Não demorou muito para minha prima descer as escadas, ainda com os cabelos levemente bagunçados e um sorriso acolhedor no rosto. A casa começava a se movimentar à medida que a manhã avançava. Rosa já circulava pela cozinha, o cheiro de café fresco e pão assado preenchendo o ambiente. Do lado de fora, pela janela entreaberta, observei a rotina pulsante da fazenda: funcionários caminhavam apressados em direção à hípica, outros seguiam para a plantação de café, enquanto os caminhões da transportadora iam e vinham carregados de insumos. Era um mundo muito diferente da minha rotina no Rio, mas algo naquela energia movimentada me trazia uma sensação estranha de pertencimento.
Lena se aproximou e se sentou ao meu lado no sofá, com uma xícara de café na mão, puxando os joelhos para perto do corpo, como fazia quando queria uma conversa mais longa. — Como foi sua primeira noite aqui? — perguntou, olhando para mim com curiosidade genuína. — Foi tranquila. Talvez esse lugar seja exatamente o que eu estou precisando. Me desconectar um pouco, respirar ar puro e, claro, focar na minha tese de mestrado. — Respondi, girando distraidamente a xícara de café entre as mãos. — E o seu consultório terapêutico no Rio? — ela perguntou, inclinando a cabeça levemente. Soltei um suspiro leve antes de responder. — Já faz algum tempo que dei uma pausa nos atendimentos para me dedicar exclusivamente ao mestrado. Mas o consultório continua funcionando. Tem outras psicólogas por lá, e a Cristina está cuidando de tudo. — Dei um meio sorriso ao mencionar minha amiga. Cris e eu nos conhecemos na faculdade e, desde então, nossa amizade só se fortaleceu. Quando decidimos abrir o consultório juntas, sabíamos que seria um desafio, mas ela sempre foi a pessoa mais organizada e confiável que eu conhecia. Se alguém podia manter tudo sob controle na minha ausência, era ela. Lena assentiu devagar, apoiando o queixo na palma da mão. — Acho que fez bem em tirar esse tempo para si. A vida no Rio é uma loucura, e aqui as coisas acontecem num ritmo completamente diferente. Pode ser bom pra você. Olhei pela janela novamente, acompanhando o movimento dos trabalhadores. Era um mundo tão distante do que eu estava acostumada, mas, de alguma forma, não parecia errado estar ali. Talvez Lena estivesse certa. Talvez esse tempo na fazenda realmente fosse necessário para mim. Mas então, minha mente, como um relógio desregulado, me traiu e voltou para a conversa que tive com o Bernardo há menos de uma hora. A lembrança do toque sutil de Bernardo afastando meu cabelo, do tom provocador da sua voz e da forma como suas palavras ainda ecoavam na minha cabeça. “Espero que tenha uma resposta pra me dar quando eu voltar, Laura.” Engoli em seco. Por mais que eu tentasse afastar aquilo da minha mente, sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que encarar o que aquela proposta realmente significava para mim. Lena suspirou, mexendo distraidamente na borda da xícara de café. A manhã seguia seu ritmo na fazenda, o cheiro de café fresco misturando-se ao ar levemente frio. Mas algo na expressão dela me dizia que aquela conversa tomaria um rumo mais sério. — A fazenda demanda muito do Diogo, sabe? E agora com a transportadora crescendo, ele vive na estrada ou no escritório. Às vezes, sinto que passamos mais tempo nos organizando do que realmente juntos. — Ela sorriu sem humor. — Acho que isso acontece com todo casal, não é? Fiquei em silêncio por um instante. Eu não era a melhor pessoa para falar sobre relacionamentos, e Lena sabia disso. Mas era evidente que ela não queria um conselho técnico, apenas alguém que a ouvisse. — O que você quer dizer com “se organizando”? — perguntei, observando-a com atenção. Ela apertou os lábios, desviando o olhar para a varanda, onde a movimentação da fazenda seguia como se o mundo lá fora não