O ritmo de cada palavra pronunciada por Jamille, em perfeita harmonia com os batuques e com a dança frenética, hipnotizava Margarida. Quando tudo ficou em silêncio e o que restou foi apenas um barulho de apito dentro de sua cabeça, ela demorou alguns instantes para sair do transe. Letícia estava do seu lado e cobria a boca de mentira com a mão. Emerson corria pelo gramado, levantando uma nuvem branca de fubá e cal enquanto atropelava os símbolos no chão. Rogério sentara no gramado, abraçando os joelhos e olhando para o nada.
A cabeça da psicóloga tentava assimilar os fatos, mas o absurdo da situação e a brutalidade com que ocorrera dificultava seu entendimento. Humanos e bonecos acudiam Jamille e os dançarinos. Emerson sumira. Letícia não estava mais do seu lado, mas caminhava em direção corpo inerte de sua amiga Brenda. Rog&
Letícia não conseguia entender direito o que tinha acontecido. Lembrava-se que, em algum momento a música tinha parado e todos tinham caído no chão. Viu Emerson sair correndo e imaginou que ele pretendia acudir Jamille, mas o historiador ignorou o corpo jogado no chão e continuou correndo. Rogério também estava caído e ela tentou lembrar se ele também fazia parte do ritual, sua cabeça estava confusa. Ela só queria saber se aquilo tinha acabado e se ela e Brenda já poderiam ir para casa, mas tudo estava tão confuso... ‘meu ritual também foi assim?‘O que ela estava fazendo ajoelhada com a cabeça de Brenda apoiada em seus joelhos? Como Brenda conseguia estar dormindo depois de toda aquela confusão? ‘Ela está dormindo, né?’ Tinha que estar, os dois corpos, o de carne e o de pano, estavam imóveis. Alg
O incidente dentro dos muros da cidade universitária, envolvendo a agressão à professora de antropologia e o assassinato de Brenda, foi capaz de mobilizar a todos e a movimentação começou logo na manhã seguinte. Conforme a notícia se espalhava, ninguém conseguia permanecer neutro.A maioria esmagadora da população acadêmica ficava chocada com a notícia, não querendo acreditar que alguém entre eles tinha sido capaz de cometer uma atrocidade daquela magnitude, no entanto, foram capazes de perceber que, mesmo que fossem apenas poucas pessoas, algumas concordavam com o posicionamento do agressor. Nem a universidade era um local seguro para os bonecos. Reunidos na praça, estavam Emerson, Letícia, Margarida, Raul, Rogério e Jotapê. O braço e o peito de Emerson tinham sido p
- Ei, Lê, se você não aparecer logo, a gente vai sem você?A voz de sua mãe era séria e parecia urgente. Letícia saiu de casa, carregando a mochila em um dos ombros e andando com dificuldade enquanto terminava de se ajeitar e só então viu que a mãe sorria. Mesmo assim, preferiu se justificar:- Desculpa, bem na hora que eu tava saindo, precisei voltar pra fazer xixi.A mãe riu e fez um gesto com a mão, dizendo que estava tudo bem, enquanto entrava no carro. O pai, sentado no banco do motorista, olhou para Letícia e perguntou:- Você trancou a porta da casa, filhota?Letícia sabia que tinha trancado, mas a pergunta a deixou insegura. Colocou a mochila perto do pneu do carro e voltou, primeiro destrancando o portão externo, depois, atravessando a garagem, checou a porta da frente. Tudo trancado.
