Em um futuro não especificado, os antibióticos perdem a eficácia e a população mundial é praticamente exterminada por uma variante da peste bubônica. No Haiti surge uma pequena esperança para a humanidade. Alterando uma das técnicas de Voodoo, conseguem transferir a alma dos voluntários para bonecos de pano. A técnica se espalha pelo mundo, mas, por motivos diversos, como as crenças religiosas, apenas poucas pessoas aceitam se sujeitar à magia. A história começa pouco depois da erradicação da peste, em um mundo onde a espécie humana foi praticamente dizimada. Dentre os sobreviventes, pouco mais da metade são pessoas que escaparam do contágio ou resistentes à bactéria, o restante é composto por bonecos de pano. A protagonista, Letícia, jovem universitária, que estava afastada da família quando da propagação da peste, descobre que seu irmão adolescente também sobreviveu e inicia sua jornada para casa. Pouco restou da força do Estado para manter a ordem, o preconceito e a intolerância são imensos. Em meio ao caos, Letícia percebe que a viagem é quase impossível de ser feita por uma boneca de pano, mas ela não pode desistir.
Ler maisCom os implantes feitos nas pontas dos dedos, Letícia e Raul perceberam que conseguiam digitar no computador. Trocar e-mails virara uma forma muito mais conveniente de conversarem do que a falta de privacidade ao usar um celular alheio. Letícia escrevia: Oiê! Não acredito que você não tem notícia de mais ninguém além de mim! Eu, por outro lado, estou bem atualizada! Vou tentar te contar tudo. Margarida ficou aqui no hotel mesmo e você não vai acreditar! Ela tá lecionando português para a molecada toda. Tudo começou com ela tirando sarro da forma que o Vini escreve, aliás, você já viu como meu irmão escreve tudo errado? Ela tá feliz e, eu acho, mas não tenho certeza, que o La Croix apareceu no quarto dela um dia
Enquanto esperava o irmão, com os cotovelos apoiados no bagageiro, Letícia se deixava consumir pela ansiedade. ‘E se ele não me reconhecer? E se, por algum motivo, tiver medo de mim?’, pensava. Mas, do lado de dentro do Hotel Conforto, o jovem também se sentia ansioso e, por isso, apressava a idosa: - Vamos esperar lá fora! Eu aposto que eles já chegaram! Percebendo que não conseguiria acalmar o adolescente, Ornella se levantou e estendeu uma das mãos a Vinicius, que segurou, automaticamente, e assim, de mãos dadas, a dupla saiu do hotel. Quando viu a porta de vidro se abrir e o irmão emergir do ambiente mais escuro, foi como se um raio atingisse Letícia. A boneca não teve presença de espírito para reagir, mas, diferentemente da dela, a ansiedade do irmão se tornou propulsão e o adolescente soltou a mão da idosa, cruzando a distância que o separava de sua irmã em um piscar de olhos. Num primeiro momento, o irmão enxergou a boneca como ela sem
Raul foi o primeiro a acordar. Pela iluminação pálida e a suave neblina que podia ver pela janela do quarto, sabia que ainda deveria ser bem cedo, antes de sete horas da manhã, mas não tinha sono o suficiente para voltar a dormir. Sem ter o que fazer, o orangotango desejou que tivesse lembrado se de colocar, pelo menos, um livro na mochila.Decidiu que fuçaria a mochila de Letícia e de Margarida em busca de algum passatempo e levantou da cama. Foi quando ouviu, do lado de fora do quarto, o barulho de uma porta se fechando.Como na noite anterior, o orangotango correu para os corredores do motel e não viu ninguém. Dessa vez, lembrou-se de checar o interior do carro, checando a janela. Mas, de qualquer forma, não estava mais preocupado. Se alguém quisesse fazer mal ao grupo, teria aproveitado a noite, momento em que eles estavam mais vulneráveis. Se a pessoa se manteve escondida, é
Por um longo trecho, nos últimos quilômetros que separavam os viajantes da cidade de destino, a rodovia estava completamente desbloqueada, mas, mesmo assim, Sérgio preferiu não acelerar. Sempre cauteloso em relação ao que poderia encontrar logo, além do horizonte.No banco de trás, Raul tinha reorganizado as bagagens, de forma a preencher todo o espaço livre do soalho, liberando bastante do espaço dos bancos. Estava deitado, de costas para a porta, com as costas apoiadas em uma mochila e, na mesma posição, Letícia estava apoiada no orangotango, que com uma das mãos acariciava os cabelos da boneca e com a outra a abraçava.No banco da frente, Margarida dormia com o celular nas mãos.Mesmo com o aumento dos obstáculos, que indicava a proximidade da cidade, a rodovia se mantinha praticamente livre e, antes do esperado, o grupo chegava à zona
