A casa ainda estava silenciosa quando desci para a cozinha. O sol mal tinha nascido, e um tom alaranjado banhava os móveis de madeira, criando um cenário quase acolhedor. O cheiro de café fresco preenchia o ambiente, e foi esse aroma familiar que me guiou até ali.
Mas não era só o café que me esperava. Bernardo estava encostado no balcão, vestido com jeans e uma camisa de botões com as mangas dobradas até os antebraços. Era o tipo de descuido calculado que só alguém absurdamente confiante conseguia carregar. Ele ergueu os olhos ao me ver e sorriu de canto, daquele jeito preguiçoso que parecia provocar sem esforço. — Bom dia, dorminhoca. Achei que ia perder a gente saindo. Tentei ignorar a forma como aquele tom rouco soava mais intimista no silêncio da cozinha. — Não sou de acordar tão tarde — respondi, indo até a cafeteira. — Só não costumo ter motivos para madrugar. Peguei uma xícara e servi o café, sentindo o peso do olhar dele sobre mim. Bernardo observava de um jeito intenso, como se estivesse avaliando algo que eu não sabia exatamente o quê. — Então talvez a gente devesse arrumar um motivo para você acordar cedo. A provocação veio sem pressa, e quando me virei para encará-lo, encontrei aquele sorriso de quem se divertia testando limites. Revirei os olhos, mas senti meu coração bater um pouco mais forte. Ele fazia isso com qualquer mulher ou era só comigo? — Vocês vão viajar cedo assim? Ele assentiu, dando um gole no café. — Sim. Temos um evento importante para ir. O Diogo e eu ficaremos alguns dias fora. — Pecuária, certo? — Isso mesmo. Alguma vez já foi a um desses eventos? Neguei com a cabeça. — Nunca me envolvi muito com esse tipo de coisa. — Você deveria ir um dia. Quem sabe não descobre um talento oculto? Soltei um sorriso discreto. — Duvido. Mas acho que deve ser interessante para quem gosta. Ele apoiou a xícara na pia e me olhou por um instante, como se avaliasse se devia ou não continuar. — Na verdade, estou indo por um motivo um pouco diferente. Arqueei uma sobrancelha. — Ah, é? Ele hesitou por um momento, depois cruzou os braços. — Preciso resolver algumas pendências da minha parte da herança. A surpresa me fez parar por um segundo, o calor do café entre meus dedos sendo a única coisa que me ancorava. — Como assim? Bernardo riu baixo. — Parece surpresa. — Porque estou. Você falou como se tivesse que… provar algo para receber essa herança. Ele inclinou a cabeça, o olhar brilhando com algo indefinido. — Você é perspicaz. O silêncio se instalou por um momento, e eu percebi que ele estava esperando minha reação antes de seguir. — Basicamente, meu pai deixou uma cláusula no testamento. Para eu ter direito à minha parte da herança, preciso me casar. Engoli em seco, sentindo um leve incômodo no peito que não soube identificar. — Casar? — Isso mesmo. Um casamento de verdade, não algo temporário. Houve um instante de silêncio entre nós. Bernardo parecia relaxado demais para alguém que falava sobre um assunto tão sério. Como se já tivesse aceitado o destino sem se preocupar muito. Mas eu me perguntei se era só pose. — E você já namora? — Minha pergunta saiu antes que eu pudesse pensar melhor. Ele segurou meu olhar por um segundo longo demais antes de responder: — Ainda não. Por algum motivo, minha garganta ficou seca. Ele apoiou os cotovelos no balcão e sorriu de canto. — Mas talvez esteja na hora de mudar isso. O modo como ele disse aquilo, baixo e tranquilo, fez meu estômago revirar. Me obriguei a manter a expressão neutra, a ignorar o calor estranho que subiu pelo meu pescoço. — Boa sorte com isso. Coloquei minha xícara na pia e fiz menção de sair, mas, antes que pudesse dar um passo, ele falou: — Eu vou precisar. Seu olhar encontrou o meu, e pela primeira vez naquela conversa, senti que havia mais ali do que apenas charme jogado ao vento. Fui para a varanda, mas o Bernardo me acompanhou. - Laura, a Helena já tinha me falado sobre você quando o Diogo comentou que você viria passar uns dias aqui. - Bernardo falou. O que será que a Lena tinha falado? - É mesmo? - Ela comentou que você era uma pessoa cética, não acreditava em destino, não acredita no amor. Dei de ombros, não era algo que eu saia falando por aí, mas também eu não escondia de ninguém. — Eu sou realista, só isso — respondi, tentando desviar a atenção do assunto. Bernardo sorriu, como se tivesse gostado da minha resposta, e se aproximou um pouco mais