Helena e eu decidimos ir conversar na varanda e aproveitar um pouco do ar fresco.
Ela me falava sobre sua rotina na fazenda quando o som de um carro se aproximando chamou nossa atenção. O motor desligou, e em poucos segundos a porta do veículo se abriu. Diogo foi o primeiro a sair, ajeitando a aba do chapéu enquanto subia os degraus da varanda com a postura rígida de sempre. O olhar atento percorreu a cena diante dele antes de se fixar em mim. — Olha só quem resolveu aparecer — comentou, e sorriu - estou feliz que tenha vindo, Laura. A Lena sempre comenta o quanto sente sua falta. Antes que eu pudesse responder, a outra porta se abriu. E então eu o vi. O homem que desceu do carro tinha uma presença marcante, algo difícil de ignorar. Era alto, de ombros largos e porte elegante, mas sem a rigidez do irmão. Sua expressão trazia um ar de confiança descontraída, como alguém acostumado a ser notado sem fazer esforço. O cabelo escuro, ligeiramente bagunçado, dava a impressão de que ele não se preocupava em manter uma aparência impecável — e, ironicamente, isso só o tornava ainda mais interessante. A camisa branca de botões estava dobrada nos antebraços, revelando um relógio caro no pulso. Mas o que realmente me prendeu foi o olhar dele. Assim que seus olhos encontraram os meus, minha respiração falhou por um instante. Não foi um olhar invasivo, tampouco descaradamente sedutor. Mas havia algo ali. Uma intensidade silenciosa. Uma leitura atenta, como se ele estivesse me estudando antes mesmo que eu dissesse uma palavra. E então ele sorriu. Não foi um sorriso óbvio. Apenas um canto de lábio levantado, quase como se ele tivesse acabado de descobrir algo interessante. — Oi, cunhada — cumprimentou, casualmente, com um tom leve, como se já fosse parte da rotina vê-la ali. — Pegando o ritmo, Bernardo? — Helena perguntou, cruzando os braços e retribuindo o sorriso com um toque de ironia. Eu, por outro lado, nunca o tinha visto antes. Diogo se virou para mim, cruzando os braços. — Você lembra do Bernardo? Eu não lembrava. Mas, se já o tivesse visto antes, duvidava que fosse um rosto que se esquece com facilidade. — Não, meu amor, o Bernardo não veio ao nosso casamento, lembra? — Helena interveio, sem perder a chance de alfinetar o cunhado. Então voltou-se para mim. — Essa é a minha prima, Laura. — Você sabe que não consegui vir, Lena, mas queria muito — respondeu ele, um meio sorriso brincando nos lábios antes de virar-se para mim. — Como vai, Laura? É tão rancorosa quanto a prima? O tom dele era leve, brincalhão, mas eu não deixava que comentários como aquele passassem despercebidos. Cruzei os braços e inclinei a cabeça levemente. — Depende. Você dá motivos para rancor? O sorriso dele se alargou, os olhos avaliando minha resposta por um instante antes de soltar um riso baixo. — Justo — murmurou. O jeito despreocupado e seguro de Bernardo contrastava com a seriedade de Diogo. E, por algum motivo que eu ainda não conseguia nomear, isso me incomodava. Ao entrar no casarão, senti o ar fresco do interior contrastar com o calor lá fora. O aroma da madeira antiga misturava-se ao cheiro sutil de café recém-passado, e os passos de Helena ecoavam suavemente pelo piso. — Sente-se, Laura — ela disse, indicando um dos sofás amplos da sala de estar. Diogo seguiu direto para o escritório sem olhar para trás, e logo escutei o som de gavetas sendo abertas. Bernardo ainda estava lá fora, e a casa parecia mais tranquila do que eu lembrava. Helena sentou-se ao meu lado, cruzando as pernas. — Você está mesmo decidida a ficar um tempo por aqui? — perguntou, me observando com um interesse genuíno. Dei de ombros. — Ainda não sei. Talvez alguns dias. Eu estava escrevendo a miss tese de mestrado, ficar um tempo na tranquilidade da fazenda e fazer companhia para a Lena seria algo que parecia promissor. — Fico feliz com isso — ela sorriu, inclinando um pouco a cabeça. — Faz tempo que não temos a chance de conversar com calma. Eu assenti, mas antes que pudesse responder, passos firmes ecoaram pelo piso, e Bernardo apareceu na entrada da sala, segurando uma garrafa de água. Ele não parecia