A primeira experiência dirigindo em rodovias, depois da peste, tinha sido caótica. Não apenas pelo volume de obstáculos encontrados, mas também pelo medo e insegurança. Mas enquanto dirigia acompanhado de Margarida, Raul e Letícia, o homem barrigudo percebia uma grande diferença, não apenas em sua confiança, mas na própria autoestrada. Por isso, comentou:- Eu acho que tem mais gente usando a estrada do que fazendo baderna, ou essa rodovia tá em muito melhor condição do que a outra. Sentada na poltrona do copiloto, ao lado de Sérgio, a boneca de pano complementou: - Faz o que, uns quarenta minutos que a gente não precisa parar pra arrastar nada?&nbs
Depois da pequena caminhada pela floresta, os quatro viajantes chegaram ao carro de Sérgio e se preparavam para seguir viagem. Colocando as bagagens no chão, próximo ao veículo, Raul disse:- Acho melhor a gente remendar logo o braço de Letícia.E olhando para a amiga, continuou:- Não sei como você não tá reclamando de dor, toda hora eu olho isso e fico com agonia.A boneca de pano levou a mão ao ferimento, empurrando a espuma para dentro, enquanto falava:- Não sei se foi por causa da adrenalina, mas na hora não doeu e, pra falar a verdade, nem agora tá doendo. Eu tinha até esquecido.Enquanto o orangotango e Letícia conversavam, Margarida abriu a mochila de Jotapê e pegou a caixa de metal que ele chamava de “Kit de primeiros socorros”. Abrindo a caixa, se deparou com uma bandeja com agulhas de diversos tamanhos,
Apesar de ter decidido que fugiria e, por várias vezes, durante aquele dia, Vinicius tivesse caminhado até a porta e tocado na maçaneta, em cada tentativa sentia suas pernas ficarem moles e se sentia paralisado, enquanto um sentimento de desconforto queimava em seu peito.O adolescente se imaginava abrindo a porta e dando de cara com o bico rachado por centenas de rugas, com dois ou três fios compridos de bigode prateado, acompanhado de perto pelo olhar penetrante. Então, Ornella diria alguma coisa que o faria se sentir incapaz e ele voltaria para o quarto, chorando mais uma vez. Vinicius nunca imaginou que uma pessoa tão frágil pudesse causar tanto medo.Era melhor não tentar fugir. Logo ela bateria levemente em sua porta para convidá-lo a sair do quarto e se juntar à ceia com as outras crianças. Nesse momento ela entraria para inspecionar o cômodo e perceberia que o quarto
Após ouvirem a história de Sérgio que, por conveniência, se apresentara para Jackson e Maura como Barba, o trio da boneca de pano estava reunido em torno do reboque com as bagagens, na floresta de eucaliptos. O itinerário escolhido por Letícia quando deixaram a universidade estava atado, de maneira indissociável, à presença de Jotapê no grupo, afinal, não apenas o próximo destino tinha a intenção de reunir sua irmã ao grupo, como o destino final também era a fazenda do mesmo, mas o artesão fora vítima de uma martelada fatal quando o grupo tentava fugir de seus captores na cidade. Quando Sérgio perguntou sobre o destino do grupo, ninguém soube responder, por ainda não terem tempo para pensar no assunto. Mas agora, com o perigo afastado, era chegado o momento de estabelecerem um novo roteiro. Desde o início da jornada, Raul tinha dúvidas quanto ao seu destino final. O orangotango achava muito interessante a ideia de abandoarem a cidade e viverem todos juntos em
Vinicius, o irmão de Letícia, estava deitado na cama, acordado, mas ainda de olhos fechados, esperando, preguiçosamente, que o despertador tocasse para, enfim se levantar e tomar banho. Sentia saudades dos pais e custava a se adaptar àquela nova vida cheia de horários, regras e sanções. Não que os pais fossem muito amorosos ou atenciosos, mas, da forma deles, estavam sempre presentes. Chorou um pouco, como fazia quase todas as manhãs e acabou pegando no sono. Acordou suando, sem entender o motivo de o quarto estar tão quente, logo cedo. Chutou as cobertas para longe do corpo e, estendendo o braço melado de suor, procurou o celular, na tentativa de descobrir o horário, mas, tateando a cômoda vazia, lembrou-se, xingando baixinho: - Cacete, meu celular ainda tá confiscado... A constatação de que o aparelho não estava no quarto e, portanto, não iria despertar às seis horas da manhã, como de costume, veio com um arrepio na espinha. A preguiça desapareceu, como num passe d