Aproveitando a privacidade momentânea, Letícia levantou da cama e vestiu um short largo. Sem motivo aparente, tapou a boca e começou a rir. Margarida foi contagiada pelo riso e perguntou:- O que aconteceu?- Você acredita que eu tava pensando se já tinha escovado os dentes?- Alguns hábitos nunca somem, né? Inclusive, eu não escovei os dentes ainda!A psicóloga se levantou e foi correndo para o banheiro.Raul entrou no quarto dando bom dia, procurou um local no chão que tivesse uma aparência receptiva, não encontrou, empurrou um pé de tênis e, um pouco constrangido e desconfortável, afastou algumas das roupas espalhadas pelo chão e se sentou. Rogério chegou logo em seguida, carregando duas das cadeiras da cozinha, olhou para o chão e ergueu as sobrancelhas, impressionado com a falta de área livre em um quar
Por impulso, Margarida levou a mão à chave, pronta para destrancar a porta, mas sentiu outra mão se sobrepor à sua. Rogério estava ao seu lado e movimentava a cabeça de um lado para o outro, indicando que ela não deveria abrir a porta. Entendendo o gesto, Margarida soltou a chave e perguntou:- Quem é?Um rumor se seguiu à pergunta e, Margarida e Rogério, constataram que havia mais de uma pessoa do outro lado da porta. Jotapê e Emerson, curiosos, também se aproximaram. Apenas Letícia permanecera no quarto.Após alguns segundos o rumor de conversas silenciou e uma voz feminina se destacou:- Aqui é a Carol, eu sou do curso de Jornalismo, mas o Emerson me conhece, aconteceu uma coisa e me pediram pra vir buscar vocês. É urgente.Com um aceno de cabeça, Emerson confirmou conhecer Carol e Margarida levou novamente a mão at&
Deitado no sofá do alojamento de Margarida, Emerson sentia a realidade voltando, lentamente. “A desolação”, pensava consigo mesmo, utilizando o nome utilizado para o vazio completo e a vontade de autodestruição que os bonecos de pano sentiam em momentos de emoções extremas. “Fazia tempo que eu não me sentia assim, achei que nunca mais me sentiria assim.” O boneco mantinha a mão esquerda em frente ao rosto e a olhava fixamente enquanto movia os dedos um por um. ”Eu achei que se eu tivesse controle suficiente sobre meu corpo, jamais me sentiria novamente assim. E eu nunca mais quero me sentir assim.”Raul e Margarida não tinham voltado. As pessoas não sabiam como lidar com um corpo enforcado em uma árvore já que as autoridades públicas como a polícia e o corpo de bombeiros pareciam estar extintos e eles queriam a
Na universidade, uma semana após a sequência de mortes brutais, as pessoas ainda tentavam se organizar, mas Letícia chegara à conclusão de que ela não servia para aquilo, não participava mais das reuniões e mal se arriscava a sair de casa. Mesmo sem sua permissão, percebia tudo acontecendo rápido demais. Deitada na cama, conseguia ouvir a conversa entre Margarida e Jotapê, na sala e ele também planejava ir embora. A boneca não queria perder mais um amigo, mas não sabia como impedir e não tinha forças. O passado se repetia constantemente em sua mente, drenando as energias:Letícia sentia febre e dizia que era apenas um resfriado, em uma negação tola, já que se lembrava das coceiras que sentira nas canelas no dia anterior. Interrompia o contato com a família, percebia os amigos se tornando distantes. A dor na axila, pesco
Organizar a viagem não era uma tarefa simples e não podia ser feita de qualquer jeito. O grupo precisou de pouco tempo discutindo ao redor da mesa para perceber isso. Não podiam simplesmente partir, tinham que analisar e tentar prever todos os obstáculos mais prováveis que encontrariam pela jornada e se preparar para o máximo número de situações possíveis. Infelizmente, a pessoa mais apta para esse tipo de tarefa era Emerson.A primeira questão levantada, e mais óbvia, foi sobre o meio de transporte que utilizariam. Nenhum deles tinha veículo particular e, apesar das ruas estarem repletas de carros e motos abandonados, teriam de aprender a burlar o leitor de impressão digital para abrir e ligar o automóvel. Mas mesmo que conseguissem, não poderiam garantir que cada veículo percorresse uma grande distância. Pelo que tinham visto, das informaç&otil