apressado, tampouco desconfortável, como se estivesse completamente à vontade ali. — Então você não é de ficar muito tempo no mesmo lugar? — ele perguntou, me lançando um olhar curioso enquanto se encostava no batente da porta. Analisei-o por um instante antes de responder. — Digamos que eu gosto de movimento. — Interessante. Eu também — ele disse, abrindo um leve sorriso antes de dar um gole na água. Helena trocou um olhar discreto comigo antes de se levantar. — Vou ver se Rosa precisa de ajuda com alguma coisa. Volto já. Assenti, mas antes que pudesse decidir se aquilo era um abandono estratégico ou não, percebi que Bernardo ainda me observava. — Você já esteve aqui outras vezes? — ele perguntou, puxando conversa de maneira despretensiosa. — Algumas — respondi. — Mas nunca por muito tempo. Ele assentiu devagar, como se ponderasse algo. — Então talvez eu ainda possa te surpreender com alguma coisa sobre esse lugar. Ergui uma sobrancelha, curiosa. — E o que exatamente você tem para me mostrar? Bernardo sorriu, mas dessa vez, havia um brilho nos olhos que eu não soube interpretar de imediato. — Isso depende de quão disposta você está a explorar. O tom era provocativo, mas não exagerado. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. E, naquele instante, percebi que estava flertando comigo. A constatação me pegou desprevenida. Não era novidade que homens tentassem me atrair para algum jogo de sedução, mas Bernardo… Ele não parecia tentar. Ele apenas era daquele jeito. E, de repente, a curiosidade me atraiu. Quem ele era, afinal? Por que nunca nos cruzamos antes, sendo ele irmão do Diogo? Eu visitava essa fazenda há anos, e ele nunca foi sequer mencionado. Decidi que não valia a pena demonstrar meu interesse nesse detalhe. — Bernardo, né? — voltei a atenção para ele, em um tom casual. — Será que tem alguém que possa me ajudar com as minhas malas? Estão no carro. Antes que ele pudesse responder, Helena retornou à sala. — Tem sim, claro — ela disse, olhando de mim para Bernardo. Ele manteve o olhar preso ao meu por mais um instante antes de assentir. — Vou pedir para alguém levar ao quarto de hóspedes — ele disse, e então se afastou, saindo pela porta da frente. Observei ele ir, sentindo um incômodo estranho. Não era desconforto, tampouco atração. Era apenas… uma sensação. Algo que ainda não conseguia nomear. — Ele está tentando te provocar — Helena comentou, como se lesse meus pensamentos. Soltei um riso leve. — É mesmo? — Bernardo gosta de testar as pessoas. E você é um prato cheio para isso. Revirei os olhos, mas não consegui evitar um pequeno sorriso. — Pois ele vai se decepcionar. Helena apenas ergueu as sobrancelhas, divertida. Mas, por alguma razão, eu não estava tão segura disso quanto gostaria. Helena me olhou com uma expressão divertida, como se soubesse de algo que eu ainda não sabia. — Bom, veremos. Cruzei os braços, arqueando uma sobrancelha. — O que isso quer dizer? — Só que o Bernardo tem um histórico… interessante. — Ela inclinou a cabeça de lado, como se escolhesse as palavras. — Digamos que ele nunca se prendeu a ninguém. Soltei uma risada baixa. — Isso não é exatamente surpreendente. — Não, mas estou te avisando porque sei que ele vai tentar te testar. Ele adora provocar, ver até onde as pessoas vão. Especialmente as que ele acha que podem ser um desafio. — Então ele me vê como um desafio? — Provavelmente. Você não é fácil de ler. E ele gosta disso. Me recostei no sofá, absorvendo a informação. Era até curioso, porque eu mesma não tentava ser misteriosa. Apenas… era assim. E Bernardo, pelo visto, gostava de enigmas. — Ele não tem ninguém? Nenhuma namorada, ficante, alguém esperando ele em outro lugar? Helena riu. — Se tem, nunca durou tempo suficiente para alguém saber. Eu deveria estar surpresa, mas não estava. — Então, além de recém-chegado, ele também é um mulherengo. — Basicamente. Mas, para ser justa, ele nunca mentiu para ninguém. Nunca prometeu algo que não pudesse cumprir. Inclinei a cabeça, pensativa. — Isso significa que ele não acredita no amor ou só gosta da diversão? Helena riu, mas não respondeu. Apenas me observou por um