tivesse espaço para crises conjugais. — Tentamos ajustar horários, encontrar tempo um para o outro, mas… sei lá. Parece que tem alguma coisa errada. Ele anda distante, às vezes desconcentrado. Não sei se é só o trabalho ou se tem mais alguma coisa. A palavra não dita flutuou no ar entre nós. Desconfiança. Cruzei as pernas e respirei fundo. Parte de mim queria dizer que era isso que acontecia quando alguém confiava demais em outra pessoa, quando se entregava ao conceito abstrato e ilusório do amor. Lena tinha sido essa pessoa — se apaixonou, casou, acreditou que construiria uma vida sólida com alguém. Agora estava ali, insegura, sentindo que algo escapava por entre os dedos. E, no fim das contas, talvez escapasse mesmo. — Você já conversou com ele sobre isso? — perguntei, mantendo meu tom neutro, ainda que internamente eu achasse tudo aquilo uma perda de tempo. Ela riu sem humor. — Já tentei. Ele sempre diz que estou imaginando coisas, que estou cansada e que tudo vai melhorar. Mas não melhora. Observei minha prima por um instante. Ela estava diferente. Havia algo na forma como falava, na forma como segurava a xícara, como se temesse que a qualquer momento fosse soltar e quebrar tudo. — E o que você sente? Quero dizer, o que sente quando está com ele? Ela franziu a testa, pegando minha pergunta de surpresa. — Sinto que ele não está completamente ali. A voz dela saiu em um sussurro quase hesitante, como se admitir aquilo em voz alta tornasse a situação mais real do que gostaria. Lena mexeu na alça da xícara, o olhar perdido em algum ponto da mesa, e eu percebi que ela não estava apenas contando sobre um problema conjugal. Estava confessando um medo. — Eu amo o Diogo, Laura. Mas às vezes me pergunto se ele ainda sente o mesmo por mim… ou se apenas se acostumou comigo. Minha primeira reação foi revirar internamente os olhos. Não porque não me importasse com ela mas porque a situação era óbvia para mim: o amor era uma ilusão bem-intencionada. No fim das contas, tudo se resumia a conveniência, rotina e necessidade. Cruzei os braços, escolhendo as palavras com cuidado. — Você acha que ele poderia… — hesitei, mas decidi ir direto ao ponto — estar interessado em outra pessoa? Lena ergueu os olhos para mim rapidamente, surpresa com minha franqueza. — Eu não sei. — A confissão veio quase como um suspiro, e ela passou as mãos pelo rosto. — Nunca pensei nisso de verdade, mas às vezes… às vezes tenho a sensação de que ele está distante demais, de um jeito que não parece apenas cansaço. Inclinei-me levemente na cadeira, tentando entender por que aquilo me incomodava tanto. Talvez porque reforçasse tudo o que eu já acreditava: o amor era apenas um ciclo, e no final, alguém sempre ficava sentindo que algo estava errado. — E se você estiver certa? O que faria? Lena me encarou por um momento, seus olhos cheios de dúvida. — Eu não sei, Laura. Não sei se quero saber a resposta para essa pergunta. E ali, naquele silêncio carregado, tive certeza de que Lena amava Diogo mais do que deveria. E que isso, inevitavelmente, um dia custaria caro. Lena desviou o olhar, brincando com a borda da xícara de café entre os dedos. Eu a observei, sentindo uma mistura de pena e frustração. Ela estava presa a essa ideia de amor, investindo em algo que claramente a estava corroendo aos poucos. E o pior? Ela nem queria enfrentar isso de verdade. — Você já tentou conversar com ele? — perguntei, mais por obrigação do que por acreditar que isso resolveria alguma coisa. — Já… mas sempre acabamos nos desviando do assunto. Ele fala do trabalho, da transportadora, dos problemas da fazenda, e quando percebo, estamos falando de tudo, menos do que realmente importa. Eu suspirei. Esse era o problema de basear a vida inteira em um relacionamento. Um dia, a paixão inicial se esgotava, e tudo o que restava eram duas pessoas