da varanda, apoiando-se na grade. — Eu entendo. Mas às vezes, Laura, a vida tem uma forma de surpreender a gente. O destino tem suas maneiras de agir, mesmo quando a gente não acredita nele. Olhei para ele, absorvendo aquelas palavras, e, por algum motivo, meu coração acelerou. Não sabia se era o tom da conversa ou algo mais, mas havia algo nele, algo na forma como ele falava, que mexia comigo. Tentei disfarçar, mantendo a postura tranquila. — E você acredita nisso? — perguntei, meio desafiadora, tentando desviar minha mente das sensações estranhas que ele despertava em mim. Ele riu, um riso baixo e quase melancólico. — Eu não sou tão cético quanto você. Não completamente. A questão é que estou em uma situação… complicada. Fiquei atenta, meus olhos se estreitaram. — Complicada como? Bernardo olhou ao redor, como se quisesse garantir que ninguém estava ouvindo, e depois se virou para mim com uma expressão mais séria. — Eu preciso me casar. Por questões da minha família. E talvez eu precise de alguém que não tenha expectativas, alguém que aceite que a relação entre a gente não vá passar de um acordo formal. Ele fez uma pausa, esperando minha reação, e eu senti o peso de suas palavras. — Um acordo formal? — repeti, sentindo meu coração bater mais rápido, confusa sobre o que ele estava sugerindo. Bernardo assentiu, com uma leveza na voz. — Isso mesmo. Não estamos falando de amor, Laura. Não precisamos disso. Só precisamos que as coisas sigam o rumo certo. Eu preciso da minha parte da herança, e você… bem, você precisaria de algo que pudesse mudar sua vida também. Talvez essa seja uma solução simples para ambos. — Mudar minha vida? Bernardo, olha, eu não preciso de dinheiro. Não vejo como isso poderia ser vantajoso pra mim. Não estou interessada. — Falei com firmeza, começando a me afastar, mas, antes que eu pudesse dar um passo, ele segurou minha mão com uma suavidade inesperada. Eu congelei por um instante, sentindo o calor de sua mão sobre a minha. O toque dele não era agressivo, mas havia algo nele que me desconcertava, me fazendo questionar por que eu não conseguia simplesmente afastá-lo. Ele parecia tão calmo, tão certo de si, como se já soubesse o que eu ia dizer antes mesmo que eu abrisse a boca. — Sabe o que eu acho? — Ele perguntou, a voz suave, quase como um sussurro, mas com uma intensidade que me fez parar. Franzi a testa, confusa. — Eu não leio pensamentos, Bernardo. Ele sorriu, com uma expressão que eu não consegui decifrar, e o olhar dele se manteve firme no meu. — Que você está com medo de se apegar, se apaixonar por mim. — Ele disse com um tom desafiador, e eu revirei os olhos, tentando disfarçar a sensação desconfortável que tomou conta de mim. — Isso é ridículo — respondi, tentando soar indiferente, mas a verdade era que ele tinha acertado em cheio. Eu estava sentindo uma mistura de emoções que não sabia lidar. Bernardo manteve o sorriso, como se esperasse exatamente essa reação de mim. — Eu sei. É sempre mais fácil negar do que admitir, não é? — Ele deu um passo à frente, e a proximidade dele fez meu coração bater mais rápido. — Mas você sabe o que mais? Eu não vou te pressionar. Eu só queria que você soubesse da minha proposta. E, se quiser pensar sobre isso enquanto eu estiver fora, é o seu direito. Quando eu voltar, podemos conversar com calma. Eu não sabia o que pensar, mas a ideia de ele ter a audácia de tocar nesse ponto, de me desafiar dessa forma, mexia com algo dentro de mim. Havia algo nele, uma confiança imensa que eu não conseguia ignorar. Ao mesmo tempo, isso me incomodava profundamente. Eu não queria ser uma mulher que cedia tão facilmente a qualquer provocação, mas, ao mesmo tempo, não sabia se conseguiria resistir a essa força magnética que ele tinha sobre mim. — Você não me conhece, Bernardo. E eu não preciso provar nada pra você. — Tentei me afastar do tema, mas as palavras saíram mais fracas do que eu gostaria. De repente, ele fez algo inesperado. Bernardo afastou uma mecha de cabelo minha, e, com o movimento, seus dedos roçaram a minha pele, um toque tão leve, mas que parecia incendiar por dentro. Ele estava tão perto que pude sentir o calor de sua respiração, e a sensação de seus lábios raspando levemente pelo meu rosto me fez estremecer. Meu corpo reagiu sem que eu quisesse, e aquele cheiro do perfume dele me envolveu, tornando tudo ainda mais intenso, mais real. — Exatamente, não