momento antes de mudar de assunto. — Você está cansada? Quer descansar um pouco antes do jantar? — Não precisa. Só quero tomar um banho e me livrar da poeira da estrada. — Certo. Vou pedir para Rosa preparar seu quarto. Ela se levantou, e eu fiquei mais alguns segundos ali, sozinha, pensando em Bernardo. Observei enquanto Bernardo saía pela porta da frente, e, no instante em que ele desapareceu de vista, percebi algo estranho. Era como se o ar ao meu redor tivesse mudado. Soltei uma respiração lenta, tentando dissipar a inquietação que tomava conta de mim. Era ridículo. Eu havia acabado de conhecê-lo. Apenas uma conversa rápida, um olhar atento demais, um sorriso carregado de algo indefinível. E, ainda assim, eu me sentia elétrica. Era um incômodo sutil, como se ele tivesse deixado para trás uma carga de energia difícil de ignorar. Como se sua presença tivesse preenchido um espaço e, agora, sua ausência o tornasse evidente demais. Franzi o cenho. Não fazia sentido. Eu já havia conhecido muitos homens interessantes na minha vida, e Bernardo não deveria ser diferente. Mas havia algo nele… algo na forma como me olhava, como suas palavras pareciam cuidadosamente calculadas, como se ele estivesse tentando decifrar alguma coisa sobre mim. E, pior ainda, como se já tivesse descoberto algo antes mesmo que eu percebesse.O tempo passou sem que eu percebesse. Depois de um banho revigorante e um tempo para me organizar, desci para o jantar, sentindo o aroma reconfortante da comida caseira se espalhando pela casa.A mesa estava posta na sala de jantar, e Helena conversava animadamente com Diogo sobre algum problema na fazenda. Bernardo, ao lado do irmão, participava ocasionalmente da conversa, mas parecia mais interessado na comida do que em qualquer outra coisa.— Você vai gostar do ritmo daqui, Laura. O Rio de Janeiro é muito barulhento — Helena comentou, lançando-me um olhar cúmplice.Dei de ombros, tentando manter a neutralidade.— Ainda estou me acostumando. Mas é um lugar agradável.— Não é a sua primeira vez aqui, Laura, mas acredito que será a primeira vez que passará mais do que um fim de semana com a gente. — Diogo comentou.Assenti levemente, pegando o copo d’água à minha frente.— Algumas coisas me lembram a fazenda do meu avô. Não é igual, claro, mas tem um clima parecido.Helena sorriu, sat
A casa ainda estava silenciosa quando desci para a cozinha. O sol mal tinha nascido, e um tom alaranjado banhava os móveis de madeira, criando um cenário quase acolhedor. O cheiro de café fresco preenchia o ambiente, e foi esse aroma familiar que me guiou até ali.Mas não era só o café que me esperava.Bernardo estava encostado no balcão, vestido com jeans e uma camisa de botões com as mangas dobradas até os antebraços. Era o tipo de descuido calculado que só alguém absurdamente confiante conseguia carregar.Ele ergueu os olhos ao me ver e sorriu de canto, daquele jeito preguiçoso que parecia provocar sem esforço.— Bom dia, dorminhoca. Achei que ia perder a gente saindo.Tentei ignorar a forma como aquele tom rouco soava mais intimista no silêncio da cozinha.— Não sou de acordar tão tarde — respondi, indo até a cafeteira. — Só não costumo ter motivos para madrugar.Peguei uma xícara e servi o café, sentindo o peso do olhar dele sobre mim. Bernardo observava de um jeito intenso, como
Não demorou muito para minha prima descer as escadas, ainda com os cabelos levemente bagunçados e um sorriso acolhedor no rosto. A casa começava a se movimentar à medida que a manhã avançava. Rosa já circulava pela cozinha, o cheiro de café fresco e pão assado preenchendo o ambiente. Do lado de fora, pela janela entreaberta, observei a rotina pulsante da fazenda: funcionários caminhavam apressados em direção à hípica, outros seguiam para a plantação de café, enquanto os caminhões da transportadora iam e vinham carregados de insumos. Era um mundo muito diferente da minha rotina no Rio, mas algo naquela energia movimentada me trazia uma sensação estranha de pertencimento. Lena se aproximou e se sentou ao meu lado no sofá, com uma xícara de café na mão, puxando os joelhos para perto do corpo, como fazia quando queria uma conversa mais longa. — Como foi sua primeira noite aqui? — perguntou, olhando para mim com curiosidade genuína. — Foi tranquila. Talvez esse lugar seja exatamente o q