dividindo o mesmo espaço, tentando não admitir que algo tinha se perdido pelo caminho. — Talvez seja isso, Lena. Talvez ele esteja apenas focado no trabalho. A rotina pesa, desgasta. É natural. Ela sorriu de lado, mas seus olhos estavam distantes. — Você sempre tem essa visão prática das coisas, né? — Porque é a única que faz sentido. — Cruzei os braços. — Não dá para esperar que as pessoas nos completem ou nos façam felizes o tempo todo. É exaustivo demais. Lena ficou em silêncio por um tempo, pensativa. Eu sabia que ela não concordava comigo, mas também não tinha forças para rebater. Talvez, no fundo, uma parte dela começasse a se questionar também. Ela bebeu um gole do café e mudou de assunto, mas sua mente ainda parecia presa na conversa anterior. E eu? Bem, eu só confirmei o que sempre soube: o amor não passava de uma promessa bonita, mas insustentável.Os últimos cinco dias tinham sido surpreendentemente tranquilos. Com Diogo e Bernardo fora, a fazenda parecia ter um ritmo mais leve, e eu comecei a me acostumar àquele ambiente. Helena e eu passamos as manhãs explorando os arredores. Caminhamos pelos cafezais enquanto ela me explicava todo o processo da colheita, algo que eu nunca tinha parado para pensar antes. Passamos um tempo na hípica, onde ela tentou, sem sucesso, me convencer a montar um cavalo. Também fomos até o pequeno vilarejo próximo para comprar algumas coisas, e eu me peguei gostando da rotina desacelerada que a vida ali oferecia. Nos momentos em que Helena estava ocupada com as responsabilidades da fazenda, eu me dedicava à minha tese. O escritório que ela disponibilizou para mim tinha uma vista linda dos campos, e pela primeira vez em muito tempo, eu conseguia trabalhar sem distrações. Foi um período de calma. Um período onde eu quase me senti em paz. Até hoje. A noite estava quente, mas a brisa que soprava
Após o passeio de cavalo com Bernardo, eu me sentia revigorada, mas ainda com aquela sensação de desconforto sobre os últimos dias. O ar fresco da fazenda, as paisagens imensas, tudo parecia diferente do que eu estava acostumada. Depois de descer da sela, dei um pequeno sorriso, tentando me convencer de que a vida aqui poderia ser boa, mas a verdade é que ainda me sentia como uma estranha neste lugar. Bernardo seguiu para a transportadora e eu subi para o meu quarto. O calor do banho foi um alívio, como se me livrasse de toda a tensão do passeio e da estranheza do lugar. Enquanto a água caía sobre mim, meus pensamentos se voltaram para o que ele havia me perguntado mais cedo. A proposta de um casamento sem amor. Só de pensar nisso, eu me sentia mais distante da ideia. Mas algo na forma como ele falou me fez refletir. Será que ele também estava pensando naquilo como algo meramente prático, sem maiores sentimentos envolvidos? Depois de me secar, vesti uma calça jeans e uma blusa de
O dia amanheceu com um céu azul claro, e o aroma de café recém-passado preenchia o casarão. Eu já estava vestida quando desci para o café da manhã e encontrei Bernardo sentado à mesa, os dedos tamborilando suavemente contra uma pasta preta de couro. Ele ergueu o olhar assim que me viu e sorriu de lado. — Bom dia, esposa. Revirei os olhos e puxei uma cadeira. — Ainda não sou sua esposa. — Detalhes. — Ele tomou um gole do café, como se aquilo fosse apenas um pequeno contratempo. - Onde está a Lena e o Diogo? - Pergunto me servindo de uma xícara de café. - Saíram cedo pra transportadora. Será que podemos conversar no escritório quando você terminar de comer? - Ele pergunta e assinto pegando uma fatia de bolo. O escritório de Bernardo na fazenda era um espaço amplo, com estantes repletas de livros e documentos sobre a administração das terras. A madeira escura dos móveis e o aroma amadeirado do ambiente tornavam o lugar acolhedor, mas ainda assim carregado de seriedade.