precisa me provar nada. — Ele sussurrou em meu ouvido, e sua voz parecia carregada de uma mistura de desafio e compreensão. — Mas não acha que precisa provar a si mesma? Eu fiquei em silêncio, tentando processar as palavras dele, que pareciam mais uma verdade incômoda do que uma provocação. O que ele queria dizer com isso? Antes que eu pudesse formular qualquer resposta, uma voz familiar interrompeu o momento. — Bom dia, Laura. Como vai? Estamos indo agora pra Pecuária, voltamos em alguns dias. Espero que aproveite a fazenda com a Lena. — Diogo apareceu na varanda, com aquele sorriso acolhedor, completamente alheio à tensão que eu sentia no ar. Eu respirei fundo, tentando me recompor, e virei o rosto para ele, buscando esconder a confusão interna que Bernardo tinha me causado. — Bem, Diogo. — Respondi, tentando soá-la natural, mas sabia que minha voz estava carregada de algo que ele não poderia perceber. — Aproveitarei sim. Espero que tenham uma boa viagem. - Vamos, Bernardo? - Ele chamou o irmão que assentiu. Diogo foi na frente caminhando em direção a caminhonete e Bernardo ainda ficou na varanda me observando. — Espero que tenha uma resposta pra me dar quando voltar, Laura. Até mais. — Ele disse, com um sorriso enigmático nos lábios, e então se afastou, caminhando até onde Diogo estava. Eu fiquei ali, estática, os olhos fixos na figura deles indo embora, mas a mente vagando para um turbilhão de pensamentos. O som da caminhonete se afastando ainda ecoava em minha cabeça, mas o que realmente me atormentava era a sensação de que eu já havia me entregado de alguma forma. As palavras dele, o toque sutil, a forma como ele me observava… tudo isso me deixava com um nó no peito. Bernardo foi embora, mas ele deixou algo mais em mim do que apenas o cheiro de seu perfume no ar. Ele me deixou com um dilema, uma escolha que, no fundo, eu sabia que teria que fazer.Não demorou muito para minha prima descer as escadas, ainda com os cabelos levemente bagunçados e um sorriso acolhedor no rosto. A casa começava a se movimentar à medida que a manhã avançava. Rosa já circulava pela cozinha, o cheiro de café fresco e pão assado preenchendo o ambiente. Do lado de fora, pela janela entreaberta, observei a rotina pulsante da fazenda: funcionários caminhavam apressados em direção à hípica, outros seguiam para a plantação de café, enquanto os caminhões da transportadora iam e vinham carregados de insumos. Era um mundo muito diferente da minha rotina no Rio, mas algo naquela energia movimentada me trazia uma sensação estranha de pertencimento. Lena se aproximou e se sentou ao meu lado no sofá, com uma xícara de café na mão, puxando os joelhos para perto do corpo, como fazia quando queria uma conversa mais longa. — Como foi sua primeira noite aqui? — perguntou, olhando para mim com curiosidade genuína. — Foi tranquila. Talvez esse lugar seja exatamente o q
Os últimos cinco dias tinham sido surpreendentemente tranquilos. Com Diogo e Bernardo fora, a fazenda parecia ter um ritmo mais leve, e eu comecei a me acostumar àquele ambiente. Helena e eu passamos as manhãs explorando os arredores. Caminhamos pelos cafezais enquanto ela me explicava todo o processo da colheita, algo que eu nunca tinha parado para pensar antes. Passamos um tempo na hípica, onde ela tentou, sem sucesso, me convencer a montar um cavalo. Também fomos até o pequeno vilarejo próximo para comprar algumas coisas, e eu me peguei gostando da rotina desacelerada que a vida ali oferecia. Nos momentos em que Helena estava ocupada com as responsabilidades da fazenda, eu me dedicava à minha tese. O escritório que ela disponibilizou para mim tinha uma vista linda dos campos, e pela primeira vez em muito tempo, eu conseguia trabalhar sem distrações. Foi um período de calma. Um período onde eu quase me senti em paz. Até hoje. A noite estava quente, mas a brisa que soprava
Após o passeio de cavalo com Bernardo, eu me sentia revigorada, mas ainda com aquela sensação de desconforto sobre os últimos dias. O ar fresco da fazenda, as paisagens imensas, tudo parecia diferente do que eu estava acostumada. Depois de descer da sela, dei um pequeno sorriso, tentando me convencer de que a vida aqui poderia ser boa, mas a verdade é que ainda me sentia como uma estranha neste lugar. Bernardo seguiu para a transportadora e eu subi para o meu quarto. O calor do banho foi um alívio, como se me livrasse de toda a tensão do passeio e da estranheza do lugar. Enquanto a água caía sobre mim, meus pensamentos se voltaram para o que ele havia me perguntado mais cedo. A proposta de um casamento sem amor. Só de pensar nisso, eu me sentia mais distante da ideia. Mas algo na forma como ele falou me fez refletir. Será que ele também estava pensando naquilo como algo meramente prático, sem maiores sentimentos envolvidos? Depois de me secar, vesti uma calça jeans e uma blusa de