Os últimos cinco dias tinham sido surpreendentemente tranquilos. Com Diogo e Bernardo fora, a fazenda parecia ter um ritmo mais leve, e eu comecei a me acostumar àquele ambiente. Helena e eu passamos as manhãs explorando os arredores. Caminhamos pelos cafezais enquanto ela me explicava todo o processo da colheita, algo que eu nunca tinha parado para pensar antes. Passamos um tempo na hípica, onde ela tentou, sem sucesso, me convencer a montar um cavalo. Também fomos até o pequeno vilarejo próximo para comprar algumas coisas, e eu me peguei gostando da rotina desacelerada que a vida ali oferecia. Nos momentos em que Helena estava ocupada com as responsabilidades da fazenda, eu me dedicava à minha tese. O escritório que ela disponibilizou para mim tinha uma vista linda dos campos, e pela primeira vez em muito tempo, eu conseguia trabalhar sem distrações. Foi um período de calma. Um período onde eu quase me senti em paz. Até hoje. A noite estava quente, mas a brisa que soprava
Após o passeio de cavalo com Bernardo, eu me sentia revigorada, mas ainda com aquela sensação de desconforto sobre os últimos dias. O ar fresco da fazenda, as paisagens imensas, tudo parecia diferente do que eu estava acostumada. Depois de descer da sela, dei um pequeno sorriso, tentando me convencer de que a vida aqui poderia ser boa, mas a verdade é que ainda me sentia como uma estranha neste lugar. Bernardo seguiu para a transportadora e eu subi para o meu quarto. O calor do banho foi um alívio, como se me livrasse de toda a tensão do passeio e da estranheza do lugar. Enquanto a água caía sobre mim, meus pensamentos se voltaram para o que ele havia me perguntado mais cedo. A proposta de um casamento sem amor. Só de pensar nisso, eu me sentia mais distante da ideia. Mas algo na forma como ele falou me fez refletir. Será que ele também estava pensando naquilo como algo meramente prático, sem maiores sentimentos envolvidos? Depois de me secar, vesti uma calça jeans e uma blusa de
O dia amanheceu com um céu azul claro, e o aroma de café recém-passado preenchia o casarão. Eu já estava vestida quando desci para o café da manhã e encontrei Bernardo sentado à mesa, os dedos tamborilando suavemente contra uma pasta preta de couro. Ele ergueu o olhar assim que me viu e sorriu de lado. — Bom dia, esposa. Revirei os olhos e puxei uma cadeira. — Ainda não sou sua esposa. — Detalhes. — Ele tomou um gole do café, como se aquilo fosse apenas um pequeno contratempo. - Onde está a Lena e o Diogo? - Pergunto me servindo de uma xícara de café. - Saíram cedo pra transportadora. Será que podemos conversar no escritório quando você terminar de comer? - Ele pergunta e assinto pegando uma fatia de bolo. O escritório de Bernardo na fazenda era um espaço amplo, com estantes repletas de livros e documentos sobre a administração das terras. A madeira escura dos móveis e o aroma amadeirado do ambiente tornavam o lugar acolhedor, mas ainda assim carregado de seriedade.
Me viro na cama ao som insistente do celular. Atendo sem olhar quem é. — Alô? — Laura, desculpa te acordar. — A voz de Diogo ressoa do outro lado da linha. Meu cérebro ainda está despertando, mas algo no tom dele me faz sentar na cama, alerta. — O que aconteceu? — É a Helena… Você é psicóloga e nossa amiga. Eu preciso de você aqui. Estou vendo meu casamento desmoronar e não sei o que fazer. Minha mente ainda luta para processar as palavras. — Diogo, o que exatamente está acontecendo? — Vou viajar para a pecuária, e não quero deixar a Helena sozinha. A fazenda tem funcionários, claro, mas ela precisa de alguém próximo. Solto um suspiro, coço os olhos. Não faz sentido discutir pelo telefone. — Ok. Quando eu chegar, entendo melhor. — Obrigado, Laura. O silêncio se instala depois que a ligação é encerrada. Olho as horas no celular. 5h25. Muito cedo. Tento deitar novamente, mas o peso do pedido de Diogo não me deixa relaxar. Ele não é o tipo de pessoa que pede ajuda