Me viro na cama ao som insistente do celular. Atendo sem olhar quem é. — Alô? — Laura, desculpa te acordar. — A voz de Diogo ressoa do outro lado da linha. Meu cérebro ainda está despertando, mas algo no tom dele me faz sentar na cama, alerta. — O que aconteceu? — É a Helena… Você é psicóloga e nossa amiga. Eu preciso de você aqui. Estou vendo meu casamento desmoronar e não sei o que fazer. Minha mente ainda luta para processar as palavras. — Diogo, o que exatamente está acontecendo? — Vou viajar para a pecuária, e não quero deixar a Helena sozinha. A fazenda tem funcionários, claro, mas ela precisa de alguém próximo. Solto um suspiro, coço os olhos. Não faz sentido discutir pelo telefone. — Ok. Quando eu chegar, entendo melhor. — Obrigado, Laura. O silêncio se instala depois que a ligação é encerrada. Olho as horas no celular. 5h25. Muito cedo. Tento deitar novamente, mas o peso do pedido de Diogo não me deixa relaxar. Ele não é o tipo de pessoa que pede ajuda
Helena e eu decidimos ir conversar na varanda e aproveitar um pouco do ar fresco. Ela me falava sobre sua rotina na fazenda quando o som de um carro se aproximando chamou nossa atenção. O motor desligou, e em poucos segundos a porta do veículo se abriu. Diogo foi o primeiro a sair, ajeitando a aba do chapéu enquanto subia os degraus da varanda com a postura rígida de sempre. O olhar atento percorreu a cena diante dele antes de se fixar em mim. — Olha só quem resolveu aparecer — comentou, e sorriu - estou feliz que tenha vindo, Laura. A Lena sempre comenta o quanto sente sua falta. Antes que eu pudesse responder, a outra porta se abriu. E então eu o vi. O homem que desceu do carro tinha uma presença marcante, algo difícil de ignorar. Era alto, de ombros largos e porte elegante, mas sem a rigidez do irmão. Sua expressão trazia um ar de confiança descontraída, como alguém acostumado a ser notado sem fazer esforço. O cabelo escuro, ligeiramente bagunçado, dava a impressão de que
O tempo passou sem que eu percebesse. Depois de um banho revigorante e um tempo para me organizar, desci para o jantar, sentindo o aroma reconfortante da comida caseira se espalhando pela casa.A mesa estava posta na sala de jantar, e Helena conversava animadamente com Diogo sobre algum problema na fazenda. Bernardo, ao lado do irmão, participava ocasionalmente da conversa, mas parecia mais interessado na comida do que em qualquer outra coisa.— Você vai gostar do ritmo daqui, Laura. O Rio de Janeiro é muito barulhento — Helena comentou, lançando-me um olhar cúmplice.Dei de ombros, tentando manter a neutralidade.— Ainda estou me acostumando. Mas é um lugar agradável.— Não é a sua primeira vez aqui, Laura, mas acredito que será a primeira vez que passará mais do que um fim de semana com a gente. — Diogo comentou.Assenti levemente, pegando o copo d’água à minha frente.— Algumas coisas me lembram a fazenda do meu avô. Não é igual, claro, mas tem um clima parecido.Helena sorriu, sat
A casa ainda estava silenciosa quando desci para a cozinha. O sol mal tinha nascido, e um tom alaranjado banhava os móveis de madeira, criando um cenário quase acolhedor. O cheiro de café fresco preenchia o ambiente, e foi esse aroma familiar que me guiou até ali.Mas não era só o café que me esperava.Bernardo estava encostado no balcão, vestido com jeans e uma camisa de botões com as mangas dobradas até os antebraços. Era o tipo de descuido calculado que só alguém absurdamente confiante conseguia carregar.Ele ergueu os olhos ao me ver e sorriu de canto, daquele jeito preguiçoso que parecia provocar sem esforço.— Bom dia, dorminhoca. Achei que ia perder a gente saindo.Tentei ignorar a forma como aquele tom rouco soava mais intimista no silêncio da cozinha.— Não sou de acordar tão tarde — respondi, indo até a cafeteira. — Só não costumo ter motivos para madrugar.Peguei uma xícara e servi o café, sentindo o peso do olhar dele sobre mim. Bernardo observava de um jeito intenso, como