caminho porque estava atrasado, desculpa. — Abaixo a cabeça, não querendo demonstrar nenhum sinal de que estou mentindo. Com toda a certeza, ela perceberia.
— Hum, está certo. Que isso não se repita. — Concordo. — Agora vamos jantar, estávamos todos te esperando.
Não discuto, sigo-a para a cozinha e me acomodo.
Enquanto o jantar transcorre entre conversas forçadas e sorrisos mecânicos, deixo de ouvir meus irmãos contando sobre suas vitórias e planos ambiciosos para pensar em algo mais interessante. Minha mente vagueia para aquele cantinho secreto onde, por alguns minutos, fui livre para ser quem realmente sou. Lembro-me dos detalhes: o toque suave dos cabelos de Mayara, o cheiro floral, o calor dos braços dela, o brilho tímido em seus olhos e a sensação de que, ali, não havia julgamentos, apenas a certeza de um amor verdadeiro e uma felicidade genuína.
Durante a refeição, o peso da tradição e da expectativa imposta sobre mim e meus irmãos se torna quase insuportável. Não sei se eles se sentem estranhos também ou se já se acostumaram com nossas vidas já com enredo pronto, só esperando para desenvolvermos os papéis impostos por nossos pais. Tenho medo de perguntar e descobrir que só eu me sinto assim, piorando ainda mais minha situação atual.
Cada comentário, cada olhar direcionado a mim me lembram que estou dividido entre dois mundos: o da perfeição e das imposições, e o da liberdade e da paixão que só Mayara me proporciona. Meu coração clama por um futuro onde possa ser eu mesmo, ter a possibilidade de fazer minhas próprias escolhas, sem máscaras nem medos, sem me preocupar de estar sendo inadequado, mas a realidade se impõe com a rigidez de uma rotina que não aceita desvios.
Eu poderia me rebelar? Poderia questionar? O que me aconteceria e falasse “não”? Meus dois irmãos mais velhos nunca se opuseram a seguir outro caminho que não o que nossos pais ordenam. Eu segui o aprendizado. Minha irmã, a mais nova, segue o mesmo caminho. Temos de tudo do bom e do melhor, não é? Esse seria o preço a pagar para vivermos uma vida com tantos privilégios como a nossa?
Depois do jantar, retomo a solidão do meu quarto, onde as paredes parecem ecoar os tantos segredos que compartilhei com Mayara neste último ano. Ela é bolsista e já a havia visto na escola em anos anteriores, andando pelos corredores nas trocas de aulas, mas foi quando estávamos na mesma que nos aproximamos. Não propositalmente, por mais que eu me visse curioso com sua beleza e me sentisse atraído por sua presença, admirado em todas às vezes que ela levantava a mão e respondia a alguma questão complexa com maestria. Sabia éramos totalmente opostos, desde o lugar onde moramos, nossas famílias e poder aquisitivo. Eu sabia que não deveria me aproximar, mas não consegui evitar.
Um dia, tínhamos trabalho em grupo para fazer e conversamos muito, pouco foi sobre o trabalho em si. Não demorou para nos tornarmos amigos e, depois de um beijo roubado, a fim de não chamar atenção, começamos a nos ver escondidos. Tudo o que envolve a nossa relação demanda muito esforço. Não quero esconder o nosso namoro, mas não sei como seria falar sobre ela para meus pais. Na verdade, eu sei. Minha mãe não aceitaria. Por isso, aguardo ansiosamente pela nossa maioridade. Assim que acabar o ano, pretendo assumir o que temos e enfim, vivermos nossas vidas de preferência bem longe daqui.
Sento-me à mesa de estudos ao lado da cama, pego meu caderno e escrevo o que está me consumindo, em uma tentativa de organizar o turbilhão de pensamentos e sentimentos. Em cada linha, confesso a dualidade que me consome: a obrigação de pertencer a uma família que valoriza a aparência e o anseio de viver um amor genuíno, mesmo que proibido.
Enquanto a noite avança, recebo uma mensagem de Mayara: um breve “boa noite, meu amor. Eu te amo!” que, mesmo simples, enche meu peito de esperança. Respondo, e com a promessa silenciosa de que, apesar dos desafios, não desistirei dos planos que traçamos juntos. Sei que amanhã, assim que vê-la, encontrarei forças para lutar, não só contra o mundo lá fora, mas contra tudo e todos que tentarem nos separar.