O dia amanheceu com um céu azul claro, e o aroma de café recém-passado preenchia o casarão. Eu já estava vestida quando desci para o café da manhã e encontrei Bernardo sentado à mesa, os dedos tamborilando suavemente contra uma pasta preta de couro. Ele ergueu o olhar assim que me viu e sorriu de lado. — Bom dia, esposa. Revirei os olhos e puxei uma cadeira. — Ainda não sou sua esposa. — Detalhes. — Ele tomou um gole do café, como se aquilo fosse apenas um pequeno contratempo. - Onde está a Lena e o Diogo? - Pergunto me servindo de uma xícara de café. - Saíram cedo pra transportadora. Será que podemos conversar no escritório quando você terminar de comer? - Ele pergunta e assinto pegando uma fatia de bolo. O escritório de Bernardo na fazenda era um espaço amplo, com estantes repletas de livros e documentos sobre a administração das terras. A madeira escura dos móveis e o aroma amadeirado do ambiente tornavam o lugar acolhedor, mas ainda assim carregado de seriedade.
Me viro na cama ao som insistente do celular. Atendo sem olhar quem é. — Alô? — Laura, desculpa te acordar. — A voz de Diogo ressoa do outro lado da linha. Meu cérebro ainda está despertando, mas algo no tom dele me faz sentar na cama, alerta. — O que aconteceu? — É a Helena… Você é psicóloga e nossa amiga. Eu preciso de você aqui. Estou vendo meu casamento desmoronar e não sei o que fazer. Minha mente ainda luta para processar as palavras. — Diogo, o que exatamente está acontecendo? — Vou viajar para a pecuária, e não quero deixar a Helena sozinha. A fazenda tem funcionários, claro, mas ela precisa de alguém próximo. Solto um suspiro, coço os olhos. Não faz sentido discutir pelo telefone. — Ok. Quando eu chegar, entendo melhor. — Obrigado, Laura. O silêncio se instala depois que a ligação é encerrada. Olho as horas no celular. 5h25. Muito cedo. Tento deitar novamente, mas o peso do pedido de Diogo não me deixa relaxar. Ele não é o tipo de pessoa que pede ajuda
Helena e eu decidimos ir conversar na varanda e aproveitar um pouco do ar fresco. Ela me falava sobre sua rotina na fazenda quando o som de um carro se aproximando chamou nossa atenção. O motor desligou, e em poucos segundos a porta do veículo se abriu. Diogo foi o primeiro a sair, ajeitando a aba do chapéu enquanto subia os degraus da varanda com a postura rígida de sempre. O olhar atento percorreu a cena diante dele antes de se fixar em mim. — Olha só quem resolveu aparecer — comentou, e sorriu - estou feliz que tenha vindo, Laura. A Lena sempre comenta o quanto sente sua falta. Antes que eu pudesse responder, a outra porta se abriu. E então eu o vi. O homem que desceu do carro tinha uma presença marcante, algo difícil de ignorar. Era alto, de ombros largos e porte elegante, mas sem a rigidez do irmão. Sua expressão trazia um ar de confiança descontraída, como alguém acostumado a ser notado sem fazer esforço. O cabelo escuro, ligeiramente bagunçado, dava a impressão de que
O tempo passou sem que eu percebesse. Depois de um banho revigorante e um tempo para me organizar, desci para o jantar, sentindo o aroma reconfortante da comida caseira se espalhando pela casa.A mesa estava posta na sala de jantar, e Helena conversava animadamente com Diogo sobre algum problema na fazenda. Bernardo, ao lado do irmão, participava ocasionalmente da conversa, mas parecia mais interessado na comida do que em qualquer outra coisa.— Você vai gostar do ritmo daqui, Laura. O Rio de Janeiro é muito barulhento — Helena comentou, lançando-me um olhar cúmplice.Dei de ombros, tentando manter a neutralidade.— Ainda estou me acostumando. Mas é um lugar agradável.— Não é a sua primeira vez aqui, Laura, mas acredito que será a primeira vez que passará mais do que um fim de semana com a gente. — Diogo comentou.Assenti levemente, pegando o copo d’água à minha frente.— Algumas coisas me lembram a fazenda do meu avô. Não é igual, claro, mas tem um clima parecido.Helena sorriu, sat