Fecho os olhos e, por um instante, deixo que o suave eco da voz de Mayara me conduza para um futuro onde as barreiras se transformem em pontes. E, mesmo que o peso da expectativa insista em me lembrar das dificuldades, dentro de mim pulsa a convicção de que, um dia, viverei livre para ser verdadeiramente feliz ao lado de quem eu amo.
MayaraA cidade onde vivo é Rivara. Ela é dividida em duas partes, e essa divisão evidencia seus contrastes. De um lado, há bairros iluminados e cheios de opulência; do outro, áreas negligenciadas e deterioradas. Pertenço à segunda opção. Nasci do lado pobre e sem acessibilidades; toda a minha família veio desse mesmo lugar. A precariedade sempre esteve à nossa mesa, o trabalho árduo nos faz companhia e o cansaço se deita em nossa cama. Eu poderia esmorecer, como muitos familiares, aceitar e apenas sobreviver, mas resolvi que quero ir contra as estatísticas e mudar a minha realidade.Trabalho meio período em um café perto do prédio da escola onde estudo. É corrido, mas, para mim, representa um refúgio em meio a essa realidade dura e uma possibilidade de melhor remuneração do que se eu trabalhasse no meu lado da cidade. Todos os dias, enfrento uma rotina que pesa tanto quanto os olhares julgadores de quem não gosta de me ver “usufruir” do que não é meu.Minhas manhãs começam bem cedo.
Caíque A camisa social branca continua levemente amarrotada, mas não tenho paciência para pedir que a passem novamente. Deslizo a palma da mão sobre o tecido, tentando inutilmente alisar as dobras enquanto prendo os botões às pressas. A gravata escorrega pelos meus dedos pela terceira vez. Tento prender a ponta com mais firmeza, mas ela insiste em se rebelar, como se desse uma resposta silenciosa de que esse será o menor dos meus problemas se comparado ao caos que minha mãe está prestes a promover.— Eu não acredito que você teve a coragem de sair por aí e se meter numa briga desse jeito! — A voz dela atravessa a porta do meu quarto como uma lâmina afiada. Ela tem esse jeito de falar que parece querer atravessar a pele, cutucar a alma e mostrar onde dói. — Você sabe que as pessoas vão falar, não sabe?Sua voz transborda reprovação. Ela já está vestida para o evento, com seu vestido impecável, cabelos presos em um penteado elaborado, maquiagem bem feita e a postura rígida de quem tem
MayaraO meu dia já começa em meio a provações diárias. Na verdade, os últimos dias têm sido difíceis. Faz uma semana que não vejo o Caíque, uma semana que parece uma eternidade. Tento me convencer de que tudo está bem, que ele tem seus motivos e que eu não deveria me preocupar tanto. Afinal, ele já ficou sem entrar em contato outras vezes. Mas é impossível não sentir o vazio deixado por seu silêncio, ainda mais porque esta é a primeira vez que ele demora tanto para dar um sinal de vida. Ele simplesmente desapareceu. E o pior de tudo: sem me dar nenhuma explicação.Ainda lembro da última vez que nos vimos. Ele estava dentro de um dos carros de sua família, passando pelo meu bairro. Nossa troca de olhares foi breve, mas intensa. Eu voltava da vendinha com algumas compras e, por sorte, segurava firme as sacolas, porque, no susto, poderia ter derrubado tudo no chão. Não sei para onde ele estava indo, nem o que estava pensando. Depois da discussão no café mais cedo, fui para a cozinha me
CaíqueEstar de castigo aos dezessete anos me parece um absurdo, mas aqui estou eu, preso dentro de casa. Pelo menos é assim que me sinto, enjaulado, e a sensação é além das paredes que me cercam. Desde que minha mãe pegou meu celular e viu a minha última troca de mensagens com a Mayara, minha vida virou um inferno. Ela surtou, fez um interrogatório digno de filme policial e, no fim, decretou meu castigo: sem celular, sem internet, sem sair de casa e sem direito a discutir. Nenhuma mensagem, nenhum contato com o mundo lá fora.Minha mãe nem sequer quer olhar na minha cara depois dessa confusão. Todos estão me tratando com a mesma frieza.Foi um erro meu ter esquecido de apagar as mensagens da Mayara. Não que houvesse algo tão comprometedor, mas minha mãe tem essa mania de querer controlar tudo ao meu redor e quando pegou o celular e leu as mensagens, ficou furiosa. Disse que eu estava “me desviando”, que eu estava me envolvendo com pessoas que poderiam “atrapalhar meu futuro”. Como se
CaíqueEu a vejo antes que ela me veja. Está sentada em um banco da praça, no caminho entre a escola e o café onde trabalha, mexendo no celular, alheia ao mundo ao redor. O vento bagunça seus cabelos escuros, e um leve sorriso se forma em seus lábios quando lê algo na tela. Meu coração acelera. Cada vez que a encontro, é como se fosse a primeira vez.Respiro fundo e caminho até ela, tentando ignorar o nervosismo que sempre me invade em sua presença. Ela levanta o olhar ao perceber que me aproximo e, por um breve instante, seu rosto se ilumina. Mas logo a hesitação retorna. Esse misto de felicidade e receio nos acompanha desde que começamos a nos envolver.— Oi — digo, tentando soar casual, mas sei que minha voz entrega um pouco da ansiedade.— Oi — responde, a voz suave, mas carregada de cuidado.Sento-me ao seu lado, mantendo uma distância respeitosa. Olho para frente, observando os poucos transeuntes que caminham pela praça, esperando que o silêncio se desfaça por si só. E se desfaz
MayaraA garota refletida no espelho não sou eu. Ou talvez seja, mas em uma versão que não reconheço. Vestindo um vestido azul-claro, de tecido leve e delicado, emprestado por uma colega de trabalho, pareço deslocada. Meu cabelo, preso em um coque frouxo, deixa minha nuca à mostra, e os brincos pequenos brilham sob a luz fraca do quarto.Calço a sandália de salto baixo, também emprestada, depois de muita insistência. Recusei a opção do salto alto porque, se precisar andar muito, seria inviável. Coloco um pequeno curativo nos dedos para evitar machucá-los mais, já que o sapato é um número menor que o meu. Mesmo me sentindo estranha, sou grata à minha colega por me emprestar tudo isso quando comentei que tinha recebido um convite de aniversário daquele lado da cidade.Respiro fundo. Encaro meu reflexo mais uma vez. É como se eu estivesse invadindo um mundo que não me pertence.Não sei por que aceitei esse convite. Quer dizer, eu sei. Porque é o Caíque. E, porque, apesar de todo o medo,
CaíqueEla se foi.Fico parado no jardim, olhando para o portão por onde Mayara acabou de sair. Meus pés querem ir atrás dela, mas meu corpo não se move de imediato. Meu peito sobe e desce rápido, como se eu tivesse acabado de correr uma maratona. Mas não é cansaço o que sinto. É um peso enorme que se instala no meu peito, uma mistura sufocante de culpa, raiva e frustração.Dentro da casa, a música continua, as risadas ecoam pelo salão, os brindes seguem como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse acabado de ver a pessoa mais importante para mim ir embora, machucada por causa da minha família. Como se a humilhação que ela sofreu não tivesse sido real.Fecho os olhos por um instante, respiro fundo e aperto as mãos em punhos. Eu sabia que isso poderia acontecer. Sabia que minha famíli
No passado…CaíqueO sino da última aula ecoa pelos corredores da escola, anunciando o fim de mais um dia cansativo de estudos, julgamentos silenciosos e comentários maldosos da grande maioria dos alunos que se orgulham de serem os melhores. Demoro a guardar meu material na mochila, esperando que todos saiam para seguir o caminho já tão habitual.Saio da sala de aula e, a cada passo que dou pelo corredor, sinto meu coração bater acelerado. Ao mesmo tempo, tento controlar meus pensamentos a mil e o nervosismo aparente, sem querer chamar a atenção dos outros alunos e professores.À distância, tenho o vislumbre da sua silhueta e confirmo que ela já me espera. Em um canto pouco frequentado, atrás de uma porta entreaberta que leva a um antigo depósito, Mayara está sentada em uma poltrona desgastada.Acelero os passos e, ao me aproximar, é como se nada mais importasse. Passo pela porta e, devagar, fecho-a o máximo que consigo. Mayara se levanta e vem ao meu encontro. Nossos olhos se encontr